domingo, 13 de novembro de 2022

Contraste endovenoso


 


Nelson M. Mendes

Em 1895, o físico Wilhelm Conrad Roentgen fazia alguns experimentos, quando certos resultados o levaram a uma descoberta inesperada. Relatou sua experiência no artigo “Sobre uma nova espécie de raios”; e, sem estar seguro do que se tratava, denominou-os raios-x, usando a notação matemática x para indicar incógnita, desconhecido. Depois Von Laue demonstraria que os raios tinham a mesma natureza da luz, tendo apenas frequência mais elevada.

Ao projetar os recém-descobertos raios na mão da esposa, que repousava sobre uma chapa fotográfica, Roentgen produziu a primeira radiografia (ou roentgenograma) da História. (A mancha escura é o anel que ela usava.)

 


http://www.imaginologia.com.br/dow/upload%20historia/Roentgen-e-a-Descoberta-dos-Raios-X.pdf

 

Era revolucionária a possibilidade de investigar o interior do corpo sem necessidade de cirurgia exploratória; mas logo se constatou que a superposição dos tecidos, bem como a variação na sua densidade, resultavam amiúde em imagens confusas e pouco nítidas. Por isso, já no ano seguinte começaram as pesquisas sobre contrastes; e em 1897 foi publicado o primeiro artigo sobre o assunto.

Hoje, está totalmente estabelecida a prática da aplicação, sempre que houver necessidade e o paciente não for alérgico, do contraste endovenoso; que é a substância aplicada na veia do paciente para que, num exame como raio-x, tomografia ou ressonância magnética, a imagem apareça com mais nitidez, podendo revelar patologias ainda em fase inicial.

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Quando não há como fazer um exame de imagem, sobretudo com o auxílio do contraste endovenoso, uma enfermidade pode se desenvolver silenciosamente, e só ser detectada quando já comprometeu seriamente o organismo; esse é o caso de muitos tipos de câncer.

Uma enfermidade social também pode avançar silenciosa. No lindo samba  “Vai passar”, Chico Buarque registrou: “Dormia / A nossa pátria mãe tão / Distraída / Sem perceber que era / Subtraída / Em tenebrosas / Transações.” Ele podia estar se referindo a vários períodos da história brasileira – inclusive (e provavelmente) ao da ditadura inaugurada em 1964 e que ainda persistia quando do lançamento da canção (1984). O tema, aí, é o do arbítrio associado à traição dos interesses do povo; mas o próprio povo pode ser tomado de tal patologia ideológica e cultural, que venha até a defender ideias contrárias a seus interesses, como lembrava o saudoso jornalista Fritz Utzeri.

O nazifascismo, no século XX, é um caso típico de contaminação do povo por ideias a priori contrárias a seus interesses. Como é sabido, as massas se deixaram atrair por um discurso que, conforme a metáfora oriental, assemelha-se a mel envenenado: saboroso, porém mortal.

Essa atração pelo veneno – registre-se – só ocorre porque o nazifascismo (incluindo todas as suas versões atualizadas) é expressão adequada daquilo que chamamos de egoísmo basal: assim como pessoas gananciosas se deixam enganar e lesar pelas promessas de estelionatários (vide as famosas “pirâmides”, por exemplo), multidões podem se encantar pelo canto de sereia de líderes que prometem grandes benefícios, ainda que, em contrapartida, amplos setores da sociedade possam ser excluídos. (Nada de novo: o cidadão romano não se importava se seu conforto dependia da exploração de escravos.)

A imagem do lobo seduzindo cordeiros é válida tanto na antiguidade, como hoje. E os balidos do rebanho, em apoio ao pastor lupino, também persistem.

No Brasil, nós tivemos em 1964 a famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”: milhares de pessoas, preocupadas com o “fantasma do comunismo”, saíram às ruas, acenando para o golpe militar que não tardaria. A “ameaça comunista” era uma fantasmagoria engendrada pelos Estados Unidos e rapidamente encampada pelas oligarquias brasileiras, que usaram a mídia para propagá-la. O resultado foi que, como dizia Fritz Utzeri, a classe média (reduto do pequeno-fascista), marchou pedindo aquilo que era contrário aos seus interesses, o golpe militar... O jornalista Sebastião Nery comentaria certa vez que muitas daquelas pessoas “marchadeiras” teriam seus filhos torturados e mortos pelo regime militar.

Em muitos momentos da História, o panorama era muito claro: havia os bárbaros contra os romanos; o nazifascismo contra os Aliados na Segunda Guerra; o Capitalismo contra o “Comunismo” durante os anos de guerra fria; a ditadura plutomilitar (implementada pelos militares, mas instrumentalizada pela plutocracia) brasileira de um lado, e os adeptos da Democracia, de outro. E assim por diante.

Nas últimas décadas, após a dissolução da União Soviética e o fim da guerra fria, ficou um pouco mais difícil separar os campos, identificar os antagonismos. O Neoliberalismo assumiu o controle e o mundo sofreu uma pasteurização, uma homogeneização.

No Brasil, após a bizarra fase de transição democrática representada pelo governo Sarney e até pelo governo Collor/Itamar (caso típico em que o povo, doutrinado, chama de volta seus algozes), tivemos os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Foi a época das dubiedades, das imprecisões: para muitos, FHC era um “sociólogo comunista”; para outros, era “a maior decepção da sua geração” – porque de fato revelou-se um dócil operador do Neoliberalismo. Não era muito fácil identificar o inimigo, saber quem era “comunista”, “fascista”, “de esquerda”, “de direita”. O saudoso Jô Soares, certa vez, se referindo às posturas do PSDB (partido de Fernando Henrique Cardoso), disse que era o partido do “depende”...

De todo modo, finda a ditadura plutomilitar, o país pôde respirar uma atmosfera pelo menos formalmente democrática por alguns anos; e eleger e reeleger governos progressistas (Lula e Dilma). Mas a plutocracia não podia admitir por muito tempo a “boa vida” do povo trabalhador... Por outro lado, o pequeno-fascista de classe média, que sempre foi massa de manobra das oligarquias, se incomodava de ver que o pobre havia melhorado de padrão e podia dividir com ele aeroportos e shoppings... Os jornalistas que trabalham como  “mercenários da plutocracia”, na expressão de Paul Krugman (alguns dos nomes mais conhecidos da grande mídia) passaram a assediar os generais de pijama, a sugerir que alguma coisa fosse feita para interromper o ciclo de governos petistas. Os congressistas do eterno e famigerado “centrão” também se alvoroçavam; porque a gula econômica das elites nacionais e transnacionais vinha sendo contida por governos que pensavam no povo brasileiro. O resultado, como se sabe, seria o golpe contra Dilma, a prisão ilegal de Lula e a eleição, em 2018, do Boçal Fascista.

Eis que Lula, cuja inocência foi finalmente reconhecida pelo STF e até pela ONU, ressurge revigorado e vence o pleito de 2022.  E o que fazem os pequenos-fascistas derrotados? Interditam estradas e fazem bisonhas manifestações em frente aos quartéis, incluindo o Comando Militar do Leste, no Rio de janeiro, pedindo intervenção militar – em muitos casos cínica e eufemisticamente rebatizada de “intervenção federal”. Mais uma vez, é o escravo fazendo o discurso do senhor, da Casa-Grande; ou, como gosta de dizer um amigo, é o suíno clamando pelo abatedouro.

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Mas uma coisa tem que ser dita: agora não há mais dúvidas sobre o perfil do povo brasileiro, bem como das instituições. Todo povo tem seus nichos ideológicos, religiosos, etc. Há “radicais” de todos os matizes, assim como uma grande massa amorfa e relativamente “neutra”. Mas o que pudemos ver, nos últimos anos, é que, se a cadela do fascismo está sempre no cio, como dizia Brecht, ela mostrou particular disponibilidade reprodutiva nessas nossas terras tropicais, talvez eliminando definitivamente o mito do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda.

O ódio, o egoísmo basal, que são os alimentos do fascismo, moram no coração do Homem. (Não temos dúvidas de que, mais profundamente ainda, existe um incomensurável aquífero de amor e paz – mas não é essa a questão no momento.) Mas a grande mídia, instrumento do Grande Capital, vem há anos insuflando esse ódio, ensinando o povo a odiar o “comunismo” e as “esquerdas” de modo geral.

Todo esse rio de ódio e ignorância confluiu para onde? Para seu representante perfeito, o militar reformado, o verme que há décadas vivia no lodo da baixa política no Rio de Janeiro.

O Boçal Fascista foi eleito em 2018, fez um dos piores governos da história mundial, e ainda assim disputou o segundo turno em 2022 com Luís Inácio Lula da Silva, talvez o maior líder da história brasileira, e um dos grandes do mundo. (Na opinião da filósofa e psicanalista Viviane Mosé, Lula é o maior líder mundial vivo.) Claro que o Boçal Fascista jogou todo o peso da máquina e fez todas as manobras sujas para conquistar eleitores; mas ainda assim espanta que o governo que destruiu o país, que é responsável por pelo menos 400 mil mortes por Covid-19, segundo especialistas, e que fez o Brasil voltar ao Mapa da Fome da ONU – espanta que esse governo tenha sido avalizado por mais de 58 milhões de eleitores. Felizmente, Lula obteve mais de 60 milhões de votos. O Brasil e o mundo respiram aliviados.

Não acreditamos que o Brasil tenha mais de 58 milhões de eleitores fascistas. Os fascistas-raiz, aqueles que encontraram no Boçal Fascista seu representante, mal chegariam a 25% da população. Mas muitos brasileiros são vulneráveis aos apelos do fascismo, com ou sem aspas, no sentido amplo ou estrito.

De qualquer modo, o perfil político e cultural do povo brasileiro foi revelado. Fascistas autênticos e fascistas eventuais somam mais de 58 milhões de eleitores.

O Brasil nunca mais será o mesmo.  Dificilmente voltaremos a seguir falsos messias, ou seremos surpreendidos pela eclosão de um ovo em que a serpente do fascismo dormitava silenciosa e imperceptivelmente.

Essa foi a grande missão do Boçal Fascista: funcionar como o contraste endovenoso que permitiu ao Brasil visualizar com nitidez, na radiografia política, a caratonha horrenda de sua patologia social. 




segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Faltou luz

 




Nelson M. Mendes

 

O que faltou para que Lula vencesse no primeiro turno?

O nazineoliberalismo ainda não foi vencido. O que faltou? Faltou informação. Faltou luz.

Já há quase um século (!), o Nazismo propriamente dito, o original, prosperou num ambiente de desastre socioeconômico, sim, mas também de trevas mentais, culturais.

Quando um corpo está submetido a um estado de hipóxia (oxigenação insuficiente – o que pode acontecer, por exemplo, a alpinistas em altitudes muito elevadas), o cérebro pode começar a falhar; a pessoa deixará de pensar com clareza e cometerá vários erros.

“Querelas do Brasil”, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc (mais uma canção imortalizada por Elis), diz que “o Brazil não conhece o Brasil”. A Wikipédia explica: “A canção [...] denuncia que a elite econômica brasileira estaria suprimindo a cultura popular do país com sua cultura amplamente americanizada [...]”.

Na verdade, não é apenas a cultura popular que vem sendo suprimida. São décadas e décadas de colonização, décadas e décadas de lavagem cerebral.

O brasileiro comprou a visão estadunidense de mundo. Num estado de permanente hipóxia cognitiva, carente de nutrição cultural (e até nutrição stricto sensu), ele se tornou presa fácil da propaganda; tornou-se ferrenho “anticomunista”, passou a defender valores alienígenas.

O conceito de “comunismo” é um balaio onde cabem todos os gatos. Sempre que o Capital Transnacional vê de alguma forma ameaçados os seus interesses, ele brande o “fantasma do comunismo” a fim de amedrontar o pequeno-fascista; ou acusa de “corrupção” as lideranças que estejam apenas propondo leves reformas para amenizar o panorama de extrema desigualdade social. O texto “Manual de autoajuda do iludido político II” fala disso.

Mas a solução não está em conquistar o povo para uma visão “esquerdista” de mundo. No texto “Manifesto da onça”, está dito:

O caminho tem que ser novo. É preciso esquecer expressões como “trabalho de base”, “classe trabalhadora” e até termos como “militância”. Tudo isso foi contaminado pela lavagem cerebral que há décadas sofre o povo brasileiro [...] Temos de colocar de lado os velhos conceitos de “esquerda”, “direita”, as velhas táticas de luta política.

 Nos bares e cafés, podemos ouvir expressões como “aquela comunistazinha filha da puta”, ou “essa baboseira de esquerdismo”, e assim por diante. Na seção eleitoral, neste incrível 2 de outubro de 2022, ouvimos um senhor, depois de discursar enfaticamente sobre o “chip na vacina”, dizer que à noite ele participaria de um “chorinho” (roda de choro, o estilo musical) com amigos; mas o que desejava mesmo era ouvir o chorinho da esquerda...

O brasileiro médio foi ensinado a odiar o “comunismo”, o “socialismo”, o “bolivarianismo” e todos os ismos que de alguma forma se abriguem sob o conceito mais amplo de “esquerdismo”. Como gostamos de lembrar, ser de esquerda nada mais é que desejar um mundo mais justo e igualitário; nesse sentido, Mandela, Luther King Jr., Lula e o próprio Jesus Cristo são de esquerda. E o poder econômico de todas as épocas invariavelmente odeia esses esquerdistas. E convence o povo a odiá-los também, através da grande mídia. (Vide, por exemplo, o texto “‘O caso Veja’ e o ocaso da mentira”.)

É por isso que a mídia progressista deve evitar falar em “nós, da esquerda...”. “Esquerda”, como foi dito, é uma espécie de mantra maligno, de maldição para muita gente. Décadas e décadas de lavagem cerebral...

Quanto às lideranças progressistas (estou evitando falar “de esquerda”...), o que elas precisam é levar esclarecimento à multidão que caminha nas trevas produzidas pela mídia. “A função do jornalismo é ocultar a notícia” – já dizia Millôr Fernandes. A mídia progressista – ou alternativa – pode ajudar a levar luz a cantos esquecidos. Mas o grande trabalho, neste momento de campanha eleitoral, tem de ser feito pelos partidos políticos.

Por exemplo: durante anos, a grande mídia, Rede Globo à frente, alimentou o mito de “Lula Ladrão”. As narrativas não se sustentam, e seriam facilmente desmontadas se houvesse o contraditório; mas o que há é apenas a versão da promotoria midiática – tão arbitrária e inquisitorial quanto a versão da promotoria propriamente dita, sob a regência ilegal do juiz Moro, no caso do processo do triplex do Guarujá...

Então, é preciso que o PT esclareça: Lula é totalmente inocente. Dos 26 processos forjados contra ele, para riscá-lo da vida política, ele foi inocentado em três; os outros esfarelaram, porque não tinham consistência jurídica. O respeitado jurista Pedro Serrano se referiu recentemente a esses processos com uma palavra que usamos com frequência para nos referir a eles: “fraudes”. E lembrou um detalhe interessante, e naturalmente ignorado pela mídia: numa determinada etapa do processo do triplex, o próprio juiz Sergio Moro declarou que não havia provas contra Lula... Ainda assim, Lula foi condenado e ficou injustamente encarcerado por 580 dias em Curitiba.




Posteriormente, como relatado no texto “A travessia”, o STF foi finalmente obrigado a reconhecer que Lula havia sido vítima de perseguição política através de expedientes jurídicos – lawfare. Em seguida, foi a vez de um eminente corpo de juristas da ONU dizer a mesma coisa.

Mas o sujeito no bar não foi informado disso. Nem o eleitor adepto da teoria da conspiração do chip na vacina. Provavelmente eles se alimentam de fakenews via WhatsApp; ou se informam em portais que dão nó em pingo d’água para dizer que a inocência de Lula “não é bem assim” – que ele escapou por causa de tecnicalidades, ou porque os processos “prescreveram”, etc. Mas o mundo todo sabe – e é o que nossos netos vão aprender na escola – que Lula foi vítima de processos assemelhados aos do stalinismo, armados não para julgar, mas para condenar. Aliás, foi gratificante ouvir Pedro Serrano fazer esse paralelo com o stalinismo, a que muitas vezes recorremos para frisar o caráter inquisitorial da Lava a Jato. 

Tudo isso tem que ser dito. Por algum jurista conhecido, algum intelectual respeitado, algum artista, pelo próprio Lula. Porque muita gente, ainda hoje, está envenenada contra Lula, e acredita que “o PT quebrou o Brasil” (outra afirmação que não se sustenta). E, por outro lado, não foi informada pela TV, por exemplo, de que o clã do Boçal Fascista comprou, nos últimos anos, 107 imóveis, 51 dos quais em dinheiro vivo.

Esse tipo de coisa tem que ser dito. Porque o povo pode ter dificuldade de entender a importância de termos um presidente que encare seriamente e com competência os problemas sociais, ambientais e econômicos; mas sabe que deve evitar um boçal que, além de fascista, é ladrão.

Boa parte do povo brasileiro, como costumamos dizer, padece de uma síndrome que mistura fascismo congênito e ignorância. Muitas dessas pessoas estão irremediavelmente comprometidas. Mas muitos dos que votaram no Boçal Fascista no primeiro turno em 2022 são pessoas que estão nas trevas midiáticas. Precisam de informação, precisam de luz. Trocando em miúdos, é isso aí. 


sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Lula e o gradiente de aproximação

 



Imagem em https://stringfixer.com/pt/Gradient

 

 

Nelson M. Mendes


“A tendência a aproximar-se de uma meta fica mais forte à medida que o indivíduo se aproxima dela. Isso é conhecido como o gradiente de aproximação; a tendência a evitar um estímulo negativo torna-se mais forte à medida que o indivíduo se aproxima do estímulo. Isso é referido como gradiente de esquiva. [...] as tendências de esquiva aumentam com a aproximação da meta [...]” [Informação colhida nesta página.]

Gradiente de aproximação é um conceito da Física. Mas, se muitos intelectuais, em algum momento da História, tentaram aplicar, aos fenômenos sociais e humanos, princípios hauridos nas ciências naturais e exatas, por que não poderia este modesto escriba, ainda que em caráter de metáfora, fazer um paralelo entre esse fenômeno físico e o fenômeno social que fará Lula vencer a eleição de 2022 em primeiro turno?

“De médico, poeta e louco todos temos um pouco” – diz o ditado popular. A essas atribuições, podemos acrescentar: todos temos algo de profeta.

Até onde sabemos, alguns indivíduos  seriam realmente dotados de clarividência, poderiam sintonizar o futuro. Mas a maioria de nós é profeta num sentido mais simples e explicável: se pudermos observar com amplitude o encadeamento dos fatos, poderemos imaginar com certa precisão o que vai acontecer. Alguém já usou essa imagem: um indivíduo que, do alto de uma colina, exatamente na curva de uma estrada de ferro, vê dois trens correndo um na direção do outro, pode prever que haverá um acidente.

É esse tipo de profecia que nós podemos fazer.

Quem realmente conhece o caráter pútrido do Boçal Fascista eleito em 2018, até poderia imaginar algo como o ridículo espetáculo encenado em julho de 2022, na presença de vários embaixadores. Mas, mesmo assim, fica difícil acreditar no que câmeras registraram para o mundo todo: um presidente empenhado em desacreditar as instituições do país, particularmente o sistema eleitoral do qual se beneficiou por três décadas – e sem qualquer prova, sem fundamentar suas acusações.

Mas qualquer pessoa minimamente inteligente poderia prever que aquele circo surreal não traria bons resultados para o palhaço.

O advogado e candidato a deputado federal Wadih Damous afirmou que Bolsonaro deveria ter seu registro eleitoral negado, depois da reunião com embaixadores para acusar sistema eleitoral brasileiro. “Tem de ser dito à população brasileira que o Presidente da República está mentindo e praticando crimes. É um traidor da pátria.”

O linguista Gustavo Conde comentou que nunca a imagem do Brasil esteve tão comprometida. “É a pior imagem do Brasil de todos os tempos. [...] O país virou realmente um pária.”  Mas garante que a boa imagem do Brasil será recuperada com Lula, um líder de prestígio mundial.

O jornalista Jânio de Freitas diz que as acusações infundadas de Bolsonaro ao sistema eleitoral, diante de embaixadores, deixou mudos os generais de pijama golpistas. “A reação internacional a Bolsonaro atinge todos os militares [...]” O veterano jornalista aproveita para aconselhar: “Se querem ser militares, parem de provocar desordem institucional. Já fizeram demais [...]” E acrescenta: “Obsoletas entre vizinhanças pacíficas, forças militares na América do Sul são uma duvidosa tradição.”

Um dia após Bolsonaro ter reunido embaixadores para fazer acusações infundadas ao sistema eleitoral, a embaixada dos EUA divulgou comunicado afirmando que as eleições brasileiras são confiáveis e modelo para o mundo. “O país tem um forte histórico de eleiçõe livres e justas, com transparência e alto nível de participação dos eleitores.”

Em julho do ano passado, segundo a Reuters, o diretor da CIA já havia dito, a ministros brasileiros em visita aos EUA, que Bolsonaro deveria parar com as críticas ao sistema eleitoral brasileiro.

A imprensa estrangeira comparou atitudes de Bolsonaro às de Trump.

The New York Times: “Como Trump, Bolsonaro parecia estar desacreditando (na reunião com os diplomatas) a votação antes que ela acontecesse [...]”

O próprio Departamento de Estado dos EUA, através do porta-voz Ned Price, declarou que o sistema eleitoral brasileiro é “modelo”, repetindo o que na véspera dissera a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil. Certamente Bolsonaro não convenceu nenhum daqueles embaixadores, quando atacou as urnas e os ministros  do STF.

Price afirmou que os EUA acreditam que as eleições brasileiras serão totalmente limpas e regulares, conforme expressou o próprio Biden em junho.

Alguns dias depois, o núcleo duro da campanha de Bolsonaro admitiu que sua imagem sofreu sério prejuízo com encenação ridícula diante dos embaixadores; mas disse acreditar que ele poderia recuperar pontos quando os benefícios eleitoreiros passassem a ser pagos em agosto. (A profecia que muitos fizemos se concretizou: as “bondades eleitoreiras” de última hora não surtiram o desejado efeito; porque o povo está escaldado, não se deixa mais enganar facilmente.)

Mas a reação aos rosnados golpistas do Boçal Fascista iria muito além do que poderiam supor seus rasteiros instintos.

O Secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, que participou em Brasília da Conferência de Ministros de Defesa das Américas, declarou que seu país e o Brasil compartilham “interesses e valores”, como “nosso compromisso com o Estado de Direito e nossa devoção à Democracia”. Austin, de fato, levou um recado de Biden contra os pruridos golpistas de Bolsonaro. E enfatizou: “Quanto mais aprofundamos nossas democracias, mais aprofundamos nossa segurança.”

O ministro da Defesa brasileiro, general Paulo Sérgio Nogueira, anfitrião da conferência, expressou respeito à carta da OEA e à carta Democrática Interamericana, acrescentando que “os povos da América têm direito à Democracia, e seus governos têm a obrigação de promovê-la e defendê-la”.

No dia 28/07, foi assinada a Declaração de Brasília, na qual os participantes da conferência assumiram compromisso com valores vocalizados pelo general Paulo Sérgio.

A sociedade civil, através de canais diversos, manifestou seu repúdio às intenções golpistas do Boçal Fascista.

A Faculdade de Direito da USP imediatamente elaborou a “Carta às Brasileiras e Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, que atingiria 1 milhão de assinaturas no dia de sua leitura, 11 de agosto de 2002.

A carta foi assinada por artistas, intelectuais, e também por conhecidos nomes dos mundos empresarial e financeiro.

O empresário Walter Shalka, presidente da Suzano, ficou impressionado com a mobilização, observando que tanto a Fiesp quanto a Febraban assinaram a carta. E, lembrando que os empresários são formadores de opinião, declarou: “Temos de buscar a pacificação do Brasil, [...] resolver a questão da educação, [...] resolver a desigualdade social e a falta de emprego, assim como a ineficiência administrativa do Estado Brasileiro. Temos uma oportunidade na questão ambiental que é tremenda. Precisamos sair da discussão pequena de um contra o outro e construir uma solução pró-Brasil.”

A carta recebeu mais de 100 mil assinaturas, em 24h, incluindo de muitos ex-ministros do STF, juristas, personalidades, empresários e até banqueiros, como Roberto Setúbal e Pedro Moreira Salles, do Itaú.

Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP,  falou que o Manifesto pela Democracia expressa um enfático não da sociedade em relação ao golpismo de Bolsonaro, que diz coisas como “não vou cumprir decisão judicial”, etc. “É uma inflexão, [...] um aviso: a sociedade civil está muito alerta.”

É claro que o histórico documento, uma espécie de versão século XXI de carta semelhante lida também na USP em 1977, provocaria reações nas hostes bolsonaristas. A carta alcançaria 250 mil assinaturas em 48h; mas o site já tinha a essa altura sofrido 1,5 mil ataques hackers.

O que mais incomodou Bolsonaro e equipe foi a adesão da elite econômica, incluindo Fiesp e Febraban, à carta pela Democracia. Em 2018, Guedes fizera promessas neoliberais que seduziram empresários e financistas. Mas hoje Guedes está abandonado pelo poder econômico; e sem o apoio dessa elite, o Boçal Fascista entende que sua campanha bateu no teto.

O jornalista Leonardo Attuch observa que o novo posicionamento das elites deve ter um efeito adicional: funcionar como um aval, junto a um setor da classe média, sobretudo masculina, ao voto em Lula.

O jornalista Bernardo Mello Franco, de O Globo, disse que “o presidente passou vários recibos de sua irritação” com a adesão de empresários e banqueiros à carta que defende a Democracia e condena o golpismo, e que deverá ser seguida de carta semelhante promovida pela Fiesp e pela Febraban.

O jornalista lembra que as elites apoiaram Bolsonaro em 2018, e com mais entusiasmo depois que o Congresso aprovou a reforma da Previdência. Mas a reunião de Bolsonaro com embaixadores fez a elite virar as costas a ele.

A elite econômica não gosta de turbulência e já vê Lula como mal menor.

Um dos organizadores do movimento, o professor Floriano Azevedo Marques disse que a reação de Bolsonaro serviu para divulgar o manifesto.

A socióloga Neca Setúbal afirmou que “vários empresários de peso têm assinado a carta aos brasileiros e brasileiras. [...] A entrada de grupos empresariais, de advogados e juristas nessa defesa é o salto que a gente precisava. Foi meio tarde, mas em tempo ainda”. Acrescentou que “vamos ter um trabalho muito grande [...] no processo de reconstrução do país”.

A carta pela Democracia seria lida na Faculdade de Direito da USP,  pelo advogado José Carlos Dias, com 83 anos, que declarou, antes do ato: “Enquanto estiver vivo, vou defender os direitos humanos e a Democracia.” E explicou que manifestações semelhantes são preparação para resistência a golpe que Bolsonaro possa vir a tentar. “Esse presidente é um delinquente”, diz, acrescentando que ele já cometeu vários crimes comuns e crimes de responsabilidade. “Esse homem não trabalha. Ele está fazendo campanha o tempo todo. Essas cartas são de defesa da Democracia.”

No início do evento, foi lido um outro manifesto, elaborado pela Fiesp e assinado por várias entidades. Depois foi lida a “Carta às Brasileiras e Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, elaborada pela USP.

O objetivo do encontro, segundo discursou o reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti, era defender o sistema eleitoral, e garantir que “a vontade do povo brasileiro seja respeitada e seja soberana”.

O advogado Oscar Vilhena Vieira ressaltou que o manifesto não tinha teor partidário, era expressão de um “compromisso maior com a Democracia”.

O ato de leitura da carta reuniu representantes de um amplo espectro político-social, como o ex-jogador Walter Casagrande, o jornalista Juca Kfouri, a indigenista Sônia Guajajara, a ambientalista Marina Silva e os deputados federais Joice Hasselmann (ex-bolsonarista) e Coronel Tadeu (bolsonarista), que  classificou o evento de “ato político, com fachada de luta pela Democracia”, e não assinou a carta. Bruno Araújo, presidente do PSDB, e Isac Sidney, presidente da Febraban, também compareceram.  Enquanto Miguel Reale Jr., autor do pedido de impeachment contra Dilma, era vaiado, o jurista Pedro Serrano era saudado pelos alunos.

A ex-desembargadora Kenarik Boujikian disse que é preciso equilibrar as diversas forças do espectro social, e que a Democracia, enraizada nos direitos humanos, é um processo que não se encerra com a eleição.

A carta, lida em 80 universidades brasileiras, diz que “ataques infundados [...] questionam a lisura do processo eleitoral”, e que “são  intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil”. E realça a importância do manifesto amplamente acolhido pela sociedade: “Sabemos deixar de lado as divergências em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.” O encerramento é enfático: “Estado Democrático de Direito sempre!”

O advogado Marco Aurélio Carvalho, um dos articuladores da carta pela Democracia, disse, em entrevista a Breno Altman, que é preciso restaurar o Estado Democrático – para só então pensar em reformas: “[...] se perdermos a Democracia e o Estado de Direito, nem vamos ter a oportunidade de divergir sobre absolutamente nada.” E observa que muitos apoiadores dos golpes contra Dilma e Lula, apesar do desconforto, assinaram a carta mesmo assim.

Mas o próprio Breno Altman lembra que o povo está pouco preocupado com questões institucionais. “A questão democrática ganha muito impacto [...] quando está estabelecido um regime totalitário ou ditatorial que interfere na vida das pessoas [...] Nós não estamos em outro regime político, nós continuamos  a viver em um regime de Democracia Liberal. Então para a massa do povo não há grandes diferenças do ponto de vista da política entre [...] Bolsonaro e Temer ou quaisquer governos pós-redemocratização.”

“A imensa maioria das pessoas se interessa [...] pela fome e pelo combate à fome, [...] pela melhoria da sua renda, pela melhoria da educação, da saúde, pelos grandes temas que formam o cotidiano dos cidadãos e cidadãs do país.”

Breno enfatiza que a campanha de Lula deve focar as questões sociais e econômicas; porque embora o povo a priori não goste de ditadura, ele tampouco está feliz com a Democracia Liberal.

Na verdade, a discussão política, na opinião de Breno, favorece o Bolsonaro, porque tira a atenção do desastre social, econômico, sanitário e ambiental que tem sido o seu governo.

De fato, o economista Guido Mantega destaca que “hoje temos uma [...] economia crescendo pouco e uma inflação alta”. E explica que os combustíveis estão caros por causa de “uma política de preços equivocada” (PPI) adotada pela Petrobras; e que os alimentos estão caros em razão da baixa oferta, porque Bolsonaro não estimulou pequenos agricultores nem fez estoques reguladores. A crise da Covid, o conflito na Ucrânia e a cotação dos alimentos em dólar contribuíram para o aumento da inflação. Mantega disse que, em vez de estimular a economia, o governo Bolsonaro/Guedes ficou “privatizando as empresas estatais”; e depreciando os ganhos do trabalhador, com consequente encolhimento do mercado consumidor. Afirmou ainda que os auxílios eleitoreiros do Boçal Fascista darão apenas breve fôlego à economia, assim como um paciente com hemorragia experimenta momentânea melhora com uma transfusão de sangue.

O também economista Ladislau Dowbor diz que, apesar da paralisia econômica, a população poderia viver muito melhor se houvesse um pouco menos de desigualdade. “Então nosso problema central é orientar a economia em função das necessidades da população. E a base política hoje é o Lula.” Diz que Bolsonaro se submeteu ao “sistema de traders internacionais de bens primários”, ignorando as necessidades do povo. “Quando você tira a capacidade de consumo da população, as empresas não têm pra quem vender, então estamos nos desindustrializando.” Diz não ser admissível que, num país que produz 3,7 kg de grãos por pessoa a cada dia, 125 milhões de pessoas vivam em situação de insegurança alimentar e 33 passem fome stricto sensu. “É  uma questão de opção política.”

Juarez Bispo Mateus, morador de Campinas-SP e ativista pró-Lula desde meados dos anos 1980, diz por que o ex-presidente deverá ser eleito: “A esperança do povo é pelo menos voltar ao patamar que era na época do Lula. Com 4% de desempregados, pleno emprego, ProUni, Pronatec, oportunidade para os negros, as negras, e para toda a população.”

O Boçal Fascista, um político do “baixo clero” que há quase 30 anos se refestelava, como um suíno, na lama da corrupção, foi eleito em 2018 com a aura artificial de um homem “anticorrupção” e até “antipolítica”. A mentira seria cômica se não fosse trágica; porque o pior presidente da história do Brasil (um dos piores da história mundial), eleito graças ao fascismo congênito de parte do povo, mas também graças às fake news endossadas pela grande mídia, praticamente destruiu o país que penosamente havia sido construído nos governos Lula e Dilma.

Mas a mentira tem pernas curtas.

Os mais de vinte processos forjados contra Lula foram finalmente anulados pelo STF; porque ficou provado que só se mantinham de pé porque o juiz Sergio Moro, a serviço do Capital Transnacional e a bordo de ambições pessoais, queria condenar Lula de qualquer maneira.

Entretanto... a máscara do “impoluto” presidente atual, que já não cobria os escândalos das “rachadinhas” e até crimes envolvendo milicianos, cairia definitivamente quando os jornalistas Thiago Herdy e Juliana Dal Piva publicaram no portal UOL, no final de agosto de 2022, reportagem sobre as façanhas imobiliárias da família Bolsonaro.

A reportagem consultou 270 documentos obtidos em cartórios de 16 municípios; e visitou pessoalmente 12 cidades, para checar dados. E descobriu que, desde os anos 1990, o clã Bolsonaro comprou 107 imóveis, 51 em dinheiro vivo. Muitos experientes jornalistas garantem que essa dinheirama não veio apenas de “rachadinhas”: existe crime grosso por trás disso. Entrevistado, o Boçal Fascista não quis dizer por que a família gosta de fazer negócios em cash. Mas até a velhinha de Taubaté sabe que esse é um procedimento típico de mafiosos. Juliana Dal Piva explica o silêncio presidencial: “Ele tem medo dessa história. É por isso que não responde.”

O mutismo do Boçal Fascista, entretanto, é inútil, sabendo-se que não se pode tapar o sol com a peneira: o jornal britânico The Guardian, por exemplo, publicou extensa reportagem sobre os 107 imóveis comprados pela familícia, 51 dos quais em dinheiro vivo.

Enquanto o Boçal Fascista derretia e já escoava para o esgoto da História, o nazineoliberalismo tratava de encontrar a chamada “terceira via”, a fim de evitar a vitória certa de Lula. Até o Sergio Moro, ex-juiz e sempre ladrão, foi cogitado para ocupar esse posto. Figuras abjetas do jornalismo corporativo, como Merval Pereira e Eliane Cantanhêde, tentaram inflar a imagem do Marreco de Maringá. Outros nomes menos cotados, como Simone Tebet, também receberam suas doses de anabolizantes midiáticos. Mas o grande espantalho continuou sendo o coronel do Ceará.

É possível que Ciro Gomes, num dado momento, tenha de fato acreditado que poderia chegar a um segundo turno contra o Boçal Fascista. E, ao que parece, sua tática para conseguir isso foi tentar destruir o principal concorrente, o ex e futuro presidente Lula. Mas não tem dado certo. Pelo contrário: muitas personalidades, ciristas tradicionais, têm ficado chocadas com a violência e a desonestidade intelectual do coronel em seus ataques a Lula; porque Ciro, como advogado e ex-professor de Direito, sabe que Lula é inocente, e que seus filhos não podem ser chamados de “corruptos”, uma vez que têm vidas simples e nenhum deles está metido na política. (Exatamente o contrário do que acontece na família do Boçal Fascista.) O resultado é que tem havido muitas deserções no tradicional eleitorado cirista.

Em entrevista à TV 247 em 15 de setembro de 2022, Gabriel Cassiano, que deixou o PDT no ano passado e era fervoroso cabo eleitoral de Ciro Gomes, anunciou que uma ala do partido prepara um manifesto criticando a postura personalista e rancorosa de Ciro, que em nada tem ajudado os demais candidatos pedetistas, e convocando o eleitorado a fazer o voto útil em Lula no primeiro turno.

Celebridades como  Caetano Veloso e Tico Santa Cruz –  tradicionais apoiadores de Ciro – têm se manifestado no sentido de que é importante eleger Lula logo no primeiro turno, para espantar de  vez o fantasma do nazineoliberalismo.

O gradiente de esquiva fará o eleitor consciente evitar o coronel, as alternativas inexpressivas e sem chance, e sobretudo o fantoche fascista guindado ao poder em 2018 para cumprir a agenda predatória do Capital Transnacional em relação ao Brasil.

E o gradiente de aproximação fará com que milhões de votos sejam atraídos pela inescapável força gravitacional do planeta da esperança, também conhecido como Luís Inácio Lula da Silva.





segunda-feira, 18 de julho de 2022

Escolha fácil

 





 

Nelson M. Mendes

Em 2018, o Estadão publicou editorial dizendo que o eleitor brasileiro, no segundo turno da eleição, estava diante de “uma escolha muito difícil”: de um lado estava o Boçal Fascista, medíocre militar reformado, que nada fizera em quase 30 anos de vida parlamentar a não ser beneficiar-se de expedientes corruptos e destilar preconceitos e ódio; do outro, Fernando Haddad, um professor com PhD que tinha sido excelente ministro da Educação e excelente prefeito de São Paulo, a maior cidade brasileira.

Neste decisivo 2022, a escrotíssima trindade do jornalismo – Estadão, Folha e O Globo – continua fazendo o possível para desqualificar o candidato petista e relevar falhas e crimes do Boçal Fascista, que tentará a releição. O problema para a mídia corporativa, representante da “elite do atraso” (Jessé Souza), é que o Boçal Fascista não é mais surpresa, não é mais o outsider que veio para “mudar tudo o que está aí”. Não há mais ilusões, as fake news não vão funcionar. Todos sabem que o boçal carrega todas as características de um fascista au grand complet: é racista, cruel, misógino, homofóbico, etc. Além do mais, do outro lado está simplesmente Lula, um dos líderes mais queridos da história do país.

Por isso, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gregório Duvivier, João Gordo, Martinho da Vila, Marieta Severo, Zélia Duncan, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Antônio Pitanga e até mesmo políticos conservadores como Marcelo Ramos, Arthur Virgílio e José Aníbal estão convencidos da necessidade de eleger Lula em 2022, de preferência no primeiro turno. O novo presidente da ABI, Octávio Costa; o tucano Aloysio Nunes; o ex-governador do Maranhão, Flávio Dino, o ex-governador de Alagoas Renan Filho; e o ex-deputado federal José Genoíno concordam que nunca foi tão fácil escolher: de um lado está Bolsonaro, representando a desigualdade, a miséria, o fascismo; do outro está Lula, representando igualdade, a abundância, a democracia. Segundo a socióloga Esther Solano, “correr o risco de Lula não ganhar é inimaginável. [...] É o Brasil que está em jogo, minha vida, sua vida. Para mim, é Lula no primeiro turno [...] . Diante da fome, [...] da dor, não tem muito mais especulação possível.” A professora e filósofa Márcia Tiburi é enfática: “Quem fala em votar no Lula só no segundo turno não tem dignidade.” No próprio PDT, partido do insistente Ciro Gomes, muitos defendem o voto útil em Lula no primeiro turno, para que Bolsonaro tenha menos chances de ensaiar algum golpe e seja varrido imeditamente para o esgoto da História. A filósofa Viviane Mosé acrescenta que é preciso usar estratégias para vencer a terceira guerra mundial, que é a da verdade contra a mentira. (Nos últimos anos a  mentira venceu algumas batalhas no Brasil: Dilma sofreu um golpe, Lula foi preso, o Boçal Fascista foi eleito num avassalador aluvião de fake news.)




Existe uma tendência, forjada em décadas de propaganda, a que “ideias de esquerda” sejam consideradas retrógradas; e que os que se aventuram a aplicá-las sejam considerados sonhadores incompetentes, apegados a ideologias cheirando a mofo. Esse é o discurso que sustenta o Capitalismo, que há décadas se apresenta com os trajes do Neoliberalismo. Mas a verdade – como não custa lembrar – é que a doutrina neoliberal é em si uma farsa, engendrada para tapar precariamente o abismo a que o mundo fora levado em 1929 pelos realistas e competentes capitalistas.

Depois do famoso Crash da Bolsa, em 1929, os capitalistas ficaram mais cautelosos. Afinal, muitas fortunas, frágeis e artificiais castelos construídos com papéis, haviam desmoronado da noite para o dia. Mas a ambição, como o fascismo, está sempre no cio; e, passadas algumas décadas, os financistas novamente começaram a se alvoroçar e a pressionar os governos para dar mais liberdade ao “mercado”. Foi – digamos – a  segunda fase do Neoliberalismo, que pôde espraiar-se mundo afora livremente, graças à dissolução da União Soviética. O resultado seria uma absurda concentração de riqueza; e a crise financeira de 2008. Mas o Neoliberalismo era a vanguarda do pensamento econômico; se os fatos não endossavam a excelência da doutrina, pior para os fatos. Entretanto, muitos economistas de alto nível, como os mundialmente conhecidos Joseph Stiglitz e Paul Krugman, apontaram as falhas do projeto neoliberal, assim como a resistência do mundo financeiro a reconhecer as dimensões e o significado da catástrofe de 2008.

No Brasil, se há economistas e comentaristas econômicos alinhados ao poder econômico transnacional – adeptos, portanto, do fundamentalismo neoliberal –, há felizmente muitos pensadores econômicos honestos e independentes; como por exemplo Adriano Benayon, crítico feroz da falácia neoliberal, e um dos primeiros a anunciar a formação da bolha financeira que estouraria em 2007-2008. Mais de mil deles, como Luiz Gonzaga Belluzo e Leda Paulani, assinaram um manifesto, lançado em 14 de junho de 2022, em apoio a Lula, considerado no momento o único candidato em condições de tirar o Brasil do caos socioeconômico a que foi levado pelo Boçal Fascista eleito em 2018. O manifesto diz que “o governo de Jair Bolsonaro implantou um projeto autodestrutivo”, de “desmonte da economia nacional”. Na verdade, o Boçal Fascista foi contratado para completar o mais recente capítulo do processo de saqueio do Brasil, iniciado com o golpe contra Dilma Roussef em 2016.

Também em meados de junho de 2022, a Conferência por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional produziu um manifesto propondo o fim do Teto de Gastos (na prática, há muito tempo superado por Bolsonaro, sobretudo por conta do “orçamento secreto” e da gastança eleitoreira), a volta do Bolsa-Família, e a revisão da antirreforma trabalhista, que resultou no empobrecimento do trabalhador formal e informal. O manifesto defende ainda o fomento da agricultura familiar e orgânica, bem como a retirada de subsídios ao agronegócio, o qual produz apenas para exportação e enriquece meia-dúzia de latifundiários, num país em que 125,2 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar (incerteza sobre se terão o que comer), das quais 33,1 milhões passam fome no mais estrito e cruel sentido. Lembrando que em 2014, graças aos programas sociais, como o Bolsa-Família, bem como aos milhões de empregos gerados pelos governos petistas, o Brasil foi retirado pela ONU do chamado Mapa da Fome. A mesma ONU, em relatório publicado em meados de maio de 2022, registrou que a fome no mundo se agravara exatamente a partir de 2014! Ou seja: os governos petistas (Lula e Dilma) haviam trabalhado, tanto quanto possível, no contrafluxo da corrente neoliberal, que produzira desigualdade e fome em âmbito mundial. Escreve Eduardo Moreira em seu livro Travessia:

Mostrei no meu último livro, Economia do desejo: a farsa da tese neoliberal, como a tese [...] de que o estímulo ao lucro e à competição resulta no melhor cenário para consumidores  e empresários [...] pode ser incrivelmente sedutora do ponto de vista lógico. Mas mostrei também como os resultados verificados se distanciam muito do que a tese é capaz de prever [...]  

Descrevi [...] o caso da incrível agroindústria de leite e derivados de um assentamento do MST que visitei no interior do Paraná, onde tudo funciona priorizando a cooperação com outras cooperativas menores e condições justas de trabalho para os funcionários. O lucro é muito mais uma consequência [...] do que uma prioridade. Pensando assim, eles resistiram à maior crise do setor em décadas e transformaram [...] uma pequena agroindústria em um modelo de eficiência [...]. Nenhum livro nas prateleiras dos banqueiros vai explicar como isso é possível.

As economistas Tereza Campello e Sandra Brandão publicaram  no conservador (e até bolsonarista) jornal Folha de São Paulo, no início de junho de 2022:

Com Michel Temer e a emenda constitucional 95, que congelou os gastos sociais, teve início o desmonte da estratégia reconhecida pela ONU. O desemprego passou para a casa dos dois dígitos desde 2016, e cresceu a parcela dos trabalhadores sem direitos trabalhistas e com renda baixa e instável. A reforma trabalhista não produziu mais emprego [como prometido], mas resultou em mais precariedade e insegurança. A não correção dos benefícios do Bolsa-Família diminuiu sua capacidade de sustentar a renda dessa parcela de brasileiras e brasileiros.

Com Jair Bolsonaro, o desmonte foi aprofundado. [...]

Para superar a fome novamente, o Brasil precisará voltar a crescer, é certo, mas precisará também reconstruir e aprimorar políticas públicas.

Com o Boçal Fascista, naturalmente, tudo piorou; porque ele conseguiu trazer o Brasil, na prática, para o que os economistas chamam estagflação – uma combinação nefasta de estagnação com inflação. Desemprego altíssimo, precarização do trabalho, abandono das políticas sociais, entrega das riquezas nacionais, estagnação econômica, inflação: foi a isso o que nos trouxe a famigerada Ponte para o Futuro, projeto lesa-pátria que está na própria origem do golpe contra Dilma. (O selo do desastre veio no dia 6 de julho de 2022, quando a ONU divulgou oficialmente que o Brasil havia sido novamente incluído no Mapa da Fome.) De fato, a prisão ilegal de Lula foi o segundo movimento dessa sinfonia sinistra, que previa retirar dos brasileiros o Brasil e principalmente o futuro.  Bolsonaro é o terceiro e último movimento dessa sinfonia – ou ópera bufa.

Em 31 de maio  o de 2022, foi lançado em São Paulo, num evento que contou com a participação de inúmeros artistas, o Livro “Querido Lula”, que reúne 46 das 25 mil cartas que Lula recebeu enquanto esteve ilegalmente preso em Curitiba. Nesse período Lula recebeu também inúmeros presentes e muitas visitas, dentre as quais: o sociólogo português Boaventura de Souza Santos; o filósofo e linguista estadunidense Noam Chomsky; o cantor, compositor e escritor Chico Buarque; o Nobel da Paz Perez Esquivel; o sociólogo italiano Domenico De Masi; o ator e ativista estadunidense Danny Glover; o escritor Fernando Morais; o economista Bresser Pereira; o teólogo e escritor Leonardo Boff; o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica; a ex-presidente Dilma Roussef; e – claro – muitas lideranças sociais e partidárias, como João Pedro Stédille (MST), Guilherme Boulos (MTST), Gleisi Hoffman (PT), Fernando Haddad (PT), Carlos Lupi (PDT), Vagner Freitas (CUT), etc. Lula também recebeu lideranças religiosas, como a monja Cohen e Pai Caetano de Oxóssi, dentre outras.

A verdade é que o ex-presidente Lula, apesar de toda a perseguição judicial e midiática, jamais deixou de contar com o carinho e o respeito de grande parcela do povo brasileiro. Também continuou sendo considerado mundo afora como um dos maiores líderes do nosso tempo. (O jornalista Leonardo Attuch gracejou certa vez que, se houvesse uma eleição para presidente do mundo, Lula ganharia. Acreditamos que sim, até porque, além do prestígio e do carisma, ele certamente conta com um dos menores índices de rejeição dentre todos os possíveis postulantes a um hipotético cargo de presidente mundial...)

Expressão de carinho e respeito foi a Vigília Lula Livre, coordenada pela Frente Brasil Popular, formada por movimentos sociais como o Movimento dos Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); e por partidos progressistas, com natural destaque para o Partido dos Trabalhadores (PT): diariamente dezenas de pessoas, de todas as partes do Brasil, se reuniam nas proximidades do prédio da Polícia Federal para gritar em coro, várias vezes, as saudações correspondentes ao momento do dia: “Bom dia, presidente Lula!”; “Boa tarde, presidente Lula!”; “Boa noite, presidente Lula!”. O ex-presidente confessou que, embora de sua cela não pudesse ver os manifestantes, aquelas saudações lhe incutiram grande energia moral. E, ao que se sabe, o caso é inédito na história mundial; assim como, segundo a historiadora francesa Maud Chirio, organizadora do livro “Querido Lula”, é inédito o caso de livro de cartas recebidas pelo prisioneiro, porquanto o comum é a publicação de “cartas [...] escritas por líderes encarcerados para o público”.

É um curioso exercício imaginar se o Boçal Fascista, uma vez escorraçado do poder pelo voto popular, e devidamente encarcerado, para pagar pelos seus muitos crimes, receberá cartas, presentes e visitas. (Aliás, as redes sociais publicaram muitos memes dando conta de que, enquanto o presidiário Lula recebia celebridades brasileiras e estrangeiras, o Boçal Fascista, no cargo de presidente, só conseguia posar ao lado de milicianos, de artistas de extrema direita e de políticos do baixíssimo clero.)

Apesar de boçal, o fascista sabe que seu destino é a cadeia. Por isso se empenha tanto em tumultuar, colocar em dúvida o sistema de voto eletrônico, que o elegeu sucessivas vezes por quase 30 anos. O seu desejo é melar as eleições de alguma forma, de modo a obter uma prorrogação do mandato e a permanência de suas imunidades. Talvez, nas profundezas asquerosas daquela mente malévola, ele imagine que um improvável encadeamento de fatos lhe permita continuar como uma espécie de presidente vitalício...

O sonho do Boçal seria um pesadelo mundial. Por isso, jamais acontecerá. O embaixador Celso Amorim declarou: “Nunca houve golpe no Brasil sem apoio da grande mídia, da elite brasileira e dos Estados Unidos. Bolsonaro não tem nenhum dos três elementos.”

É bem verdade que a grande mídia, tradicionalmente representante do poder econômico, nunca teve simpatia por Lula; é verdade, obviamente, que essa elite econômica tampouco morre de amores pelo ex-metalúrgico; e é desnecessário dizer que os Estados Unidos preferem líderes que funcionem como despachantes ou capatazes ao sul do Equador. (O Boçal Fascista, se não fosse tão xucro e peçonhento – uma espécie de Hitler degenerado –, seria o presidente brasileiro ideal para os Estados Unidos.)

Entretanto, a grande mídia, que começou a perseguir Lula já nos anos 70 e construiu a narrativa mentirosa (em negrito, porque não há outro termo) que resultou na sua prisão em 2018, já não parece tão determinada a demolir o ex e futuro presidente. É bem verdade – mais uma vez – que a mídia corporativa gostaria de um candidato de centro-direita, um fascista “limpinho e cheiroso”. Por isso, acalentou durante algum tempo a quimera da “terceira via” (nem Lula, nem o Boçal Fascista), e tentou a todo custo inflar a imagem de Sérgio Moro, o “juiz ladrão” (segundo a  irretocável definição do deputado Glauber Braga). Mas não deu certo: o próprio ex-juiz, que não decolava nas pesquisas, terminaria desistindo da candidatura à presidência, e hoje tenta voo político mais modesto, lá no seu Paraná de origem. A motivação de Moro, mais do que ambição política, é conquistar as famosas “imunidades parlamentares” – para pelo menos adiar a prisão com que terá de pagar não só pelos crimes cometidos no âmbito jurídico, em sua perseguição inquisitorial a Lula, mas pela destruição que produziu na economia brasileira.

Mesmo a famosa Faria Lima – a nossa Wall Street – parece contar os dias para ver pelas costas o Boçal Fascista. O financista Marcelo Kayath reconhece: “O melhor presidente para o mercado de capitais e para a Bolsa foi Lula. [...] O mercado de capitais decolou. É verdade que ele se beneficiou do ciclo de commodities, mas também há um ciclo hoje e o Brasil não tem se beneficiado.”

O economista Paulo Nogueira Batista Júnior também concorda que Lula não é nenhum bicho-papão para o poder econômico-financeiro, muito pelo contrário: “Lula nunca foi hostil aos empresários e sempre foi ‘frente-amplista’.”

Lula foi melhor em todos os sentidos. Eduardo Moreira traduz em números o sucesso dos governos Lula, e, demonstrando que ninguém saiu perdendo, diz que só o ódio de classe pode explicar que setores da elite e da classe média continuem avessos ao ex e futuro presidente. (Leonel Brizola dizia que era odiado pela elite exatamente porque ousara proporcionar aos pobres melhores condições de saúde, alimentação e educação, com o projeto dos CIEPs.)

Enquanto isso, o Boçal Fascista segue apresentando provas de que é exatamente o pior presidente da História: incompetente, tosco, covarde, ignorante, machista, racista, disseminador de ódio.

Em 24 de maio de 2022, a polícia do governador bolsonarista Cláudio Castro (o famigerado BOPE), associada às polícias Federal e Rodoviária Federal, promoveu o que ficaria conhecido como Chacina da Vila Cruzeiro: 23 pessoas foram executadas. Um ano antes, também no Rio de Janeiro, havia ocorrido uma operação ainda mais letal, a Chacina do Jacarezinho: 29 mortos. (Os números podem variar para mais, de acordo com as fontes.) O ativista André Constantine, negro e favelado, diz que o Estado pratica o “genocídio” do povo negro nas favelas, verdadeiros “campos de extermínio”. As chacinas se institucionalizaram de tal forma, que viraram verbetes na Wikipédia. Na descrição do episódio da Vila cruzeiro, consta que “em apenas um ano, ocorreram 39 chacinas no Estado, deixando 182 mortos”.

A truculência policial não foi invenção de Cláudio Castro ou mesmo do igualmente fascista Wilson Witzel, o governador que sofreu impeachment e de quem Castro era vice. Mas, com o Boçal Fascista no Planalto, a violência não só não foi reprimida, como na verdade foi incentivada. Os assassinos e torturadores de farda foram – para usar a palavra que nos últimos anos se enraizou no idioma – empoderados. Tanto que o ridículo e farsesco empresário Luciano Hang (o “véio da Havan”), tradicional aliado do Boçal Fascista, se sentiu à vontade para reproduzir piada que andou circulando entre as hostes bolsonaristas: “O IBOPE aumenta o número de eleitores de Lula, e o BOPE diminuiu.” (O instituto de pesquisas, de fato, deixou de existir, em sua configuração tradicional, em 2021; mas não seria por esse detalhe crono-institucional que os bolsonaristas iriam perder a piada.)

Nem havia secado o sangue na Vila Cruzeiro, e no dia 25 de maio, na cidade de Umbaúba, Sergipe, agentes da Polícia Rodoviária Federal detiveram o motoboy Genivaldo de Jesus Santos, que estava sem capacete. Genivaldo foi colocado na mala da viatura, onde morreu sufocado por spray de pimenta e gás lacrimogêneo. O Boçal Fascista, que havia elogiado o comportamento dos policiais no massacre da Vila Cruzeiro, tentou justificar a execução na câmara de gás e disse que a imprensa está “sempre ao lado da bandidagem”.

No final de maio de 2002, andaram circulando vídeos de uma certa Alfacon – escola de preparação de policiais. Num dos vídeos, o policial rodoviário Ronaldo Bandeira ensina exatamente como transformar uma viatura policial em uma “câmara de gás”. Noutro vídeo, divulgado já em 2020, o ex-policial militar Norberto Florindo Júnior diz que, nas favelas, “entrava chacinando”: matava “mãe, filho, bebê”. E justificava: “Uma vagabunda criminosa só vai gerar o quê? Um vagabundinho criminoso.”

Em tempo: o Boçal Fascista, já no cargo de presidente, fez propaganda para a Alfacon – uma espécie de versão doméstica e em ponto pequeno da famigerada Escola das Américas (School of the Americas), criada pelos Estados Unidos na década de 40 para ensinar a como dar golpes de Estado, praticar tortura e outras amenidades. (A escola ganhou fama tão ruim, que hoje está hipocritamente rebatizada como Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança.) A familícia tem relações íntimas com a Alfacon: foi numa visita à escola que Eduardo, filho do Boçal Fascista, fez a bravata de que bastariam um cabo e um soldado para fechar o STF.

Em 5 de junho de 2022, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Philips foram dados como desaparecidos na amazônia. O governo federal nada fez para agilizar as buscas; o Boçal Fascista estava em visita aos EUA, para participar da Cúpula das Américas, e seria pelo menos incômodo se a notícia do assassinato do jornalista e do indigenista explodisse na imprensa internacional exatamente no momento em que se discutiam assuntos como genocídio indígena e desmatamento – fenômenos inextricavelmente relacionados às mudanças climáticas que cada vez mais assombram a humanidade nesse começo de século XXI. A notícia, convenientemente, só sairia 11 dias depois, quando a IX Cúpula das Américas já se havia encerrado. De volta ao Brasil, o Boçal Fascista, que já havia tentado atribuir a culpa às vítimas, que teriam participado de uma “aventura”, dizendo ainda que Dom Philips era “malvisto” pelos garimpeiros e madeireiros, participou de uma de suas vexaminosas motociatas exatamente em Manaus – talvez a capital mundial da emergência climática –, como que escarnecendo dos mortos, da questão indígena, da questão ambiental.

O Boçal Fascista, como se sabe, foi em grande parte construído pela mídia; que, a serviço da “elite do atraso”, havia também, décadas antes, construído outro canditado “antissistema”, que vinha para “revolucionar”: Fernando Collor, o “caçador de marajás”. (Recentemente Collor protagonizou cena ridícula, ao gritar repetidas vezes, num evento em Maceió, o nome do Boçal Fascista. Depois se soube que o BNDES decidiria perdoar 70% da dívida do grupo Collor.)

Num país com milhões de analfabetos (funcionais ou de fato) e milhões de pessoas com problemas cognitivos relacionados à desnutrição na primeira infância (talvez as principais preocupações do saudoso Brizola), é natural que as massas sejam hipnotizadas pelas prestidigitações políticas e midiáticas. Elas não conseguem entender certos problemas, não conseguem ir à essência das coisas. Mas todos conseguem entender a canalhice, a desumanidade, a crueldade.

O núcleo duro de apoiadores do Boçal Fascista (que gostamos de chamar de “fascistas congênitos”) não se deixa impressionar pelas demonstrações de psicopatia dadas pelo boçal. Eles o elegeram sabendo de todas as suas nefandas características; talvez até por causa delas.




Mas os eleitores menos convictos, que foram ludibriados pela mídia e pelas fake news veiculadas pelas redes sociais – esses podem eventualmente ficar chocados com certas atitudes do Boçal Fascista. Por exemplo: quando ele, no auge da pandemia de Covid-19, imitou pacientes na agonia da falta de oxigênio (problema que afetou particularmente Manaus, em razão da negligência criminosa do governo federal), alguns eleitores entenderam que aquilo era a gota d’água: como o presidente podia ser tão insensível, debochar daquela maneira do sofrimento alheio?

Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips tiveram naturalmente efeito devastador, internacionalmente, na imagem há muito em putrefação do Boçal Fascista. O núcleo duro, entretanto, não foi muito afetado pelo caso; ele não está preocupado com índios, floresta, mudança climática.

Até que, no dia 10 de julho de 2022, em Foz do Iguaçu, o bolsonarista Jorge José Guaranho invade a festa particular em que o militante petista Marcelo Arruda comemorava seus 50 anos, e, depois de gritar “Aqui é Bolsonaro!” e “Luladrão!”, mata a tiros o aniversariante.

O Boçal Fascista, como não poderia deixar de ser, tentou negar o caráter político do episódio, e resumir tudo a “uma briga entre duas pessoas”. Nos dias subsequentes, procurou inclusive fazer contato com irmãos bolsonaristas da vítima, na esperança de que eles, numa coletiva de imprensa, pudessem apresentar dos fatos uma versão que não comprometesse o Psicopata do Planalto. Pamela Silva, viúva de Marcelo, objetou: “Os irmãos de Marcelo não estavam na festa [...]”

A História tem desses turning points: aquele fato que dispara um gatilho, aquele lance que dá nova configuração ao tabuleiro.

Depois do assassinato de Marcelo Arruda, a popstar Anitta, que tem dezenas de milhões de seguidores nas redes sociais, publicou no Twitter: “Eu havia falado aqui nas redes que não apoiaria Lula nas eleições por querer algo novo [...] Mas a postura extremamente agressiva e antidemocrática dessa gente não me deixa outra opção. É ‘Lula-lá’... [...]” A cantora faz agora campanha para que Lula vença no primeiro turno.

A jornalista Hildegard Angel comentou o crescimento da candidatura Lula, agora anabolizada (ou anittabolizada) pelo apoio da cantora de projeção internacional: “É uma onda forte, um tsunami de amor ao Brasil [...] arrebatando todos nós.”

Um tsunami, como previu Dilma Roussef, que não deixará pedra sobre pedra.