quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

América Latina - Populismo, mídia e meias-verdades


Luiz Felipe Haddad - T. Imprensa, 30 de janeiro de 2008.


É impressionante o modo com que a grande imprensa, do Rio e, sobretudo, de São Paulo, comprometida com o neoliberalismo dominante, trata de fazer com que a grande massa de leitores tenha uma visão distorcida, e unilateral, dos problemas que afligem a nós, e a todos os povos irmãos, ibero-americanos, abaixo do "Rio Grande" ou "Rio Bravo", que nos separa da superpotência estadunidense.


É muito significativo que órgãos de grande poderio comunicativo se dediquem, de forma orquestrada, a apresentar "meias-verdades", cujo efeito danoso se assemelha às conseqüências de um tempo de mormaço, nas queimaduras de pele, sobre pessoas que vão à praia e lá permanecem por várias horas, iludidas pela "ausência de sol".


No dia em que este artigo é escrito, a "Folha de S. Paulo" publicou artigo da lavra de um dos mais respeitados juristas pátrios, em que atribui ao "populismo" a causa completa do atraso em nosso subcontinente; e ainda insinua que o pré-candidato Barack Obama, do Partido Democrata norte-americano, seria político dessa natureza.


Assentando suas baterias contra Fidel Castro, como se ele se limitasse a um assassino violento do tipo "Hitler/Stalin", nada comenta, nem de leve, sobre os fatores terríveis de injustiça social e de alienação de soberania cubana, antes da Revolução de 1959, em prol do vizinho setentrional, desde a pseudo-independência da Espanha, no começo do século findo, quando foi lá imposto verdadeiro protetorado, cujo resíduo, ainda longe de ser eliminado, é a ocupação, pela força, da base de Guantanamo.


Nem toca no problema do continuado bloqueio, por quase meio século, que só contribui para dar argumentos à extrema esquerda, naquela ilha, em manter, por tempo indeterminado, o poder ditatorial do partido único. Para tal articulista, na Venezuela, no Equador e na Bolívia, tudo devia ser "democrático" antes da ascensão respectiva de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Não importando a corrupção terrível que acicatava o primeiro desses países antes de 1999, nem o sucateamento econômico e estrutural do último, nem a miséria intensa, agregada à discriminação da população indígena do altiplano, no segundo.


No último domingo, a revista "Veja" publicou matéria, ultra-radical na defesa do sistema capitalista globalizado, insinuando que partidos e facções de esquerda democrática, aqui e no exterior, reunidos no "Foro de São Paulo", sejam elementos de vasta conspiração, sob inspiração de Lenin e sucessores!
Não se trata, aqui, repita-se, de defender regimes de força, ou quase chegando a tanto, inspirados pelo marxismo-leninismo, cujo fracasso fez com que a União Soviética tivesse caído, arrastando os iguais sistemas de nações adjacentes, a exemplo da destruição da monarquia brasileira pelo "putsch" de novembro/1889; ou seja, sem nenhuma resistência de peso. Mas sim de frisar que a "nova direita", bem diferente da antiga, se caracteriza pela defesa intransigente do "Estado Mínimo", "garantidor dos contratos"; do mercado como solução de tudo; e do combate a quaisquer lideranças que incentivem as massas populares a se revoltarem contra suas tristes condições.


Isso, sob a anestesia de falsa interpretação da liberdade, confundida com libertinagem, e de uma filosofia de competição, a ser vencida pelos "fortes", mesmo que deixando para trás multidões de "fracos". Tudo isso merece repúdio da cidadania consciente. Quem realmente ama a democracia quer vê-la não só formalmente, mas no aspecto material; em que todos tenham assegurados os direitos básicos, individuais e sociais.


Quem abre o pensamento preconceituoso à razão, que deflui da observação contínua dos fatos, não pode deixar de perceber que em tradicionais países do Velho Continente conquistas sociais profundas já fazem parte da História, ao passo que entre nós ainda se acham a "anos-luz" de distância. Quem coloca sua grande cultura no cotejo da isenção e da lealdade não pode deixar de fazer distinção entre regimes totalitários, ou autoritários, do chamado "socialismo real", danosos à dignidade da pessoa humana, e regimes democráticos sob governos voltados para a construção de sociedade justa e fraterna, na prevalência dos valores do trabalho sobre os do capital.


Aliás, talvez por covardia, a citada "grande mídia", que "bate com força" em qualquer governo social-democrata da América Latina, é muito mais tímida quando se trata de governo, da mesma feição, na Europa. François Mitterrand, na França, levou, quando muito, "tapas com luvas de pelica". Já Daniel Ortega, na muito sofrida Nicarágua, foi tratado "de bandido para baixo". Vargas e Perón, no Brasil e na Argentina, que, apesar das falhas, muito fizeram pela ascensão dos trabalhadores e pela emancipação econômica, são hoje apenas apontados como "simpatizantes do fascismo".


Como se antes deles tudo corresse bem, aqui e lá, sob as oligarquias do café com leite, em nosso País, e sob as do trigo e do gado, no vizinho platino. Daí a grande importância de ser prestigiada a imprensa independente, como a contida neste corajoso jornal. Reflitamos seriamente sobre isso, e ajamos conforme.


Luiz Felipe da Silva Haddad é desembargador TJ/RJ

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