Texto original, por
Saul Leblon:
Texto editado / NMM:
Quando o extraordinário acontece, protocolos e ferramentas da rotina se
tornam obsoletos. O século XXI sofreu um corte de consequências equivalentes ao conflito
que redesenhou o mundo, após a derrota de Hitler, em 1947. Uma pandemia castiga
o planeta há seis meses.
Continuará a
destruir vidas e riqueza até que uma vacina possa enfrentá-la nos seus próprios
termos. Há uma outra
vacina, porém, da qual tampouco a humanidade poderá prescindir. O coronavírus
expôs a dramática condição humana no mundo estraçalhado da desordem neoliberal. O peso morto da
supremacia rentista asfixia povos e nações desde a crise de 2008. Capitais
celibatários se reproduzem sem agregar renda nem empregos. O dinheiro se alimenta de dinheiro, e se reproduz diretamente na forma
dinheiro.
Para sustentar taxas de acumulação incompatíveis com a democracia, a vida e o meio ambiente, submete-se a humanidade a uma espiral de dilapidação global de direitos, patrimônio público e recursos naturais. Não há nada de errado com o capitalismo, portanto, quando as praças financeiras do mundo rico batem recordes de rentabilidade, enquanto o cenário ao redor é de desemprego, empobrecimento e desigualdade a caminho da fome.
A pandemia expôs a
vulnerabilidade da vida humana diante de um capitalismo que atingiu a sua
plenitude através da acumulação financeira estéril. Não por acaso, classes
proprietárias pressionam governantes para reconduzir populações de volta à
suposta 'normalidade’.
Não há precedente de regresso ao ‘normal’ no roteiro das grandes rupturas históricas. Entre outras razões, porque elas inoculam nas entranhas da sociedade a consciência do intolerável. Herói festejado da Segunda Guerra, Churchill foi derrotado pelos trabalhistas em 1945: seu programa de manutenação do arrocho social e econômico foi batido pelo projeto de um Estado do Bem-Estar Social defendido pelos trabalhistas.
As elites hoje, a
exemplo de Churchill, em 45, não sabem o que fazer com a nitroglicerina
acumulada na ruptura pandêmica. A esquerda não pode incorrer na mesma
hesitação. Dar voz organizada à insatisfação latejante é o que de mais importante
as forças progressistas têm a fazer nos próximos dias, semanas, meses e anos.
As eleições municipais adiadas de novembro são uma oportunidade preciosa. O caso particular de São Paulo merece um olhar redobrado. O Partido dos Trabalhadores pode ter subestimado o chamado da história nesse momento. O PT realizou sua convenção municipal, em maio, como se as ferramentas da rotina pudessem dar conta do extraordinário que assalta todas as dimensões da vida e da sociedade. Se não é para reconectar a sociedade com o futuro, qual será, então, o papel da esquerda na encruzilhada da pós-pandemia capitalista?
As eleições municipais adiadas de novembro são uma oportunidade preciosa. O caso particular de São Paulo merece um olhar redobrado. O Partido dos Trabalhadores pode ter subestimado o chamado da história nesse momento. O PT realizou sua convenção municipal, em maio, como se as ferramentas da rotina pudessem dar conta do extraordinário que assalta todas as dimensões da vida e da sociedade. Se não é para reconectar a sociedade com o futuro, qual será, então, o papel da esquerda na encruzilhada da pós-pandemia capitalista?
São Paulo é, no Brasil, a referência da espoliação laboral, da dominação
subjetiva, da hegemonia midiática, da repressão policial impiedosa que serve de
bússola ao resto do país. Esse núcleo duro de poder e riqueza está incrustado no Estado há mais de 40
anos governado pelo PSDB.
Sugestivamente, aqui a pandemia empilha 1/5 dos cadáveres ceifados em todo o Brasil. Fastígio e desamparo resumem em São Paulo os paradoxos de elevado custo humano e social do Capitalismo em nosso tempo.
Que mensagem o PT
passaria ao Brasil se transformasse a campanha municipal em São Paulo num
poderoso alto-falante aberto ao intolerável que aqui grita? Não apenas aberto: direcionado a fazer do processo eleitoral um movimento para
entregar a cidadãos sem cidadania o comando do seu destino e o destino da maior
cidadela capitalista da América Latina.
A vitória
verde-socialista nas eleições municipais francesas deveria sacudir a inércia
das forças progressistas aqui. 0 sociólogo inglês Richard Sennett –disse que a meta
nos países ricos é reordenar o espaço dos grandes centros urbanos no
pós-pandemia, é criar um mosaico de pequenas cidades dentro da grande cidade. Investimentos keynesianos
em infraestrutura serão necessários. Será preciso reduzir deslocamentos, arejar
espaços, entrelaçar funções (serviços/trabalho/moradias), propiciar o controle
comunitário em diferentes esferas, desde segurança até o combate a futuras
epidemias.
Sennett mostrou-se
cético quanto a viabilidade de transição semelhante em grandes manchas de
pobreza urbana, como é o caso de São Paulo. Mais uma razão para sacudir a
letargia que parece embaçar o olhar do PT sobre o seu futuro e o da cidade.
Sim, será
obrigatório tributar a riqueza financeira. Não basta orçamento, porém. Os
desafios não serão superados apenas com as ferramentas da rotina. A mais dramática
deficiência do país no pós-pandemia continua a ser aquela que explica, em
grande parte, o êxito da aliança conservadora em derrubar Dilma, encarcerar
Lula, demonizar a política e alçar um fascista ao governo do país.
Estamos falando do
enorme descompasso entre a emergência social na qual vivem mais de 100 milhões
de brasileiros (com renda até R$ 15 reais/dia) e a frágil organização política
de que dispõem para cobrar direitos.
A assimetria não é
obra exclusiva da barragem conservadora. O PT tem contas a acertar com esse
saldo da História. A inegável abrangência das mutações econômicas e sociais registradas no ciclo de governos do partido (2003 a
2014) não se fez acompanhar de uma contrapartida relevante no plano da
organização popular. Mais de 20 milhões
de trabalhadores conquistaram um emprego formal entre 2003 e 2013; mas a taxa
de sindicalização não cresceu no período. Milhões de famílias adquiriram
imóveis pelo Minha Casa Minha Vida; sem alterar-se, substancialmente, o número de
associações de moradores. O mercado de massa quase dobrou de tamanho, sem reindustrialização capaz de gerar o excedente
necessário. O Bolsa-Família chegou a 12 milhões de lares – sem um fórum próprio que
os expressasse; imagine-se o poder de resposta de uma organização capilar de
mães do Bolsa-Família, hoje, diante da tragédia do coronavírus...
Assim por diante.
Um país carente de
recursos como o Brasil não resolverá nenhuma de suas pendências históricas sem que o desenvolvimento se faça acompanhar de uma força
social que o conduza.
A centralidade da organização popular é a pedra crucial da agenda. Um projeto progressista para a cidade de São Paulo tem a obrigação de expressá-lo em todas as instâncias e estágios das eleições.
Não se trata de
adereço retórico. Transformações democráticas figuram, muitas vezes, como a
única alavanca capaz de remover obstáculos intransponíveis quando abordados
exclusivamente sob a ótica dos ‘livres mercados’.
O ciclo de governos
do PT no Brasil talvez tenha atingido o limite das mudanças possíveis sem forte ampliação
da organização popular. A suposição de que a consciência de classe escorreria
das gôndolas dos supermercados revelou-se uma trágica ilusão. A derrubada da
Presidenta Dilma – sem resistência organizada – resume o preço alto dessa
miragem.
A convenção
municipal do PT refletiu pouco a lição da História. Mais que isso: não quis, ou
não soube, marcar esse momento com uma estaca de reordenação de prioridades. Não
apenas de metas. Mas da forma de fazer política.
O PT só tem uma
finalidade na história brasileira: entregar-se , concretamente, através
da organização popular, ao povo organizado, de cuja vértebra ele nasceu
embalado no sonho de levar a democracia neste país às suas últimas
consequências, o que não significa outra coisa que não uma democracia
socialista.
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