quinta-feira, 16 de julho de 2020

As nossas grandes esperanças

Texto original, por Saul Leblon:

Texto editado / NMM:



Quando o extraordinário acontece, protocolos e ferramentas da rotina se tornam obsoletos. O século XXI sofreu um corte de consequências equivalentes ao conflito que redesenhou o mundo, após a derrota de Hitler, em 1947. Uma pandemia castiga o planeta há seis meses.

Continuará a destruir vidas e riqueza até que uma vacina possa enfrentá-la nos seus próprios termos. Há uma outra vacina, porém, da qual tampouco a humanidade poderá prescindir. O coronavírus expôs a dramática condição humana no mundo estraçalhado da desordem neoliberal. O peso morto da supremacia rentista asfixia povos e nações desde a crise de 2008. Capitais celibatários se reproduzem sem agregar renda nem empregos. O dinheiro se alimenta de dinheiro, e se reproduz diretamente na forma dinheiro.

Para sustentar taxas de acumulação incompatíveis com a democracia, a vida e o meio ambiente, submete-se a humanidade a uma espiral de dilapidação global de direitos, patrimônio público e recursos naturais. 
Não há nada de errado com o capitalismo, portanto, quando as praças financeiras do mundo rico batem recordes de rentabilidade, enquanto o cenário ao redor é de desemprego, empobrecimento e  desigualdade a caminho da fome.

A pandemia expôs a vulnerabilidade da vida humana diante de um capitalismo que atingiu a sua plenitude através da acumulação financeira estéril. Não por acaso, classes proprietárias pressionam governantes para reconduzir populações de volta à suposta 'normalidade’.

Não há precedente de regresso ao ‘normal’ no roteiro das grandes rupturas históricas. Entre outras razões, porque elas inoculam nas entranhas da sociedade a consciência do intolerável. 
Herói festejado da Segunda Guerra, Churchill foi derrotado pelos trabalhistas em 1945: seu programa de manutenação do arrocho social e econômico foi batido pelo projeto de um Estado do Bem-Estar Social defendido pelos trabalhistas.
As elites hoje, a exemplo de Churchill, em 45, não sabem o que fazer com a nitroglicerina acumulada na ruptura pandêmica. A esquerda não pode incorrer na mesma hesitação. Dar voz organizada à insatisfação latejante é o que de mais importante as forças progressistas têm a fazer nos próximos dias, semanas, meses e anos.

As eleições municipais adiadas de novembro são uma oportunidade
preciosa. O caso particular de São Paulo merece um olhar redobrado. O Partido dos Trabalhadores pode ter subestimado o chamado da história nesse momento. O PT realizou sua convenção municipal, em maio, como se as ferramentas da rotina pudessem dar conta do extraordinário que assalta todas as dimensões da vida e da sociedade. Se não é para reconectar a sociedade com o futuro, qual será, então, o papel da esquerda na encruzilhada da pós-pandemia capitalista?

São Paulo é, no Brasil, a referência da espoliação laboral, da dominação subjetiva, da hegemonia midiática, da repressão policial impiedosa que serve de bússola ao resto do país. Esse núcleo duro de poder e riqueza está incrustado no Estado há mais de 40 anos governado pelo PSDB.

Sugestivamente,  aqui a pandemia empilha 1/5 dos cadáveres ceifados em todo o Brasil. Fastígio e desamparo resumem em São Paulo os paradoxos de elevado custo humano e social do Capitalismo em nosso tempo.

Que mensagem o PT passaria ao Brasil se transformasse a campanha municipal em São Paulo num poderoso alto-falante aberto ao intolerável que aqui grita? Não apenas aberto: direcionado a fazer do processo eleitoral um movimento para entregar a cidadãos sem cidadania o comando do seu destino e o destino da maior cidadela capitalista da América Latina.

A vitória verde-socialista nas eleições municipais francesas deveria sacudir a inércia das forças progressistas aqui. 0 sociólogo inglês Richard Sennett disse que a meta nos países ricos é reordenar o espaço dos grandes centros urbanos no pós-pandemia, é criar um mosaico de pequenas cidades dentro da grande cidade. Investimentos keynesianos em infraestrutura serão necessários. Será preciso reduzir deslocamentos, arejar espaços, entrelaçar funções (serviços/trabalho/moradias), propiciar o controle comunitário em diferentes esferas, desde segurança até o combate a futuras epidemias.

Sennett mostrou-se cético quanto a viabilidade de transição semelhante em grandes manchas de pobreza urbana, como é o caso de São Paulo. Mais uma razão para sacudir a letargia que parece embaçar o olhar do PT sobre o seu futuro e o da cidade.

Sim, será obrigatório tributar a riqueza financeira. Não basta orçamento, porém. Os desafios não serão superados apenas com as ferramentas da rotina. A mais dramática deficiência do país no pós-pandemia continua a ser aquela que explica, em grande parte, o êxito da aliança conservadora em derrubar Dilma, encarcerar Lula, demonizar a política e alçar um fascista ao governo do país.

Estamos falando do enorme descompasso entre a emergência social na qual vivem mais de 100 milhões de brasileiros (com renda até R$ 15 reais/dia) e a frágil organização política de que dispõem para cobrar direitos. 

A assimetria não é obra exclusiva da barragem conservadora. O PT tem contas a acertar com esse saldo da História. A inegável abrangência das mutações econômicas e sociais registradas no ciclo de governos do partido (2003 a 2014) não se fez acompanhar de uma contrapartida relevante no plano da organização popular. Mais de 20 milhões de trabalhadores conquistaram um emprego formal entre 2003 e 2013; mas a taxa de sindicalização não cresceu no período. Milhões de famílias adquiriram imóveis pelo Minha Casa Minha Vida; sem alterar-se, substancialmente, o número de associações de moradores. O mercado de massa quase dobrou de tamanho, sem reindustrialização capaz de gerar o excedente necessário. O Bolsa-Família chegou a 12 milhões de lares – sem um fórum próprio que os expressasse; imagine-se o poder de resposta de uma organização capilar de mães do Bolsa-Família, hoje, diante da tragédia do coronavírus...

Assim por diante.

Um país carente de recursos como o Brasil não resolverá nenhuma de suas pendências históricas sem que o desenvolvimento se faça acompanhar de uma força social que o conduza.

A centralidade da organização popular é a pedra crucial da agenda. Um projeto progressista para a cidade de São Paulo tem a obrigação de expressá-lo em todas as instâncias e estágios das eleições.

Não se trata de adereço retórico. Transformações democráticas figuram, muitas vezes, como a única alavanca capaz de remover obstáculos intransponíveis quando abordados exclusivamente sob a ótica dos ‘livres mercados’.

O ciclo de governos do PT no Brasil talvez tenha atingido o limite das mudanças possíveis sem forte ampliação da organização popular. A suposição de que a consciência de classe escorreria das gôndolas dos supermercados revelou-se uma trágica ilusão. A derrubada da Presidenta Dilma – sem resistência organizada – resume o preço alto dessa miragem.

A convenção municipal do PT refletiu pouco a lição da História. Mais que isso: não quis, ou não soube, marcar esse momento com uma estaca de reordenação de prioridades. Não apenas de metas. Mas da forma de fazer política.

O PT só tem uma finalidade na história brasileira: entregar-se , concretamente, através da organização popular, ao povo organizado, de cuja vértebra ele nasceu embalado no sonho de levar a democracia neste país às suas últimas consequências, o que não significa outra coisa que não uma democracia socialista.

Não é fácil sustentar o rumo no mar revolto do nosso tempo. Mas é pegar ou largar. E largando, deslizar a alma no sumidouro da História, onde repousa o cemitério das grandes esperanças perdidas.

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