quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

O dólar está morrendo. E agora?

 


Texto original de Paulo Nogueira Batista Jr.

 

Texto editado/ NMM:

É possível e desejável criar uma nova moeda internacional como alternativa ao dólar dos Estados Unidos? O tema é controvertido. Acredito que ela é não só possível, como desejável e talvez indispensável.

Já escrevi algumas vezes sobre a criação de uma nova moeda de reserva, inclusive aqui mesmo nesta coluna, sob o título “Como os Brics podem desafiar o dólar”. Desde então, desenvolvi a proposta de forma mais completa e abrangente. Vou resumir a ideia, que certamente precisa de aperfeiçoamentos e revisão.

Na história recente, o papel de moeda internacional foi desempenhado principalmente por moedas nacionais, emitidas e gerenciadas por bancos centrais nacionais. Como os objetivos nacionais do país ou países emissores geralmente não coincidem com os dos demais países, só por acaso a moeda internacional servirá de forma adequada aos interesses dessas outras nações.

Precisamos, na verdade, de algo que não tem precedentes práticos: uma moeda internacional que não desempenha funções nacionais. Mas não há alternativas disponíveis ou eficientes no mundo hoje.

Descartando alternativas

Um cenário possível seria continuarmos convivendo com o dólar (e secundariamente o euro). Mas isso não convém aos países emergentes do Sul Global. O sistema dólar é ineficiente, pouco confiável e até perigoso. Virou um instrumento de chantagem e sanções. Além disso, vai ficando cada vez mais clara a precariedade da economia dos EUA.

O dólar ser substituído por outras moedas do Norte Global também não se mostra factível. O euro também foi desvirtuado como instrumento de sanções. E a situação econômica da Europa é ainda mais problemática do que a dos EUA. O iene japonês tem problemas semelhantes; além disso, a economia japonesa não vai bem. As outras moedas do Norte Global ou são pequenas demais ou sofrem com as fragilidades dos países que as emitem. O ouro, por sua vez, dada a intensa volatilidade do seu preço, não tem condições de substituir o dólar, a não ser parcialmente, como ativo de reserva para os bancos centrais e outros agentes econômicos.

O único cenário seria a internacionalização da moeda chinesa. O renminbi vem se tornando importante no cenário mundial. Mas falta muito para que ele possa substituir o dólar de forma expressiva. E os chineses relutam em tentar.

Por quê? Para que a internacionalização da moeda chinesa fosse viável, haveria pelo menos duas pré-condições: a livre conversibilidade e a disposição de permitir uma grande apreciação cambial. No caso chinês, livre conversibilidade significaria essencialmente remover os controles de capital, elemento central da estabilidade da política econômica chinesa. A valorização externa do renminbi ameaçaria a competitividade das exportações, uma das fontes principais de dinamismo da economia chinesa. Por que mexer em time que está ganhando?

Mesmo que os chineses quisessem a internacionalização da sua moeda, do ponto de vista dos demais países do Sul Global, não estaríamos trocando seis por meia-dúzia? Uma outra moeda nacional, o renminbi, ocuparia o espaço deixado pelo dólar. Não ficaríamos mais ou mesmo na mesma? O renminbi substituiria o dólar, em parte ou totalmente, e a China passaria a emitir o ativo de reserva mundial. O resto do mundo continuaria a experimentar, ainda que de forma talvez mais branda, os problemas que já enfrentamos com o dólar.

Ou seja: há espaço para criar uma nova moeda de reserva. Qualquer proposta  enfrentará problemas geopolíticos (fundamentalmente a resistência dos EUA) e técnicos (não é fácil construir estrutura capaz de gerar confiança na nova moeda). Mas enfrentar o desafio parece necessário, inclusive porque não se pode descartar mais uma crise financeira de grandes proporções nos mercados ocidentais de capitais, como o estouro da bolha acionária associada à inteligência artificial e a empresas de tecnologia. Caso isso venha a ocorrer, a economia dos EUA e o dólar, já fragilizados, enfrentarão uma aceleração do seu declínio. Haverá uma busca desenfreada e desorientada de alternativas. Melhor, portanto, discutir alternativas sem demora.

Um caminho possível

Qual seria o melhor caminho para uma nova moeda?

Um caminho, em tese, seria lastrear a nova moeda em ouro. Contudo, como dar estabilidade a uma nova moeda apoiando-a em um ativo eminentemente instável?

Melhor seria dar confiança e lastrear a nova moeda de outra maneira. Vejamos como. Apresento a seguir uma discussão resumida dos aspectos essenciais.

Quem criaria a nova moeda? – um grupo de países do Sul Global, algo como 15 a 20 países, que incluiria a maioria dos Brics e outras nações emergentes de renda média.

Mas nenhuma instituição existente tem condições de emitir a nova moeda. Teria que ser criada, portanto, uma nova instituição financeira internacional, cuja única e exclusiva função seria emitir a nova moeda. Esse banco emissor não substituiria os bancos centrais nacionais e a sua moeda circularia em paralelo às moedas nacionais dos países do grupo patrocinador e em paralelo às demais moedas nacionais e regionais existentes no mundo. Ficaria restrita a transações internacionais, sem papel doméstico. Não seria, portanto, uma moeda tipo euro, que tomou o lugar das moedas europeias pré-existentes.

Como se garante o sucesso de uma moeda? O essencial é assegurar confiança, o que depende da maneira como o novo arranjo monetário for construído do ponto de vista institucional.

O caminho mais viável incluiriaas seguintes garantias legais: 1) estabilidade da nova moeda em termos de valor; 2) a sua não utilização como instrumento de sanção ou pressão sobre países; 3) autonomia operacional do banco emissor; 4) limite máximo para sua emissão; e 5) lastreamento da moeda numa cesta de títulos públicos dos países patrocinadores.

Abordo os cinco pontos. O primeiro e o quinto demandam um pouco mais de espaço.

A moeda, primeiro ponto, ficaria baseada numa cesta ponderada das moedas dos países participantes. Como todas as moedas da cesta, a nova moeda também seria uma moeda flutuante. Os pesos na cesta seriam dados pela participação do PIB PPP de cada país no PIB total do grupo de patrocinadores. A China ficaria com pelo menos 40/45% do total, dependendo da exata composição do grupo. A cesta teria certa estabilidade proporcionada endogenamente pela presença nela de moedas tanto de países exportadores como de moedas de importadores de commodities. Essa estabilidade poderia ser reforçada exogenamente, estabelecendo-se que a média ponderada seria geométrica e simetricamente aparada. As moedas com grande flutuação, para além de limites pré-estabelecidos, seriam temporariamente excluídas da cesta.

Segundo ponto: o compromisso explícito de não recorrer a sanções faria o contraste com a insegurança resultante do uso abusivo do dólar e do euro como base para punições e chantagem.

A autonomia operacional, terceiro ponto, seria assegurada concedendo aos presidentes e vice-presidentes do banco mandatos relativamente longos (cinco anos, por exemplo). Isso passaria a mensagem de que o banco não estaria facilmente sujeito a interferências políticas e manobras diplomáticas dos seus fundadores. Esse tipo de autonomia não protege totalmente o banco contra interferências, mas tem o seu valor. A administração do banco teria que prestar contas aos países patrocinadores, mas isso seria feito pelos canais institucionais normais, e não por pressões individuais sobre o presidente e os vice-presidentes.

Quarto ponto: um teto contra excesso de emissões; um freio que as moedas ocidentais não têm.

Mas esse teto seria um instrumento secundário, pois o mais relevante é a forma de lastreamento da nova moeda.

Quinto ponto, portanto: definir como lastro uma cesta da títulos nacionais dos países fundadores e daqueles que venham a se juntar depois. O banco emissor emitiria a nova moeda reserva (NMR) e novos títulos de reserva (NRB), cuja taxas de juro seriam atraentes, pois refletiriam os juros dos títulos das nações participantes, todos eles superiores às taxas dos títulos em dólares e euros. A NMR seria plenamente conversível em NRB e estes, por sua vez, na cesta de títulos dos países participantes. O elevado peso da moeda chinesa, emitida por um país de economia sólida, favoreceria a confiança no lastro e na NMR.

A reação do Ocidente

Um grave risco é o de que o Ocidente reaja com ameaças e sanções contra os países envolvidos na criação de uma alternativa ao dólar e ao euro. O Ocidente, em franca decadência, se mostra ainda mais arbitrário e violento do que em outras épocas.

O que temos de nos perguntar, entretanto, é o seguinte: vamos conviver indefinidamente com o sistema monetário e financeiro crescentemente disfuncional que o Ocidente criou desde a Segundo Guerra Mundial, e que vem sendo usado como instrumento geopolítico?

Os próximos anos dirão se os países emergentes estão à altura do desafio de criar uma alternativa ao dólar e ao euro.

Nenhum comentário: