Texto original de Paulo Nogueira Batista Jr.
Texto
editado/ NMM:
É possível e
desejável criar uma nova moeda internacional como alternativa ao dólar dos
Estados Unidos? O tema é controvertido. Acredito que ela é não só possível,
como desejável e talvez indispensável.
Já escrevi
algumas vezes sobre a criação de uma nova moeda de reserva, inclusive aqui
mesmo nesta coluna, sob o título “Como os Brics podem desafiar o dólar”.
Desde então, desenvolvi a proposta de forma mais completa e abrangente. Vou
resumir a ideia, que certamente precisa de aperfeiçoamentos e revisão.
Na história
recente, o papel de moeda internacional foi desempenhado principalmente por
moedas nacionais, emitidas e gerenciadas por bancos centrais nacionais. Como os
objetivos nacionais do país ou países emissores geralmente não coincidem com os
dos demais países, só por acaso a moeda internacional servirá de forma adequada
aos interesses dessas outras nações.
Precisamos,
na verdade, de algo que não tem precedentes práticos: uma moeda internacional
que não desempenha funções nacionais. Mas não há alternativas disponíveis ou
eficientes no mundo hoje.
Descartando
alternativas
Um cenário
possível seria continuarmos convivendo com o dólar (e secundariamente o euro).
Mas isso não convém aos países emergentes do Sul Global. O sistema dólar é
ineficiente, pouco confiável e até perigoso. Virou um instrumento de chantagem
e sanções. Além disso, vai ficando cada vez mais clara a precariedade da
economia dos EUA.
O dólar ser
substituído por outras moedas do Norte Global também não se mostra factível. O
euro também foi desvirtuado como instrumento de sanções. E a situação econômica
da Europa é ainda mais problemática do que a dos EUA. O iene japonês tem
problemas semelhantes; além disso, a economia japonesa não vai bem. As outras
moedas do Norte Global ou são pequenas demais ou sofrem com as fragilidades dos
países que as emitem. O ouro, por sua vez, dada a intensa volatilidade do seu
preço, não tem condições de substituir o dólar, a não ser parcialmente, como
ativo de reserva para os bancos centrais e outros agentes econômicos.
O único
cenário seria a internacionalização da moeda chinesa. O renminbi vem se tornando
importante no cenário mundial. Mas falta muito para que ele possa substituir o
dólar de forma expressiva. E os chineses relutam em tentar.
Por quê?
Para que a internacionalização da moeda chinesa fosse viável, haveria pelo
menos duas pré-condições: a livre conversibilidade e a disposição de permitir
uma grande apreciação cambial. No caso chinês, livre conversibilidade
significaria essencialmente remover os controles de capital, elemento central
da estabilidade da política econômica chinesa. A valorização externa do
renminbi ameaçaria a competitividade das exportações, uma das fontes principais
de dinamismo da economia chinesa. Por que mexer em time que está ganhando?
Mesmo que os
chineses quisessem a internacionalização da sua moeda, do ponto de vista dos
demais países do Sul Global, não estaríamos trocando seis por meia-dúzia? Uma
outra moeda nacional, o renminbi, ocuparia o espaço deixado pelo dólar. Não
ficaríamos mais ou mesmo na mesma? O renminbi substituiria o dólar, em parte ou
totalmente, e a China passaria a emitir o ativo de reserva mundial. O resto do
mundo continuaria a experimentar, ainda que de forma talvez mais branda, os
problemas que já enfrentamos com o dólar.
Ou seja: há
espaço para criar uma nova moeda de reserva. Qualquer proposta enfrentará problemas geopolíticos
(fundamentalmente a resistência dos EUA) e técnicos (não é fácil construir
estrutura capaz de gerar confiança na nova moeda). Mas enfrentar o desafio
parece necessário, inclusive porque não se pode descartar mais uma crise
financeira de grandes proporções nos mercados ocidentais de capitais, como o
estouro da bolha acionária associada à inteligência artificial e a empresas de
tecnologia. Caso isso venha a ocorrer, a economia dos EUA e o dólar, já
fragilizados, enfrentarão uma aceleração do seu declínio. Haverá uma busca
desenfreada e desorientada de alternativas. Melhor, portanto, discutir
alternativas sem demora.
Um
caminho possível
Qual seria o
melhor caminho para uma nova moeda?
Um caminho,
em tese, seria lastrear a nova moeda em ouro. Contudo, como dar estabilidade a
uma nova moeda apoiando-a em um ativo eminentemente instável?
Melhor seria
dar confiança e lastrear a nova moeda de outra maneira. Vejamos como. Apresento
a seguir uma discussão resumida dos aspectos essenciais.
Quem criaria
a nova moeda? – um grupo de países do Sul Global, algo como 15 a 20 países, que
incluiria a maioria dos Brics e outras nações emergentes de renda média.
Mas nenhuma
instituição existente tem condições de emitir a nova moeda. Teria que ser
criada, portanto, uma nova instituição financeira internacional, cuja única e
exclusiva função seria emitir a nova moeda. Esse banco emissor não substituiria
os bancos centrais nacionais e a sua moeda circularia em paralelo às moedas
nacionais dos países do grupo patrocinador e em paralelo às demais moedas
nacionais e regionais existentes no mundo. Ficaria restrita a transações
internacionais, sem papel doméstico. Não seria, portanto, uma moeda tipo euro, que
tomou o lugar das moedas europeias pré-existentes.
Como se
garante o sucesso de uma moeda? O essencial é assegurar confiança, o que
depende da maneira como o novo arranjo monetário for construído do ponto de
vista institucional.
O caminho mais
viável incluiriaas seguintes garantias legais: 1) estabilidade da nova moeda em
termos de valor; 2) a sua não utilização como instrumento de sanção ou pressão
sobre países; 3) autonomia operacional do banco emissor; 4) limite máximo para
sua emissão; e 5) lastreamento da moeda numa cesta de títulos públicos dos
países patrocinadores.
Abordo os
cinco pontos. O primeiro e o quinto demandam um pouco mais de espaço.
A moeda,
primeiro ponto, ficaria baseada numa cesta ponderada das moedas dos países
participantes. Como todas as moedas da cesta, a nova moeda também seria uma
moeda flutuante. Os pesos na cesta seriam dados pela participação do PIB PPP de
cada país no PIB total do grupo de patrocinadores. A China ficaria com pelo
menos 40/45% do total, dependendo da exata composição do grupo. A cesta teria
certa estabilidade proporcionada endogenamente pela presença nela de moedas
tanto de países exportadores como de moedas de importadores de commodities.
Essa estabilidade poderia ser reforçada exogenamente, estabelecendo-se que a
média ponderada seria geométrica e simetricamente aparada. As moedas com grande
flutuação, para além de limites pré-estabelecidos, seriam temporariamente
excluídas da cesta.
Segundo
ponto: o compromisso explícito de não recorrer a sanções faria o contraste com
a insegurança resultante do uso abusivo do dólar e do euro como base para
punições e chantagem.
A autonomia
operacional, terceiro ponto, seria assegurada concedendo aos presidentes e
vice-presidentes do banco mandatos relativamente longos (cinco anos, por
exemplo). Isso passaria a mensagem de que o banco não estaria facilmente
sujeito a interferências políticas e manobras diplomáticas dos seus fundadores.
Esse tipo de autonomia não protege totalmente o banco contra interferências,
mas tem o seu valor. A administração do banco teria que prestar contas aos países
patrocinadores, mas isso seria feito pelos canais institucionais normais, e não
por pressões individuais sobre o presidente e os vice-presidentes.
Quarto
ponto: um teto contra excesso de emissões; um freio que as moedas ocidentais
não têm.
Mas esse
teto seria um instrumento secundário, pois o mais relevante é a forma de
lastreamento da nova moeda.
Quinto
ponto, portanto: definir como lastro uma cesta da títulos nacionais dos países
fundadores e daqueles que venham a se juntar depois. O banco emissor emitiria a
nova moeda reserva (NMR) e novos títulos de reserva (NRB), cuja taxas de juro
seriam atraentes, pois refletiriam os juros dos títulos das nações
participantes, todos eles superiores às taxas dos títulos em dólares e euros. A
NMR seria plenamente conversível em NRB e estes, por sua vez, na cesta de
títulos dos países participantes. O elevado peso da moeda chinesa, emitida por
um país de economia sólida, favoreceria a confiança no lastro e na NMR.
A reação
do Ocidente
Um grave
risco é o de que o Ocidente reaja com ameaças e sanções contra os países
envolvidos na criação de uma alternativa ao dólar e ao euro. O Ocidente, em
franca decadência, se mostra ainda mais arbitrário e violento do que em outras
épocas.
O que temos
de nos perguntar, entretanto, é o seguinte: vamos conviver indefinidamente com
o sistema monetário e financeiro crescentemente disfuncional que o Ocidente
criou desde a Segundo Guerra Mundial, e que vem sendo usado como instrumento
geopolítico?
Os próximos
anos dirão se os países emergentes estão à altura do desafio de criar uma
alternativa ao dólar e ao euro.

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