segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Quando a semântica manipula o jogo do poder

Pedro Porfírio – T. Imprensa, 26 nov. 2007.


"Quando o escravo era acorrentado com grilhões de ferro, era fácil perceber a escravidão. Quando agora desfila acorrentado a algemas semânticas, torna-se difícil, ao espírito acrítico, perceber a escravidão do homem." (Albert Camus, escritor franco-argelino - 1913/1960)

Quando fui a Cuba pela primeira vez, em 1960, fazia um ano e meio que os guerrilheiros liderados por Fidel Castro haviam posto em fuga o ditador Fulgêncio Batista, no poder desde 12 de março de 1952, graças a um golpe militar.

Havia um clima de grande euforia com algumas medidas adotadas pela revolução, incluindo uma corajosa reforma agrária, nacionalizações de empresas estrangeiras e medidas sociais que beneficiaram os trabalhadores das cidades.

Os norte-americanos não estavam nada satisfeitos com o estilo dos revolucionários e partiram para as retaliações. Estabelecido o confronto, dispararam uma orquestrada guerra de propaganda, dizendo que aquelas mudanças tinham inspiração comunista.

Logo ao deixar o Aeroporto José Marti, deparei-me com um outdoor, assinado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Aviação, no qual se lia: "SE ESTO ES COMUNISMO, ENTONCES EL COMUNISMO ES BUENO".

Lembro desses fatos para propor uma conversa aos meus leitores, aos quais respeito, independente de suas paixões políticas ou ideológicas. Parto do princípio de que é pelo diálogo honesto que poderemos produzir um sentimento comum de olho no amanhã dos nossos filhos e netos.
Porque o hoje dos brasileiros infelizmente é de maus presságios. Eu me pergunto que futuro reservamos para essa juventude diante da constatação deprimente de que nem mesmo com o canudo tem-se a garantia de um espaço para prover a sobrevivência com dignidade.

Falsas verdades
Estou convencido de que o Brasil foi minado por anos de saques e desmandos, com a disseminação da idéia de que o Poder Público é uma mina de enriquecimento fácil e favorecimentos direcionados para quem tem mais bala na agulha, seja grego ou troiano.

E lamento que esse ambiente tenda a cristalizar-se pela força de idiossincrasias petrificadas, facilmente manipuladas pelo laboratório das falsas verdades, que introduz seu sêmem no útero de uma classe média perdida entre a insegurança social, a decadência econômica, o esfacelamento da família, a alienação cultural, a renúncia ao raciocínio crítico, o vício do arremedo, a inveja congênita, os dogmas atávicos e as paranóias introjetadas pelos meios de comunicação de massa.

Por causa disso, a sua visão dos acontecimentos é semelhante a de um torcedor de futebol. Em muitos casos, você não viu e não gostou. Em conseqüência, como a história nos demonstra, os triunfos de alguns são obras inconscientes dos seus oponentes.

Tomemos um exemplo: a questão dos mandatos. Antes mesmo das primeiras eleições diretas para presidente, pós-64, o senhor José Sarney, que sequer havia sido eleito presidente mesmo no "colégio eleitoral", obteve da Assembléia Constituinte a prorrogação do seu mandato para cinco anos. Essa foi a mais grosseira violação da vontade popular. Mas a máquina de manipulação praticamente silenciou, deixando você achando que aquilo era inevitável.

Depois, foi a vez de Fernando Henrique aprovar a reeleição em causa própria. Fosse ética, a decisão só valeria para os presidentes seguintes. Mas a mesma máquina deu o "tratamento adequado" para favorecê-lo. Você viu tudo aquilo, os expedientes torpes, mas nada podia fazer. Ele foi reeleito em 1998 com maioria absoluta, mas perderia fatalmente em 2002, se tivesse direito a uma nova disputa.

O foco direcionado
Você esquece essas tramóias porque não aceita fazer a própria autocrítica. Viu que Sarney se atribuiu mais um ano no poder, embora não tivesse nenhuma legitimidade, até porque tinha sido o principal cúmplice civil da ditadura exaurida.
Uma ditadura sui generis, aliás, em especial na questão dos mandatos: ao contrário de outros regimes castrenses, no do Brasil não podia haver "reeleição" dos generais, que se revezavam segundo a correlação de forças nos quartéis.

A guerra semântica de hoje leva a mesma máquina de fabricar idiotas a tachar de ditador um líder eleito e reeleito pelo povo, cujas mudanças constitucionais - ao contrário das nossas - são submetidas a referendos com imprensa livre, em sua grande maioria hostil a ele. E lá as urnas eletrônicas são auditáveis, ao contrário das nossas, porque o voto também é impresso, como queria Brizola.

Como você acha que o exemplo pode ser seguido por aqui, fica logo com o pé atrás. Não passa pelo seu raciocínio que podem mudar os presidentes e permanecerem os mesmos donos do poder. Aliás, no essencial, mesmo com a alternância de partidos, não se pode dizer que o Brasil mudou.

Tenho uma opinião muito pensada a respeito dessa questão de reeleição. Se ela é admitida, tanto faz uma como dez, como era antigamente nos Estados Unidos, até Roosevelt vencer quatro pleitos seguidos. E como é de fato nos regimes parlamentaristas.

E mais: o México está aí como exemplo - lá não pode haver reeleição nem para parlamentares e, no entanto, durante setenta anos, foi dominado em todos os níveis pelo PRI, partido que deu as cartas até exaurir-se em 2000.

Espero que você entenda: não é a possibilidade de reeleição que garante a permanência de um governante numa sociedade democrática. A menos que ele seja extremamente competente e não tenha adversários à altura, dificilmente resiste ao desgaste. Aí, para o grupo dominante, o melhor negócio é ter uma alternativa própria, mantendo o controle da máquina. Com isso, garante o domínio de oligarquias que controlam o poder, independente de quem governe. Isso você não vê, porque os grilhões da semântica o mantêm no limite da discussão programada.

A crise do gás
Nesta sexta-feira, dia 30, das 9h às 13 horas, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro abrirá seu plenário para uma audiência pública sobre a crise do gás e as políticas energéticas. Estão convidadas as autoridades do setor, distribuidores, varejistas e taxistas. Se você mora no Rio e quer discutir algo que vai repercutir no seu dia-a-dia, compareça e leve sua opinião.

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