sábado, 17 de dezembro de 2011

A enfermeira, o cão e o porquinho

Nelson Mendes

Uma das coisas interessantes dos chats, das redes sociais, é que muitas vezes somos levados a dar um foco mais preciso em nossos próprios pensamentos e impressões. As ponderações de uma amiga no Facebook, no post em que eu apresentava o caso da morte do cãozinho pela enfermeira no contexto do tema do vegetarianismo e das questões sociais, me obrigaram a capturar pensamentos que vagavam meio que na minha estratosfera mental e aos quais eu talvez não viesse a dar maior atenção, na suposição de tratar-se – digamos – de coisas implícitas mais que explícitas... Mas eu estava errado: se para mim mesmo tais pensamentos vagavam na estratosfera, além do foco imediato da consciência, como imaginar que os meus interlocutores pudessem apreendê-los?

Primeiro, quero dizer que não vi o vídeo mostrando a morte do cãozinho. Não verei. Acredito que seja brutal, e isso é o bastante. Segundo, quero também dizer que não duvido da sinceridade da indignação das pessoas. Terceiro, não acho que sejam propriamente hipócritas as pessoas que se comovem com o sofrimento dos bichinhos de estimação e continuam comendo seu churrasco. O boi está lá longe, no pasto, os matadouros não têm vitrines e a tradição alimentar não é coisa que se possa descartar num estalar de dedos. Resumindo: a comoção em relação ao caso do cãozinho é real, e o fato de uma pessoa NÃO SER vegetariana não é impedimento a que ela expresse tal indignação. Agora: se tem uma coisa que eu não acho é que “tocar nesses assuntos ‘veganos’ no meio de um turbilhão é um pouco ‘demais’”.

Essa mensagem – “Na dor, eles são iguais” – , ilustrada pelas fotos do cachorrinho e do porquinho, eu compartilhei a partir de postagem de um vegetariano convicto. Ele replicou várias mensagens de repúdio à crueldade cometida pela tal enfermeira. Mas o que ele pensa, como todos os veganos , é que não se deve fazer distinção entre espécies. O cãozinho fofinho não tem mais direito à vida e a ser preservado do sofrimento do que o porquinho. Achar que o cão merece carinho, que o porquinho merece faca e que o ser humano é o rei de todos os animais é o que se chama “especismo”. Minha amiga NÃO CONSIDERA QUE “humanos são mais importantes do que os animais”, e acredita “que todos os seres vivos têm um papel importantíssimo aqui”. Ela pensa quase como os veganos; mas come carne. Ou seja: não faz distinção entre animais e humanos; mas faz distinção entre animais. Uns são para amar; outros, para comer. O meu amigo vegetariano, que é um divulgador da causa vegana, aproveitou o caso do cãozinho torturado e morto para lembrar que, por trás do bife nosso de cada dia, existe muito sofrimento, muita dor, muita crueldade.

E como penso eu? Eu prefiro citar Gibran:

“Deverieis viver da fragrância da terra, e, tal como uma planta, sustentar-vos com a luz.
Mas como tendes que matar para comer, e retirar o recém nascido do leite da sua mãe para aplacar a vossa sede, então fazei disso um ato de veneração, e fazei um altar onde os puros e inocentes da floresta e da planície sejam sacrificados para aquilo que é mais puro e ainda mais inocente no homem.”

Tenho dito que a humanidade, a médio e longo prazo, deverá tender ao vegetarianismo. Por motivos econômicos, sociais, nutricionais, humanitários, éticos... Mas estou com Gibran: se temos que matar para comer, que “os puros e inocentes da floresta e da planície sejam sacrificados para aquilo que é mais puro e ainda mais inocente no homem.” Eu sou decididamente especista quando considero o ser humano, sim, um fenômeno especial aqui no planeta Terra. Quem, numa situação de risco, pensaria em salvar um animal antes de salvar um ser humano?

Dito tudo isso, eu devo ir finalmente ao assunto que está na base de minha postagem. Sim, porque eu nem estava propriamente preocupado em discutir a crueldade com animais, o especismo, as razões por que as pessoas transformam alguns animais em ‘pets’ e outros em alimento, a leniência de nossos tribunais em relação aos torturadores de animais – nada disso. O que realmente me levou a replicar a postagem ‘antiespecista’, que compara o sofrimento do cãozinho ao do porquinho, foi, além de obviamente levantar a questão pertinente do veganismo, manifestar meu espanto com o fato de que um episódio como o da morte do Yorkshire se tenha tornado um ‘hit’ absoluto nas redes sociais. Foi por isso que postei a foto da “arma letal”, a caneta com que os figurões podem afetar a vida de milhões de pessoas. A indignação com esses eventos pontuais é natural e compreensível; mas o principal de nossos problemas é a mulher sádica, talvez psicótica, que matou o cãozinho? Isso é tema para tomar de assalto o espaço das redes sociais? Prender, julgar, torturar, entregar a mulher a pit-bulls vai tornar melhor a sociedade, vai fazer com que tenhamos mais justiça social, mais paz, mais distribuição de renda? Uma vez Verissimo escreveu uma crônica em que ele fazia uma comparação entre a tragédia das torres gêmeas e a tragédia muito maior, diuturna, corriqueira, das mortes ocorridas em função da miséria, da fome, do desamparo de literalmente bilhões de pessoas em todo o mundo. Nesse rio modorrento de cadáveres ninguém repara – porque, segundo Verissimo, ele tem efeitos “menos gráficos” que o desabamento espetaculoso de duas torres numa das maiores metrópoles do mundo...

O que me incomoda, em suma, é o destaque, talvez ‘diversionista’, que ganham esses assuntos na internet. Não é conveniente, para o ‘establishment’, que o povo dirija sua indignação contra mulher que matou o cachorrinho, enquanto os assassinos da caneta continuam operando à vontade? Não é bom que se invente de vez em quando um Judas, mesmo que de saias?

Do blog da comunidade Niterói, no Orkut: “Quando passamos por uma banca de jornais, o que vemos são os mais variados apelos: todos os símbolos, os mitos da sociedade contemporânea estão ali presentes, como que encarnados numa sereia de mil faces e mil vozes, capaz de nos arrastar ao abismo da inércia, da estupidez, do conformismo, da cegueira. O jornalista Bernardo Kucinski diz que ‘o jornalismo existe para socializar as verdades de interesse público, para tornar público o que grupos de interesse ou poderosos tentam manter como coisa privada’. Ora, podemos sinceramente dizer que é isso o que faz, majoritariamente, a nossa mídia? Não: a mídia realça o acessório, o detalhe, o pitoresco, o mórbido. [...] Mais acima, a manada dos grandes interesses atravessa incólume o rio da indiferença popular”.

Será que a internet está destinada a replicar o comportamento da mídia tradicional no que diz respeito a inundar o público de informações inúteis, provocando-lhe indigestão mental e inércia? Será que computadores e ‘gadgets’ em geral se transformarão em simuladores em que as pessoas se limitarão a descarregar suas indignações no abismo inócuo do chamado espaço virtual? Não sei o que pensam os estudiosos sobre o assunto; mas me parece que a internet é um fenômeno ainda relativamente novo, de perspectivas ainda não muito bem delineadas. E as redes sociais são um bebê... Conseguiremos criar esse bebê para que ele cresça saudável, independente, altivo, inteligente? Ou será que, daqui a alguns anos, estaremos repetindo o que cantou Belchior?

“Minha dor é perceber / Que apesar de termos / Feito tudo, tudo, / Tudo o que fizemos
Nós ainda somos / Os mesmos e vivemos / Como os nossos pais..”

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