quarta-feira, 18 de julho de 2012

UM CARDEAL SEM PASSADO

José Ribamar Bessa Freire
15/07/2012 - Diário do Amazonas


Texto editado. Original recolhido em 15 de julho de 2012 em:





O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales fez lembrar o filme alemão "Uma cidade sem passado", de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história.


O filme se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, cujo tema é "Minha cidade natal na época do III Reich". Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing - considerada até então baluarte da resistência antinazista.


Mas o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Sônia não desiste. Entrevista pessoas que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, não passam de fiapos sem sentido.


Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, resolve continuar pesquisando por conta própria, numa batalha desigual que durou alguns anos.


Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí que ela descobriu, horrorizada: sua cidade havia sediado um campo de concentração, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória.


O mais doloroso era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Por isso, ocultavam os documentos.


Dom Eugênio Sales comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? Até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.


Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, e cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio - O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho.


Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros. Mas dom Eugênio jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969. Padres e leigos foram presos e torturados, sem um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.


O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, e foi um dos inspiradores das "candocas" - como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As "candocas" desenvolveram trabalhos sociais com objetivos golpistas, organizaram manifestações de rua contra João Goulart, incluindo a famigerada "Marcha da família com Deus pela liberdade", que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais.


Dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Na época ele nem disfarçava, manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos. 


- "Quem tem dúvidas...basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo" - escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:


- A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%...


Por isso, a jornalista estranhou a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades: um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. Eduardo Paes, Sérgio Cabral e até José Sarney insistiram no mesmo tema.


Não foram só os políticos. Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados políticos", calculada, numa estimativa do Globo, em "mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul". Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil.


Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só - umazinha - dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.


Segundo Hilde, dom Eugênio "fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos "subversivos" que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)". Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar "que ocorreu justo o contrário!", como no filme "Uma cidade sem passado".


O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em "manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos". A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.


- Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem "a verdade" - escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.


A "verdade" construída pela mídia foi capaz de fotografar até "a presença do Espírito Santo" no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: "Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo" - berraram os jornais.

- "A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória" nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.


Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!

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