SIM, O
NEOLIBERALISMO EXISTE E QUEM O NEGA APENAS DEIXA EVIDENTE O SEU DOGMATISMO
IDEOLÓGICO
Eduardo Migowski
Edição
NMM. Texto original: http://voyager1.net/politica/sim-o-neoliberalismo-existe/
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Basta a
Voyager escrever um texto usando a palavra mágica (neoliberalismo) para receber uma
enxurrada de mensagens do tipo: “parei no neoliberalismo”. Eu acho tais
atitudes sintomáticas.
Invariavelmente,
esses indivíduos seguem páginas como “Mises
Brasil”, “MBL”
ou Spotiniks. Esses sites
treinam seus seguidores para, quando ouvirem a palavra proibida,
automaticamente desconsiderarem todo o restante do texto. Os jovens que
cresceram assistindo Harry Potter no cinema transformaram o
neoliberalismo no neo-Voldemort.
Na verdade, o
termo é uma invenção dos próprios liberais. Seu esquecimento não é apenas fruto
do desconhecimento da história, mas também tem motivações políticas, que em
muito se assemelha à formação dos dogmas religiosos. “Textos sagrados” não
comportam divergência, pois são verdades reveladas. Portanto, apagar a memória
da formação destas doutrinas é também uma maneira de deixar na sombra as
contradições e divergências naturais a qualquer corrente de pensamento.
Outra questão é que os neoliberais se
esforçam para negar o caráter ideológico dos seus pressupostos, dando-lhes uma
aparência natural e científica.
Tal movimento tem por objetivo, também, interditar qualquer forma de debate.
Caso alguém se coloque contra seus dogmas, seu argumento logo é taxado de ideológico,
pois os princípios “científicos” são percebidos como autoevidentes e inerentes à
natureza humana.
As palavras
são usadas de modo estratégico para fechar qualquer canal de debate que pudesse
levar à discussão de ideias. Ou você aceita o “pacote completo” ou está negando
realidade.
Tais características em muito se
assemelham às seitas religiosas fundamentalistas e fascistas (proponho a leitura do texto do Foucault “Por uma Vida Não Fascista”,
pois é a esse fascismo que estou me referindo).
Na história
do Cristianismo, o Concílio
de Nicéia foi
convocado pelo imperador Constantino para dar unidade à fé cristã. No caso
do neoliberalismo, o colóquio Walter Lipmann,
realizado em 1938 em Paris, pode ser
considerado a certidão de nascimento da doutrina e o ponto de encontro das
diferentes correntes “liberais”. É interessante notar que os liberais raramente
citam esse Colóquio.
Por que um
evento tão importante para o neoliberalismo permanece à margem dos grupos que
dedicam a vida a estudar o tema? A resposta não é complicada. O Colóquio
aconteceu num momento em que as ideias ainda não estavam estruturadas e, por
isso, houve amplo debate. Nos anos 1960, o neoliberalismo conquistou uma coesão
e construiu uma narrativa coerente do mundo. Lembrar do período anterior,
quando os dogmas ainda eram discutidos e questionados, não faz bem a uma filosofia
que se pretende totalizante e capaz de explicar todas as contradições do
capitalismo. Nesse aspecto, inclusive,
eles muito se assemelham ao demonizado Stalinismo.
Até o
prefixo “neo” os incomoda, pois ele lembra aos fiéis que o liberalismo falhou. Se existe algo novo é porque a
primeira versão teve de ser reformulada. E a possibilidade de admitir qualquer
tipo de falha os assusta. Melhor esquecer que o liberalismo gerou monopólios,
que ele concentrou poder, que as desigualdades aumentaram, que tais
desdobramentos culminaram na Crise de 1929.
Quem estava
presente no Colóquio Walter Lippmann e o que estava sendo discutido?
Encontravam-se no evento praticamente todos os principais nomes do liberalismo: Friedrich
Hayek, Jaques Rueff, Raymond
Aron, Wilhem Ropke, Milton
Friedman, Ludwig Von Mises e o próprio Walter
Lippmann.
O objetivo
do encontro era duplo: discutir a obra An Inquiry into the
Principle of the Good Society de Walter Lippmann, e
reformular o liberalismo. Àquela altura
estava claro até para os liberais que o modelo clássico não funcionava.
Seria preciso abordar temas espinhosos, como a questão dos monopólios, para
entender o que havia acontecido. Adam
Smith não havia
previsto as Sociedades Anônimas, mas elas existiam e dominavam a economia.
Pior, poderiam influir na formação dos preços. Não havia como negar. Como, então,
explicá-las?
Atualmente,
dez em cada dez indivíduos que professam a fé liberal tem a resposta a esta
pergunta na ponta da língua: “o monopólio não é resultado da economia
capitalista, mas é anterior a ela”. Há aqui uma confusão proposital. O culpado
apontado é o Mercantilismo, período da história em que os reis criavam
Companhias de Comércio para controlar a circulação de mercadorias.
Esses monopólios,
porém, caíram no século XIX. O período entre 1840 e 1870 foi o de maior
liberdade comercial da história. E foi o capitalismo desregulado que formou as
grandes corporações. Entre 1870 e 1929, a economia mundial passou a ser
dominada pelos oligopólios, que podiam influir no mercado, porém o discurso
liberal não mudou. Após o Crash, contudo, a realidade não podia mais ser
maquiada, precisava ser considerada.
No fim, a
posição que prevaleceu foi a daqueles que queriam reconstruir o liberalismo
rompendo com o Laissez Faire. Mas qual seria o nome dessa nova corrente? Várias
propostas apareceram: “novo liberalismo”, “liberalismo interventor”, “intervencionismo
liberal”, “liberalismo positivo”, “liberalismo construtor” e, por fim, a que
prevaleceu: “neoliberalismo”.
O neoliberalismo, portanto, surge como
um liberalismo interventor, livre das amarras do Laissez Faire. O problema, doravante, não é se o
Estado pode ou não intervir, mas como tal intervenção deve ser feita.
A “arte
neoliberal de governar” vai se dedicar à organização dos sujeitos. À construção
de modos de vida, de subjetividade. O modelo buscado é o da empresa
privada: o homo economicus deve se comportar orientando-se pela lógica
concorrencial, como a livre iniciativa no mercado capitalista. Essa dimensão
antropológica “homem-empresa” é, com efeito, a grande novidade do
neoliberalismo.
Para os
neoliberais, existem dois tipos de intervenção do Estado no mercado: aquela que
prejudica a concorrência, “dos planistas”, e aquela que a estimula, que era o
que eles estavam propondo. Outro modo de ingerência seria para fazer a economia
capitalista funcionar.
O
intervencionismo liberal deve preocupar-se, em períodos de superoferta, em
estimular o consumo, que é a única coisa que permite valorizar a produção.
Como podemos
observar, as diferenças não são pequenas. No liberalismo clássico, bastava o
respeito aos direitos naturais, para que o indivíduo agisse de modo egoísta, e
a mão invisível traria o equilíbrio econômico. No neoliberalismo a mão invisível é substituída pela ingerência do Estado,
pois o capitalismo precisaria de vigilância e de regulação constante.
Essa é, portanto, a “arte de governar” do novo liberalismo, usando um
conceito do Foucault. Com o advento da Escola de Chicago, tais
noções foram sendo refinadas. Surge a noção de “sociedade empresa” e “capital
humano”. A educação passa a ser vista como a produtora desse “capital humano”. “Mas
educação num sentido bem mais amplo, relacionado às horas que uma criança passa
junto à mãe, à quantidade de afeto que recebe. Tudo isso passa a entrar no cálculo
econômico como uma das prioridades para o desenvolvimento do mercado.” (MIGOWSKI, Governo
Das Multidões).
Meu pai
nunca leu Milton Friedman, mas ele
percebeu os riscos da democracia de modo muito parecido com o economista. Henry Ford, ao ser perguntado se o consumidor
americano poderia escolher o carro que desejasse, afirmou que sim, bastaria
apenas que eles quisessem um Ford T preto. Os neoliberais aprenderam como
poucos essa lição.
O
neoliberalismo realiza esse movimento duplo. De um lado ele se apresenta como o
passaporte para a liberdade, aquele capaz de tirar os indivíduos do “Caminho da
Servidão”. Por outro, porém, ele suprime as opções de escolha. A Dama
de Ferro, Margareth Thatcher, de
tanto repetir a frase There is no Alternative, foi
gentilmente apelidada pelo filósofo Noam Chomsky de TINA.
E fora do governo, como agiriam essas técnicas de controle? Basicamente
através de quatro métodos que serão explicados a seguir:
1) O
endividamento. As dívidas nunca cessam.
2) Formação
intelectual. Na sociedade empresa, estudar é ter vantagem sobre os
concorrentes. Portanto, assim como as dívidas, a educação nunca cessa. Se o
endividamento restringe a liberdade de escolha, a formação continuada mostra a
direção em que o sujeito deve olhar.
3) A gestão
biológica do sujeito. Para evitar uma possível moléstia futura, o sujeito deve
regrar sua vida.
4) Fragmentação
e massificação da informação. O sujeito neoliberal sabe de tudo o que acontece
pelo mundo, mas é incapaz de perceber o todo. “Não há relação entre os fatos que se repetem.
O indivíduo, deste modo, perde a noção de processo, de transformação. Um fato é
apenas um fato isolado e nada mais. As mesmas notícias que aparecem de modo
inesperado somem em instantes para dar espaço para outras. Deste modo, cria-se
um desejo pelo novo, pela novidade, pela atualização, e pouco espaço sobra para
a reflexão. A mente deve ser preenchia de modo contínuo por fragmentos editados
da realidade que aparecem e somem a todo o momento, dando uma falsa sensação de
controle sobre todos os acontecimentos relevantes ao redor do mundo.” (MIGOWSKI, O
Ethos Neoliberal e Formação da Sociedade de Controle).
Enfim, o
sujeito neoliberal é aquele que sente pena das mulheres islâmicas e dos
moradores dos países comunistas por serem escravos.
Uma das
obras mais influentes do pensamento neoliberal é “O Caminho da Servidão”,
escrita por Hayek. Nela, o economista alertava para a iminente vitória do Partido
Trabalhista na Inglaterra. Hayek acreditava que a
intervenção do Estado era um processo cumulativo e que culminaria no totalitarismo,
ou seja, o controle total do indivíduo. De fato, o Partido Trabalhista venceu e
não foi apenas da Inglaterra. A tão
temida social democracia se espalhou pela Europa e iniciou o período mais próspero
da história do capitalismo. Salários altos, pleno emprego e crescimento
econômico foram as marcas dos chamados 30 anos gloriosos. Mas os neoliberais são valentes e continuaram insistindo que o mundo
caminhava para a servidão. Mas será que existe alguma lógica nessa oposição
entre Estado mínimo X máximo?
Como podemos
observar ao longo do texto, se algum dia existiu Estado mínimo, foi no século
XIX. O neoliberalismo não funciona dentro dessa lógica. O que acontece é a
retirada do Estado de algumas esferas, como a social, e o alargamento da sua
influência em outras.
Portanto,
mais importante do que olhar para o discurso é perceber como o poder é
efetivamente exercido. Os políticos
defendem a livre iniciativa, o Estado mínimo, porém seu poder se estende a
todos os lugares, controlando inclusive suas emoções e seus desejos. Fazendo
você amar e desejar o poder. Enquanto você teme a realidade descrita no livro “1984”,
caminhamos para o “Admirável Mundo Novo”.
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