terça-feira, 11 de abril de 2017

Neoliberalismo Sem Máscara

SIM, O NEOLIBERALISMO EXISTE E QUEM O NEGA APENAS DEIXA EVIDENTE O SEU DOGMATISMO IDEOLÓGICO

Eduardo Migowski
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Basta a Voyager escrever um texto usando a palavra mágica (neoliberalismo) para receber uma enxurrada de mensagens do tipo: “parei no neoliberalismo”. Eu acho tais atitudes sintomáticas.
Invariavelmente, esses indivíduos seguem páginas como “Mises Brasil”, “MBL” ou Spotiniks. Esses sites treinam seus seguidores para, quando ouvirem a palavra proibida, automaticamente desconsiderarem todo o restante do texto. Os jovens que cresceram assistindo Harry Potter no cinema transformaram o neoliberalismo no neo-Voldemort.
Na verdade, o termo é uma invenção dos próprios liberais. Seu esquecimento não é apenas fruto do desconhecimento da história, mas também tem motivações políticas, que em muito se assemelha à formação dos dogmas religiosos. “Textos sagrados” não comportam divergência, pois são verdades reveladas. Portanto, apagar a memória da formação destas doutrinas é também uma maneira de deixar na sombra as contradições e divergências naturais a qualquer corrente de pensamento.
Outra questão é que os neoliberais se esforçam para negar o caráter ideológico dos seus pressupostos, dando-lhes uma aparência natural e científica. Tal movimento tem por objetivo, também, interditar qualquer forma de debate. Caso alguém se coloque contra seus dogmas, seu argumento logo é taxado de ideológico, pois os princípios “científicos” são percebidos como autoevidentes e inerentes à natureza humana.
As palavras são usadas de modo estratégico para fechar qualquer canal de debate que pudesse levar à discussão de ideias. Ou você aceita o “pacote completo” ou está negando realidade.
Tais características em muito se assemelham às seitas religiosas fundamentalistas e fascistas (proponho a leitura do texto do Foucault Por uma Vida Não Fascista”, pois é a esse fascismo que estou me referindo).
Na história do Cristianismo, o Concílio de Nicéia foi convocado pelo imperador Constantino para dar unidade à fé cristã. No caso do neoliberalismo, o colóquio Walter Lipmann, realizado em 1938 em Paris, pode ser considerado a certidão de nascimento da doutrina e o ponto de encontro das diferentes correntes “liberais”. É interessante notar que os liberais raramente citam esse Colóquio.
Por que um evento tão importante para o neoliberalismo permanece à margem dos grupos que dedicam a vida a estudar o tema? A resposta não é complicada. O Colóquio aconteceu num momento em que as ideias ainda não estavam estruturadas e, por isso, houve amplo debate. Nos anos 1960, o neoliberalismo conquistou uma coesão e construiu uma narrativa coerente do mundo. Lembrar do período anterior, quando os dogmas ainda eram discutidos e questionados, não faz bem a uma filosofia que se pretende totalizante e capaz de explicar todas as contradições do capitalismo. Nesse aspecto, inclusive, eles muito se assemelham ao demonizado Stalinismo.
Até o prefixo “neo” os incomoda, pois ele lembra aos fiéis que o liberalismo falhou. Se existe algo novo é porque a primeira versão teve de ser reformulada. E a possibilidade de admitir qualquer tipo de falha os assusta. Melhor esquecer que o liberalismo gerou monopólios, que ele concentrou poder, que as desigualdades aumentaram, que tais desdobramentos culminaram na Crise de 1929.
Quem estava presente no Colóquio Walter Lippmann e o que estava sendo discutido? Encontravam-se no evento praticamente todos os principais nomes do liberalismo: Friedrich Hayek, Jaques Rueff, Raymond Aron, Wilhem Ropke, Milton Friedman, Ludwig Von Mises e o próprio Walter Lippmann.
O objetivo do encontro era duplo: discutir a obra An Inquiry into the Principle of the Good Society de Walter Lippmann, e reformular o liberalismo. Àquela altura estava claro até para os liberais que o modelo clássico não funcionava. Seria preciso abordar temas espinhosos, como a questão dos monopólios, para entender o que havia acontecido. Adam Smith não havia previsto as Sociedades Anônimas, mas elas existiam e dominavam a economia. Pior, poderiam influir na formação dos preços. Não havia como negar. Como, então, explicá-las?
Atualmente, dez em cada dez indivíduos que professam a fé liberal tem a resposta a esta pergunta na ponta da língua: “o monopólio não é resultado da economia capitalista, mas é anterior a ela”. Há aqui uma confusão proposital. O culpado apontado é o Mercantilismo, período da história em que os reis criavam Companhias de Comércio para controlar a circulação de mercadorias.
Esses monopólios, porém, caíram no século XIX. O período entre 1840 e 1870 foi o de maior liberdade comercial da história. E foi o capitalismo desregulado que formou as grandes corporações. Entre 1870 e 1929, a economia mundial passou a ser dominada pelos oligopólios, que podiam influir no mercado, porém o discurso liberal não mudou. Após o Crash, contudo, a realidade não podia mais ser maquiada, precisava ser considerada.
No fim, a posição que prevaleceu foi a daqueles que queriam reconstruir o liberalismo rompendo com o Laissez Faire. Mas qual seria o nome dessa nova corrente? Várias propostas apareceram: “novo liberalismo”, “liberalismo interventor”, “intervencionismo liberal”, “liberalismo positivo”, “liberalismo construtor” e, por fim, a que prevaleceu: “neoliberalismo”.
O neoliberalismo, portanto, surge como um liberalismo interventor, livre das amarras do Laissez Faire. O problema, doravante, não é se o Estado pode ou não intervir, mas como tal intervenção deve ser feita.
A “arte neoliberal de governar” vai se dedicar à organização dos sujeitos. À construção de modos de vida, de subjetividade. O modelo buscado é o da empresa privada: o homo economicus deve se comportar orientando-se pela lógica concorrencial, como a livre iniciativa no mercado capitalista. Essa dimensão antropológica “homem-empresa” é, com efeito, a grande novidade do neoliberalismo.
Para os neoliberais, existem dois tipos de intervenção do Estado no mercado: aquela que prejudica a concorrência, “dos planistas”, e aquela que a estimula, que era o que eles estavam propondo. Outro modo de ingerência seria para fazer a economia capitalista funcionar.
O intervencionismo liberal deve preocupar-se, em períodos de superoferta, em estimular o consumo, que é a única coisa que permite valorizar a produção.
Como podemos observar, as diferenças não são pequenas. No liberalismo clássico, bastava o respeito aos direitos naturais, para que o indivíduo agisse de modo egoísta, e a mão invisível traria o equilíbrio econômico. No neoliberalismo a mão invisível é substituída pela ingerência do Estado, pois o capitalismo precisaria de vigilância e de regulação constante.
Essa é, portanto, a “arte de governar” do novo liberalismo, usando um conceito do Foucault. Com o advento da Escola de Chicago, tais noções foram sendo refinadas. Surge a noção de “sociedade empresa” e “capital humano”. A educação passa a ser vista como a produtora desse “capital humano”. “Mas educação num sentido bem mais amplo, relacionado às horas que uma criança passa junto à mãe, à quantidade de afeto que recebe. Tudo isso passa a entrar no cálculo econômico como uma das prioridades para o desenvolvimento do mercado.” (MIGOWSKI, Governo Das Multidões).
Meu pai nunca leu Milton Friedman, mas ele percebeu os riscos da democracia de modo muito parecido com o economista. Henry Ford, ao ser perguntado se o consumidor americano poderia escolher o carro que desejasse, afirmou que sim, bastaria apenas que eles quisessem um Ford T preto. Os neoliberais aprenderam como poucos essa lição.
O neoliberalismo realiza esse movimento duplo. De um lado ele se apresenta como o passaporte para a liberdade, aquele capaz de tirar os indivíduos do “Caminho da Servidão”. Por outro, porém, ele suprime as opções de escolha. A Dama de Ferro, Margareth Thatcher, de tanto repetir a frase There is no Alternative, foi gentilmente apelidada pelo filósofo Noam Chomsky de TINA.
E fora do governo, como agiriam essas técnicas de controle? Basicamente através de quatro métodos que serão explicados a seguir:
1) O endividamento. As dívidas nunca cessam.
2) Formação intelectual. Na sociedade empresa, estudar é ter vantagem sobre os concorrentes. Portanto, assim como as dívidas, a educação nunca cessa. Se o endividamento restringe a liberdade de escolha, a formação continuada mostra a direção em que o sujeito deve olhar.
3) A gestão biológica do sujeito. Para evitar uma possível moléstia futura, o sujeito deve regrar sua vida.
4) Fragmentação e massificação da informação. O sujeito neoliberal sabe de tudo o que acontece pelo mundo, mas é incapaz de perceber o todo. “Não há relação entre os fatos que se repetem. O indivíduo, deste modo, perde a noção de processo, de transformação. Um fato é apenas um fato isolado e nada mais. As mesmas notícias que aparecem de modo inesperado somem em instantes para dar espaço para outras. Deste modo, cria-se um desejo pelo novo, pela novidade, pela atualização, e pouco espaço sobra para a reflexão. A mente deve ser preenchia de modo contínuo por fragmentos editados da realidade que aparecem e somem a todo o momento, dando uma falsa sensação de controle sobre todos os acontecimentos relevantes ao redor do mundo.” (MIGOWSKI, O Ethos Neoliberal e Formação da Sociedade de Controle).
Enfim, o sujeito neoliberal é aquele que sente pena das mulheres islâmicas e dos moradores dos países comunistas por serem escravos.
Uma das obras mais influentes do pensamento neoliberal é “O Caminho da Servidão”, escrita por Hayek. Nela, o economista alertava para a iminente vitória do Partido Trabalhista na Inglaterra. Hayek acreditava que a intervenção do Estado era um processo cumulativo e que culminaria no totalitarismo, ou seja, o controle total do indivíduo. De fato, o Partido Trabalhista venceu e não foi apenas da Inglaterra. A tão temida social democracia se espalhou pela Europa e iniciou o período mais próspero da história do capitalismo. Salários altos, pleno emprego e crescimento econômico foram as marcas dos chamados 30 anos gloriosos. Mas os neoliberais são valentes e continuaram insistindo que o mundo caminhava para a servidão. Mas será que existe alguma lógica nessa oposição entre Estado mínimo X máximo?
Como podemos observar ao longo do texto, se algum dia existiu Estado mínimo, foi no século XIX. O neoliberalismo não funciona dentro dessa lógica. O que acontece é a retirada do Estado de algumas esferas, como a social, e o alargamento da sua influência em outras.

Portanto, mais importante do que olhar para o discurso é perceber como o poder é efetivamente exercido.  Os políticos defendem a livre iniciativa, o Estado mínimo, porém seu poder se estende a todos os lugares, controlando inclusive suas emoções e seus desejos. Fazendo você amar e desejar o poder. Enquanto você teme a realidade descrita no livro “1984”, caminhamos para o “Admirável Mundo Novo”.

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