Eliane
Brum | 21
AGO 2017
Texto
original:
Texto editado / NMM:
Discute-se muito 2018.
Mas discutimos menos do que deveríamos o que vivemos em 2017, neste exato
momento.
O Brasil inventou a democracia sem
povo. O povo, para aqueles que hoje detêm o poder no Brasil, não tem a menor
importância. O povo é um nada.
Michel Temer (PMDB)
pode fazer – faz e fará – todas as maldades e concessões que precisar para
continuar onde está. Sente-se livre para não precisar dar qualquer satisfação à
população. Todo o seu cálculo é evitar ser em algum momento despachado para a
cadeia. Havia uma conversa
de conteúdo mais do que suspeito, fora da agenda, à noite, na
residência do presidente, e uma mala de
dinheiro nas mãos de um homem de confiança de Temer – e não foi
suficiente. Era mais do que suficiente. Mas a justiça não está em questão.
A presidência do Brasil hoje está nas
mãos de um homem que não tem nada a perder desagradando seus eleitores, porque sequer
tem eleitores. Sua salvação está nas mãos daqueles que agrada distribuindo os
recursos públicos que faltam para o que é essencial e tomando decisões que afetarão
a vida dos brasileiros por décadas.
Temer depende do Congresso, e
não da população. Assim como depende de as forças econômicas promotoras do
impeachment continuarem achando que ele ainda pode fazer o serviço sujo de
implantar rapidamente um projeto não eleito. Então, o povo que se lixe.
O Congresso não teme mais perder
eleitores. Nem mesmo considera importante simular qualquer probidade. Essa
poderia ser uma preocupação, nem que seja pensando nas próximas eleições. Mas a
oportunidade de saquear a nação a favor dos grupos que os sustentam e de sua
própria locupletação foi tão atrativa, que o povo que se lixe. A hora é agora.
Os deputados cuidam também de aprovar “reforma
política”, mas uma que torne mais difícil renovar a Câmara com quem não
pertença à turma. É o caso do tal “Distritão”, considerado pela maioria dos
analistas a pior
alternativa possível.
A Bancada Ruralista é o exemplo mais
bem acabado deste momento do Congresso. Grande fiadora da
permanência de Temer na presidência, com 200 deputados e 24
senadores, é o que há de mais arcaico no setor agropecuário. Essa espécie não
se pauta por melhorar a produção pelo avanço tecnológico e pela recuperação das
terras e pastos degradados, mas pelo que lhe parece mais fácil: avançando sobre
as terras públicas, incluindo terras indígenas e unidades de preservação
ambiental. O coronelismo parece já ter se infiltrado no DNA, seja herdado ou
imitado. Para avançar sobre
as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as mais
preservadas do país, os ruralistas têm cometido todo o tipo de atrocidades desde
a posse de Temer.
Para a manutenção de Temer no poder já
foram entregues ou podem ser em muito breve barbaridades de todo o tipo: o
desmonte da Funai, hoje à míngua e nas mãos de
um general; a regularização de terras griladas (roubadas do
patrimônio público), aumentando o desmatamento e os conflitos; o parcelamento
de dívidas de proprietários rurais com a previdência em até 176 vezes, com redução
da contribuição; a redução da proteção de unidades de conservação; mudanças nas
regras do licenciamento ambiental que tornarão o licenciamento ambiental quase
inexistente.
Os ruralistas querem bem mais: querem
até o fim deste ano conseguir a permissão da venda de terras para estrangeiros
e também mudar as
regras sobre os agrotóxicos, o que no Brasil já é uma farra com
graves consequências para a saúde de toda a população. E o objetivo de sempre,
sua bandeira mais querida: botar a mão nas terras públicas de usufruto dos
índios com a abominação
chamada PEC 215.
A eleição de
2018 está muito longe. Enquanto ela não chega, os ruralistas estão
transformando o país numa ação entre amigos. Estão mudando o mapa do Brasil.
Quando 2018 chegar, já era. Porque já é.
Há muita vida até 2018. A fome e a
miséria aumentando, as chacinas no campo e na floresta aumentando, os moradores
de rua multiplicando-se, e os direitos duramente conquistados sendo destruídos
um a um. E a Polícia Militar a defender os grupos no poder.
Parece que se vive como se “ok, vamos
tentar melhorar o xadrez para 2018”. Mas o que se viverá até a eleição e a
posse dos eleitos afetará de forma profunda e permanente a vida dos
brasileiros.
O ano de 2017, para quem tem o poder
para saquear o Brasil e os direitos dos brasileiros, está sendo o melhor. Poder
usurpar de tal forma o poder e ainda chamar de democracia?
Não é preciso mais sequer manter as
aparências. Para o impeachment, havia multidões nas ruas. Pode-se suspeitar das
reais intenções dos grupos que lideravam os protestos “anticorrupção” – hoje
desmoralizados pelo silêncio diante das evidências muito mais eloquentes contra
Michel Temer –, mas não se pode negar que havia milhões nas ruas. Havia
aparência. Hoje, a população
sequer está nas ruas. E torna-se muito mais assustador quando
aqueles que detêm o poder chegam à conclusão de que não precisam mais sequer
convencer a população ou cortejar seus eleitores. A tarefa que precisavam que a
população desempenhasse era a de ir para as ruas pedir o impeachment de Dilma
Rousseff. Milhões foram, vestidos de amarelo, sob a sombra do pato da Fiesp. E
agora se tornaram dispensáveis. E a parcela da esquerda que ainda podia fazer
um barulho pelo impeachment de Temer parece ter também calculado que é melhor
(para seu projeto eleitoral) deixar as coisas se esgarçarem ainda mais até
2018.
Ter o país sob o comando de pessoas
que distorcem e afirmam o contrário do que apontam os fatos é assustador. Mas
alcançamos um outro tipo de perversão: pessoas sequer se preocupam em
aparentarem fazer a coisa certa. Os encontros à noite, fora da agenda, de
Michel Temer; as confabulações de Gilmar Mendes,
ministro do Supremo Tribunal Federal, com pessoas que poderá julgar; Aécio Neves autoconvertido
no novo Eduardo Cunha. Enfim, nada mais eloquente do que uma mala de dinheiro
ligada a um presidente que não é impedido de presidir.
Se Temer ainda no Planalto é a
materialização do cinismo vigente no país, o candidato a substituí-lo em caso
de afastamento, Rodrigo Maia (DEM), presidente da
Câmara e também investigado da Lava Jato,
é a troca para nada mudar, já devidamente acertada com os reais donos do poder.
A crise da palavra, esta que está no
coração deste momento histórico, segue produzindo fantasmagorias. Como a
“pacificação do país” de Michel Temer; ou o argumento de que é melhor não tirar
Temer agora por conta da “estabilidade”. Estabilidade para quem? Hoje, a
obscenidade que enche a boca de tantos é “estabilidade”.
Há também os tais “sinais da
economia”. Se há algo que atravessa a história do país, é a mística dos
economistas com seus jargões.É bem curioso o poder que exerce certa casta
de economistas, ao ocupar largos espaços na mídia para legitimar o
ilegitimável. Delfim Netto é
talvez o personagem mais fascinante. Signatário do AI-5 e ministro de vários
governos da ditadura, tornou-se um guru, ditando o que está certo e errado no
país. Dando receitas para o momento como se estivesse num programa de
culinária.
Os gritos nas redes sociais servem
mais para ilusão de que se protesta e de que se age. Uma espécie de descarga de
energia que se exaure na própria bolha e nada causa. Temer causa vexame em cima
de vexame no exterior e já não importa. Já não há vergonha. E há uma
desistência. E talvez algo ainda pior, que é a corrosão de qualquer sentimento
de pertencer a uma comunidade. O imperativo parece ser o de cuidar da própria
vida enquanto der.
2018 está longe, e não há nenhuma garantia
de que vai melhorar depois da eleição. Mas agora, neste momento, pessoas estão
morrendo mais do que antes, passando fome mais do que antes, sendo expulsas de
suas casas mais do que antes, perdendo seus direitos mais do que antes. Nas
periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais, seguidamente
com a farda do Estado. A floresta amazônica está sendo mais uma vez entregue ao
que há de mais arcaico na história do Brasil e está sendo destruída de forma
acelerada, comprometendo qualquer futuro possível.
E você, isso que se convencionou
chamar de “povo”, não importa para mais nada.
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