Nelson M. Mendes
Vamos aos fatos: você foi condicionado,
é manipulado pelas forças que não querem que absolutamente nada mude sob o sol
desse “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Repetindo pela milésima vez: tudo –
todos os sistemas cosmológicos, físicos, biológicos, humanos – tem seu fim. E o
Capitalismo caiu de podre, morreu. O fraudulento upgrade (ou ajuste) chamado Neoliberalismo não passa de uma
sobrevida artificial, à base de aparelhos.
Um dos artifícios usados pelos “médicos”
que sofregamente tentam manter vivo o “paciente” é exatamente a Propaganda. Propaganda
é, de modo geral, uma forma institucionalizada de mentir. (Quem diz isso é um
publicitário.) E nunca se mentiu tanto como nessas décadas de agonia do
Capitalismo.
Quando se tentou, canhestra e enviesadamente,
colocar em prática as ideias que Marx havia esboçado como contraponto ao
Capitalismo, a reação foi violenta em todos os níveis: econômico, político,
militar, cultural e até religioso. Sim, a religião foi chamada a defender os
sacros valores capitalistas, inclusive com as justificativas teológicas mais
esdrúxulas e inacreditavelmente cínicas.
Mas a principal arma, mais poderosa até
do que bombas e pressões econômicas, é a Propaganda – que, como dissemos, é a
mentira institucionalizada.
A Propaganda ensinou você a confundir
Comunismo com sua degradação, praticamente seu oposto – o Stalinismo; a
misturar o conceito de sistema econômico
(Capitalismo, Comunismo...) com o de regime
político (Democracia, Monarquia...); a acreditar que nos ditos “países
comunistas” (que, stricto sensu,
jamais houve no mundo), as pessoas viviam delatando-se umas às outras e, por
causa da pobreza, comiam criancinhas.
No arranco final do Neoliberalismo – a
era das privatizações dos anos 80/90 – a Propaganda funcionou como uma
avalanche. Era preciso convencer o distinto público de que era bom para ele que
estratégicas empresas estatais, muitas com importante papel social e
verdadeiros pilares da economia nacional, fossem entregues a preço de banana à
sanha dos especuladores, muitos dos quais estrangeiros e sem qualquer interesse
no bem-estar do povo brasileiro.
Fizeram até a propaganda – lembra? – dos
elefantes competindo com cavalos de corrida. Os elefantes – claro –
representavam as lentas, desajeitadas e ineficientes empresas estatais; os
cavalos simbolizavam as empresas privatizadas. A propaganda dizia também que,
com as privatizações, o governo arrecadaria dinheiro para fazer investimentos sociais,
como em educação e saúde. As empresas privatizadas, por sua vez, melhor
geridas, dariam mais lucro e teriam recursos para investir em tecnologia e na
expansão dos serviços. Mais: as tarifas, sob o efeito desse “choque de gestão”,
cairiam.
Você acreditou em tudo isso. Natural: a
excelência da propaganda brasileira é internacionalmente reconhecida; e o povo
brasileiro é notoriamente inculto, despreparado, despolitizado. Não foi Darcy
Ribeiro quem disse que a negligência dos nossos governantes em relação à
educação é uma estratégia?
A miséria que o governo arrecadou com as
privatizações evaporou-se – provavelmente numa nuvem de propina. Os serviços não melhoraram. As tarifas não
caíram, pelo contrário: subiram. E, para que fossem honrados os bons costumes e
princípios neoliberais, milhares de trabalhadores foram colocados no olho da
rua. Afinal, o importante é cortar custos e aumentar lucros.
Mas você continuou achando isso bom. A
propaganda é a arma do negócio.
Quando, em 2008, o Capitalismo teve uma
de suas muitas síncopes – a prevista, pelos economistas honestos, “crise
financeira internacional” – , você levou
um susto. Você naturalmente nem sonhava em nascer em 1929, quando uma
devastadora crise, provocada pela natural autofagia do sistema capitalista, só
foi debelada de fora, pela mão forte
e salvadora do tão execrado Estado: o New
Deal de Roosevelt foi o oxigênio que salvou o Capitalismo de uma crise
terminal. Em 2008, como em 1929 e em muitos outros momentos de crise, os especialistas garantiram que os rugidos
e fumaças do vulcão não significavam que a erupção estivesse próxima: estava
tudo tranquilo, as finanças iam de vento em popa.
A propaganda é a arma do negócio. É a mentira institucionalizada. E você caiu que
nem um patinho amarelo.
Nada de muito novo.
Em 1593 o botânico Carolus Clusius trouxe de Constantinopla (atual
Istambul) para a Holanda, com propósitos medicinais, alguns bulbos de tulipa.
Mas algumas de suas plantas foram roubadas e despertaram a atenção de quem
podia pagar para ostentar raridades.
Em breve se criou uma furiosa demanda por tulipas. A tulipa, naquele
começo de século XVII, se tornou o ouro do momento, o petróleo do momento.
Todos queriam enriquecer comprando e revendendo tulipas.
A tulipa
mais valiosa era a Semper Augustus,
pela rara coloração púrpura imperial.
Curiosa e simbolicamente, a cor era causada por uma doença, um vírus. O objeto
da cobiça dos especuladores era uma flor doente.
Mas os bulbos florescem somente entre a primavera e o verão, e apenas de
7 a 12 anos depois de plantados. Então os especuladores passaram a vender contratos de tulipas: o compromisso de
comprar a tulipa que ainda ia florescer. Modernamente, isso se chama título; trata-se de um contrato de futuros. Os próprios contratos
passaram a ser negociados: era o primeiro mercado
de derivativos do mundo. Os preços dos títulos
(ou vale-tulipas) passaram a subir
vertiginosamente.
Estava inventada a especulação financeira.
O Capitalismo estava no seu alvorecer. Já no século XVI as Leis de Cercamento (Eclousure Acts) haviam começado o processo de privatização de
terras, pondo fim ao regime dos open
fields e criando multidões de deserdados (ou desterrados) que passaram a se aglomerar nas cidades em busca de
migalhas. O comunismo informal (a
expressão é nossa), que Leonardo Boff identifica até mesmo nas primitivas
comunidades cristãs, definitivamente tornara-se coisa do passado.
A especulação com as tulipas, inicialmente praticada pelos holandeses
endinheirados, despertou o interesse de pessoas comuns e até estrangeiros,
principalmente franceses. Muitos se desfaziam de casas e outros bens para
investir na compra de tulipas, cujos preços continuavam a subir exponencialmente.
Mas a farra tinha data para acabar. No inverno de 1636/1637, alguém percebeu que não fazia
sentido investir uma fortuna numa flor e deixou de honrar um contrato; além
disso, descobriu-se que alguns títulos (vale-tulipas)
não correspondiam a qualquer tulipa como lastro,
isto é, eram falsos. A confiança no Mercado
ruiu, e imediatamente tulipas e respectivos títulos perderam totalmente o
valor.
Estava inventado o estouro da bolha.
Na história contemporânea, o estouro mais famoso e trágico foi o Crash de 1929 nos Estados Unidos. Assim
como ocorrera no século XVII na Holanda, milionários se viram de repente com
papéis sem qualquer valor – papéis podres.
O vírus da Semper Augustus, que
conferia à tulipa sua sedutora cor, atravessara os séculos e, mutante como são
frequentemente os vírus, sob novo disfarce produzia novamente miséria,
sofrimento e morte.
E, assim como os holandeses haviam ficado desconfiados de investimentos
especulativos depois que as tulipas murcharam,
todo o mundo contemporâneo ficou escaldado
depois do Crash de 1929.
O Liberalismo havia falhado. Próceres liberais se reuniram às pressas e
criaram o remendo chamado Neoliberalismo. Fosse como fosse, a moderação
especulativa permaneceu por décadas.
Mas a cobiça é eterna e, nos anos 1980, com Reagan e Thatcher, a
avalanche neoliberal veio removendo as regulations
que haviam mantido uma certa decência no Mercado Financeiro.
2008 estava logo ali.
Você levou um susto, mas continuou acreditando nas falácias, nas
mentiras que lhe vinham sendo incutidas há décadas. Achou natural até que, sob
vigência do tão incensado Neoliberalismo, o Estado, o inimigo, fosse chamado em
todo o mundo a socorrer banqueiros e rentistas com dinheiro público. A lógica
do sistema é privatizar o lucro e socializar o prejuízo.
Mas você continuou achando tudo muito natural, muito científico.
Em 1989 você já não quisera votar na alternativa progressista que se
apresentava no segundo turno: Lula. Preferiu votar em Collor, o monstrengo
conservador que a propaganda fantasiara de indômito “Caçador de Marajás”, o
homem que acabaria com os altíssimos salários do setor público e, assim,
resolveria os problemas do país.
Você acreditou. Você é um homem de fé.
Quando Lula, depois de perder várias eleições, vestiu o figurino
“Lulinha paz e amor”, comprometendo-se, na famigerada “Carta aos brasileiros”,
a não incomodar os poderosos e a respeitar a quimera chamada Mercado, ele recebeu o aval do poder real para finalmente ganhar uma eleição. E aí você passou a achar que Lula,
afinal de contas, não era tão feio como o haviam pintado.
O problema é que Lula se reelegeu e ainda emplacou Dilma como sucessora.
O Mercado, os neoliberais, o poder real
– ninguém podia suportar isso.
Começou então a temporada de caça
às reputações, através do arremesso de
calúnias. O mesmo expediente que fora usado contra Getúlio, Jango, Brizola,
era agora usado, com vergonhosa participação do Legislativo, do Judiciário e da
mídia, para derrubar Dilma e condenar Lula num processo kafkiano.
É claro que você acreditou que estava tudo certo. A propaganda é mesmo a
arma do negócio.
Enquanto essas linhas são redigidas, o Brasil é eliminado pela Bélgica
na Copa do Mundo na Rússia. Gritos e silêncios na vizinhança me mantêm
informado sobre o andamento do jogo. Não deixa de ser curioso que, num mundo
com tantos problemas e carências, se dê tanta importância à trajetória de uma
esfera de couro em relação ao vão retangular, num plano vertical, determinado
por três traves e uma linha no gramado. Mas é assim mesmo: o povo parece gostar
mais até de circo do que de pão.
O ser humano parece mesmo não ter uma boa noção de prioridades e
valores. Não houve época em que as pessoas vendiam casa, gado, e provavelmente até
a mulher para investirem o dinheiro na compra de uma flor doente?
“A vida é um sopro” – dizia o já centenário Oscar Niemeyer. (Niemeyer
morreu perto de completar 105 anos.) Mas há muito mais tempo os textos cristãos
registraram: “Tudo é vaidade sob o Sol.” Vaidade, cobiça. Os homens correm
atrás de sombras, empenham-se em fazer passar uma bola por um vão vertical.
Pequenos e grandes perseguem as mesmas fantasias; mas os grandes, os
poderosos, que têm nas mãos o coelho e a cartola, fazem prestidigitações de
modo a que os pequenos ajudem os poderosos a realizar os próprios sonhos: o
escravo é colocado a trabalhar alegremente pelo senhor.
Você, adorador do Pato Amarelo; você, que participou da sinfonia das
panelas, sob a regência da Rede Globo; você, bolsuíno; você, analfascista:
todos vocês fazem exatamente esse trabalho de sustentar nos ombros uma ordem
socioeconômica injusta, desumana, covarde; insustentável.
Esse sistema, como se viu, começou a ser desenhado há 500 anos. Desde
então, vem sendo remendado, recebendo maquiagens. Mas a natureza nefasta do monstro
– que é uma glamourização, uma justificação
institucionalizada dos instintos mais selvagens do homem – não pode ser
disfarçada. O Capitalismo é a institucionalização da Lei da Selva, e ponto
final. Assim como a Publicidade – particularmente nessas permissivas terras
tropicais – é a institucionalização da Mentira.
E a Mentira trabalha a serviço da Mentira. Movida pela cobiça, a turba acredita
nas mentiras, segue um enganador mapa do tesouro.
Mas, assim como tudo é vaidade, tudo tem seu tempo. Para continuar
citando a Bíblia: “Ao pó voltarás.” E, para dar um selo de erudição ao
parágrafo, posso citar Heráclito, caprichando na transliteração: “Panta rhei” –
tudo flui.
O atual sistema passará; já passou. A Mentira o mantém aparentemente
vivo. O Capitalismo é mais do que uma tulipa doente, como a Semper Augustus: é uma flor podre.
3 comentários:
Texto exelente meu inteligentíssimo amigo Nelson!
Ilustra exatamente o vil desenho doutrinado para a sociedade, que não consegui se verificar, como eterna massa de manobra!!!
Bora pra quinta!!!
Excelente texto!
Muito bom, Nelson. Parabéns. Você conseguiu sintetizar um processo terrível que a humanidade atravessa, com tantos zumbis sustentando poucos nas suas "grandezas".
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