A foto de abertura mostra um dos
raríssimos lagos de água doce no deserto egípcio. Falso: a ilusão é perfeita,
podem-se ver até mesmo elementos topográficos refletidos na água; mas trata-se apenas da famosa
“miragem do deserto”. O Egito moderno é isso: uma miragem, um projeto por
realizar, que se vê contra a solidez inelutável da areia, da rocha, dos templos
e pirâmides.
O título é obviamente uma referência
ao livro
“O Egito secreto”, de Paul Brunton. A oposição tem também uma explicação
óbvia: o Egito que conheci é o Egito contemporâneo, com seus problemas
políticos, econômicos, sociais, com sua pobreza, sua sujeira.
O Egito é marrom, ou bege. Bege da
areia, das rochas, mas também das construções que, mesmo feitas com materiais
modernos, parecem não conseguir desvencilhar-se da tradição do adobe: casas e
prédios são dados por terminados uma vez assentados os tijolos; o concreto e o
tijolo permanecem expostos, como se os prédios estivessem ainda em construção.
Emboço, reboco e pintura são considerados frivolidades cosméticas: raras
construções têm alguma cor.
A areia está em toda parte. Não há, nas
cidades (não apenas no Cairo), a tradição
de calçadas, stricto-sensu, por onde
possam circular os pedestres: o que há (quando há) é uma estreita faixa, de não
mais de 70 cm, guarnecida por um meio-fio altíssimo e em geral pintado de preto
e branco (para os brasileiros, algo como
um “gelo-baiano” zebrado); essa
estreita faixa é mais propriamente um canteiro
do que uma calçada: pedaços de papel, plástico e outros materias despontam da
areia e cascalho. Não se sabe se a ausência de calçadas é causa ou efeito de um
curiosíssimo hábito egípicio: as pessoas caminham calmamente entre os veículos
em movimento, muitas vezes com crianças no colo. Há como que um pacto de não agressão entre pedestres e
motoristas. Aliás, não há aquela agressividade que se vê no trânsito
brasileiro: os motoristas avançam quando têm de avançar, cedem a vez quando têm
de ceder, uma espécie de bom-senso prevalece sobre a rigidez das normas e todos
se entendem.
A areia se acumula não apenas nessas
áreas correspondentes às calçadas, mas ao longo dos meios-fios, já nas faixas
de rolamento, como podemos observar em algumas cidades litorâneas brasileiras
depois que um vento forte lança nas ruas a areia das praias; a diferença é que,
no Egito, a areia é crônica. Ela se
acumula também em áreas mais amplas (por exemplo, algo como praças, ou espaços deixados pelo desenho
das vias urbanas), onde podemos ver não apenas aquele quadro de materiais
surgindo da areia, mas também rochas, entulho de obra, grandes pedaços de
concreto. É como se o Egito estivesse se reconstruindo depois de um terremoto,
como se as cidades estivessem sempre em obras. É como se o egípcio tivesse
desistido da milenar luta contra o deserto.
Mas a onipresente areia e a ausência de
calçadas não foram as coisas que incomodaram. Dentre os aspectos negativos
registrados, posso destacar: 1) o assédio dos vendedores, e a obsessão
pecuniária generalizada; 2) as complicações teoburocráticas
para se tomar uma bebida alcoólica; 3) o clima militarizado, policializado, a
obrigação de passar por raios-x e detectores de metal não apenas nos
aeroportos, mas para entrar nos hotéis e visitar atrações históricas; 4) uma
espécie de hipocrisia cultural, de que dou dois exemplos: a)
no barco em que fizemos o cruzeiro pelo Nilo, o cardápio do restaurante trazia
alguns drinques – mas no restaurante só uma aguadíssima cerveja local podia
ser servida, talvez por ter um teor
alcoólico baixo o bastante pra não ofender Alá; bebidas mais fortes só podiam
ser servidas no bar do piso superior – onde os garçons eram todos cristãos,
infiéis. b) câmeras fotográficas eram proibidas em muitos lugares, mesmo a
minha pequena e e já quase arqueológica
câmera digital; mas fazer fotos com telefones celulares, dotados de câmeras
muito superiores à minha, era permitido. (Outra coisa que me irritava era a
necessidade, em muitos lugares, de comprar um ticket-foto, à parte do ingresso propriamente dito, para ter o
direito de fazer fotos: seria muito mais lógico, simples e asséptico, se fosse o caso, cobrar um pouco mais pelo ingresso, para
que todos tivessem automaticamente o direito de fotografar. Num dos templos, em
que apenas Maria Helena pagara pelo direito
imagético, eu fui rudemente interpelado por um funcionário, cobrando-me o
ticket especial, apenas porque sacara de minha câmera para registrar Maria
Helena em pleno ato de fotografar... Eu fiquei com a impressão de que ele
estivera à espreita, esperando que eu desse o clique fatal.)
Pode parecer, pela acidez dos meus comentários, que escarneço
do Islã, que sou cristão ou até ateu. Mas nada disso é verdade. O que repudio é
o fundamentalismo, o dogmatismo, o “bairrismo ideológico”, o reducionismo; esse
repúdio aplica-se a muçulmanos, cristãos, budistas, hinduístas, judeus, ateus.
(Sim, porque existem não apenas o fundamentalismo e o reducionismo religiosos,
mas ateístas, econômicos, políticos, psicanalíticos... Nos anos 60/70, por
exemplo, Freud explicava tudo, da acne à exploração espacial, vista como
pretexto para a elaboração de foguetes de inspiração fálica.)
Entretanto, se eu não podia deixar de perceber certos dados
culturais e peculiaridades comportamentais, o que me interessava era a beleza do
Egito: não apenas a beleza dos monumentos em que ficou gravada uma história de
que os exegetas contemporâneos conseguem captar apenas a superfície; mas a
beleza natural: a partir do navio em que percorremos o Nilo, fiz dezenas de
fotos mostrando aspectos das margens do rio, algumas vezes separado do deserto
por uma fímbria vegetal de uns poucos metros. Aliás, as viagens de van pelo
deserto, em alguns casos, me entusiasmavam mais até do que alguns sítios
históricos...
Cabem alguns comentários mais extensos sobre a maneira como
me aproximei das atrações turísticas
do Egito. Porque eu não era tabula rasa,
mas tampouco era um turista carregado de ideias pré-concebidas e possivelmente
baseadas em versões hollywoodianas da história egípcia. A minha principal
referência era o livro que citei na abertura – “O Egito secreto”, do jornalista,
escritor e “filósofo não acadêmico” (como ele próprio se definiu) Paul Brunton.
Foi depois de ler esse livro que fiquei convencido de que o buraco da pirâmide
é muito mais embaixo do que supõe a nossa vã filosofia.
Havia uma jornalista, inglesa como Brunton, que trabalhava
num jornal sob as ordens de um certo Bernard Shaw. Seu nome era Annie Besant. Cética,
materialista, inteligente, ativista social, possivelmente até com tendências
marxistas, Annie Besant era a pessoa perfeita para a missão que Bernard Shaw
tinha em mente: desmascarar Helena Blavatsky, a misteriosa russa que
apresentara ao mundo um saber reunido sob o nome de Teosofia.
O plano de Shaw não deu certo: subjugada pela solidez da
sabedoria de Blavatsky, bem como por sua energia moral, Annie Besant converteu-se e viria a se tornar um dos
pilares da Sociedade Teosófica.
Durante a viagem ao Egito, coincidentemente, eu lia mais um excelente livro de Annie Besant, “O
Cristianismo esotérico”. Dele extraio a seguinte passagem: “Os Mistérios do
Egito foram a glória dessa terra venerável, e os maiores filhos da Grécia, tal
como Platão, se transportaram a Sais e a Tebas para aí serem iniciados por
egípcios, Instrutores da Sabedoria.” Diz ainda Besant: “O mito é infinitamente
mais verdadeiro que a história; a história apenas nos mostra uma sucessão de
sombras e o mito nos fala dos corpos que as produzem. [...] A história é uma
narração imperfeita, e quase sempre desfigurada, da dança caprichosa destas
sombras, no mundo ilusório da matéria física.”
O Egito do meu imaginário era esse, o de verdades atemporais
gravadas na pedra em linguagem cifrada. Enigmas manifestos no tradicional
desafio da Esfinge: “Decifra-me ou te devoro.”
O famoso Mito da Caverna, de Platão (que iniciou-se no Egito,
como vimos), é uma referência ao estado de ilusão em que vive o homem, tomando
o que é sombra pelo Real. Como a Grécia representa o racionalismo, a
democracia, o antropocentrismo, e até geograficamente funcionou como um filtro
dos saberes do Oriente, os filósofos gregos (incluindo o platônico Platão)
resultam mais palatáveis ao egoico e soberbo ocidental; mas é certo que esse
homem ocidental não entende verdadeiramente o mito platônico.
Frequentemente os diligentes e cultos guias, que nos levaram
aos magníficos monumentos egípcios, abriam um parêntesis antes de passar alguma
informação: “Há algumas teorias...” A prudência justifica-se: como ter certeza
sobre o que se passou há milênios – e, segundo algumas correntes, há muito mais
tempo do que supõe a historiografia oficial? Além disso, se há uma certeza é a
de que não somos capazes de alcançar o sentido mais profundo e verdadeiro de
todos aqueles símbolos. Nem mesmo o professor Zahi Hawass, talvez o maior
egiptólogo vivo (e de quem nosso guia-chefe
foi aluno) é capaz de atinar com esse sentido profundo. Escreve Annie Besant a
respeito da interpretação das Escrituras cristãs (que guardam muito mais
similaridades com tradições religiosas orientais do que supõe o cristão
dogmático e sectário): “No quarto livro do De
Principiis, Orígenes explica longamente como compreende a interpretação das
Escrituras. Elas têm um ‘corpo’, isto é, ‘o sentido ordinário e histórico’, uma
‘alma’ ou sentido figurado que pode ser percebido intelectualmente; finalmente,
um ‘espírito’, sentido interior e divino que só conhece aquele que possui ‘a
inteligência do Cristo’.”
Reitera Annie Besant: “O conhecimento do símbolos é,
portanto, necessário para ler um mito, pois os primeiros autores dos grandes
mitos foram sempre Iniciados habituados a empregar a língua simbólica, usando
símbolos num sentido fixo e convencional.”
Assim como o Egito contemporâneo é apenas
a sombra do Egito histórico, as interpretações atuais dos antigos mitos são
apenas a sombra imprecisa de mensagens atemporais.
Este Egito contemporâneo é o Egito dos
Mohammeds: nosso guia-chefe chama-se
Mohammed Moses; o homem que nos recebeu no aeroporto do Cairo chama-se
Mohammed; o guia que nos acompanhou a partir de Luxor é Mohammed; o garçom que
nos servia no navio é Mohammed; o motorista da van é Mohammed.
Não são os hieróglifos, os templos magníficos, o Nilo ou a
rude beleza do deserto o que levo como lembrança. A imagem que me fica do Egito
é a do olhar do condutor de charrete, que nos levou a um dos templos antigos às
margens do Nilo, pedindo gorjeta: um
olhar súplice, semelhante ao que ficou registrado na que provavelmente foi uma
das primeiras fotografias feitas no Brasil: a de um escravo com olhar
indigente, de desterro. O condutor de charrete egípcio não deixa de ser a
reedição do antigo escravo que suou sob o sol para erguer as pirâmides: é um
escravo contemporâneo, um segregado como tantos de todas as épocas. Seu olhar é
o do terceiro mundo, que se vê abandonado no deserto, longe das conquistas e
confortos do nosso tempo. À sombra de alguns dos mais magníficos monumentos do
passado, o condutor de charrete suplica gorjeta.
Seu nome é Mohammed.
9 comentários:
Adorei o texto Nelson e foi um prazer estar no grupo com vocês! Abraços
Amei o texto ,me identifiquei com pensamentos e interpretações suas ,parabéns ,um privilégio para nosso grupo.Grande abraço.
Lindo ver o Egito pelos seus olhos!!!!
Maravilhoso seu texto!! Conheci o verdadeiro Egito através de suas palavras. Parabéns e obrigada
Lindíssimo texto Nelson, bom ver o Egito sob seu olhar. Imagino a viagem toda é adoraria ver as fotos... leria sem cessar um livro contado por vc. Obrigada por compartilhar
Belo texto Nelson. Sobre as calçadas, na Idade Média ou mesmo Roma e Grécia antigas também não existiam. No Rio de Janeiro colonial também não. São produtos do funcionalismo que ordenou o espaço público com o advento dos automóveis. As praças - antes largos - também foram revistas com o ordenamento neoclassico. Antes a convivência (pessoas, animais carroças) era a regra. Abração!
Oi Nelson! Deve ter sido uma experiência singular. A viagem a um país dos mais antigos e ricos em história, com este olhar sagaz,diversificado e ao mesmo tempo divertido que somente os grandes curiosos e interessados como você no estudo e compreensão dos povos, de suas origens e dos seus costumes consegue desenvolver.Este aspecto torna uma viagem como esta simplesmente inesquecível. Parabéns! Muito obrigado! Grande abraço!
Lindo texto meu grande e sábio amigo Nelson! Sempre sob a agradável proteção de sua fiel e inteligente esposa/parceira, Maria Helena!
Certamente em uma possível viagem ao Egito, seria voce um parceiro espetacular para trocar percepções, que podem ir além da admiração das visões de milenares dos monumentos. Talvez mais interessados em Platão, do que as histórias 'românticas' de Cleópatra!
Grande abraço amigo!!!
Ótimo texto e um prazer a companhia de vocês nessa viagem! Saudades! Abraços
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