sábado, 27 de outubro de 2018

O Egito explícito




Nelson M. Mendes





A foto de abertura mostra um dos raríssimos lagos de água doce no deserto egípcio. Falso: a ilusão é perfeita, podem-se ver até mesmo elementos topográficos refletidos na água; mas trata-se apenas da famosa “miragem do deserto”. O Egito moderno é isso: uma miragem, um projeto por realizar, que se vê contra a solidez inelutável da areia, da rocha, dos templos e pirâmides.
O título é obviamente uma referência ao  livro  “O Egito secreto”, de Paul Brunton. A oposição tem também uma explicação óbvia: o Egito que conheci é o Egito contemporâneo, com seus problemas políticos, econômicos, sociais, com sua pobreza, sua sujeira.
O Egito é marrom, ou bege. Bege da areia, das rochas, mas também das construções que, mesmo feitas com materiais modernos, parecem não conseguir desvencilhar-se da tradição do adobe: casas e prédios são dados por terminados uma vez assentados os tijolos; o concreto e o tijolo permanecem expostos, como se os prédios estivessem ainda em construção. Emboço, reboco e pintura são considerados frivolidades cosméticas: raras construções têm alguma cor.
A areia está em toda parte. Não há, nas cidades (não apenas no Cairo), a tradição de calçadas, stricto-sensu, por onde possam circular os pedestres: o que há (quando há) é uma estreita faixa, de não mais de 70 cm, guarnecida por um meio-fio altíssimo e em geral pintado de preto e branco (para os brasileiros,  algo como um “gelo-baiano” zebrado); essa estreita faixa é mais propriamente um canteiro do que uma calçada: pedaços de papel, plástico e outros materias despontam da areia e cascalho. Não se sabe se a ausência de calçadas é causa ou efeito de um curiosíssimo hábito egípicio: as pessoas caminham calmamente entre os veículos em movimento, muitas vezes com crianças no colo. Há como que um pacto de não agressão entre pedestres e motoristas. Aliás, não há aquela agressividade que se vê no trânsito brasileiro: os motoristas avançam quando têm de avançar, cedem a vez quando têm de ceder, uma espécie de bom-senso prevalece sobre a rigidez das normas e todos se entendem.
A areia se acumula não apenas nessas áreas correspondentes às calçadas, mas ao longo dos meios-fios, já nas faixas de rolamento, como podemos observar em algumas cidades litorâneas brasileiras depois que um vento forte lança nas ruas a areia das praias; a diferença é que, no Egito, a areia é crônica.  Ela se acumula também em áreas mais amplas (por exemplo, algo como praças, ou espaços deixados pelo desenho das vias urbanas), onde podemos ver não apenas aquele quadro de materiais surgindo da areia, mas também rochas, entulho de obra, grandes pedaços de concreto. É como se o Egito estivesse se reconstruindo depois de um terremoto, como se as cidades estivessem sempre em obras. É como se o egípcio tivesse desistido da milenar luta contra o deserto.
Mas a onipresente areia e a ausência de calçadas não foram as coisas que incomodaram. Dentre os aspectos negativos registrados, posso destacar: 1) o assédio dos vendedores, e a obsessão pecuniária generalizada; 2) as complicações teoburocráticas para se tomar uma bebida alcoólica; 3) o clima militarizado, policializado, a obrigação de passar por raios-x e detectores de metal não apenas nos aeroportos, mas para entrar nos hotéis e visitar atrações históricas; 4) uma espécie de hipocrisia cultural, de que dou dois exemplos: a) no barco em que fizemos o cruzeiro pelo Nilo, o cardápio do restaurante trazia alguns drinques – mas no restaurante só uma aguadíssima cerveja local podia ser  servida, talvez por ter um teor alcoólico baixo o bastante pra não ofender Alá; bebidas mais fortes só podiam ser servidas no bar do piso superior – onde os garçons eram todos cristãos, infiéis. b) câmeras fotográficas eram proibidas em muitos lugares, mesmo a minha pequena e e já quase arqueológica câmera digital; mas fazer fotos com telefones celulares, dotados de câmeras muito superiores à minha, era permitido. (Outra coisa que me irritava era a necessidade, em muitos lugares, de comprar um ticket-foto, à parte do ingresso propriamente dito, para ter o direito de fazer fotos: seria muito mais lógico, simples e asséptico, se fosse o caso, cobrar um pouco mais pelo ingresso, para que todos tivessem automaticamente o direito de fotografar. Num dos templos, em que apenas Maria Helena pagara pelo direito imagético, eu fui rudemente interpelado por um funcionário, cobrando-me o ticket especial, apenas porque sacara de minha câmera para registrar Maria Helena em pleno ato de fotografar... Eu fiquei com a impressão de que ele estivera à espreita, esperando que eu desse o clique fatal.)
Pode parecer, pela acidez dos meus comentários, que escarneço do Islã, que sou cristão ou até ateu. Mas nada disso é verdade. O que repudio é o fundamentalismo, o dogmatismo, o “bairrismo ideológico”, o reducionismo; esse repúdio aplica-se a muçulmanos, cristãos, budistas, hinduístas, judeus, ateus. (Sim, porque existem não apenas o fundamentalismo e o reducionismo religiosos, mas ateístas, econômicos, políticos, psicanalíticos... Nos anos 60/70, por exemplo, Freud explicava tudo, da acne à exploração espacial, vista como pretexto para a elaboração de foguetes de inspiração fálica.)

Entretanto, se eu não podia deixar de perceber certos dados culturais e peculiaridades comportamentais, o que me interessava era a beleza do Egito: não apenas a beleza dos monumentos em que ficou gravada uma história de que os exegetas contemporâneos conseguem captar apenas a superfície; mas a beleza natural: a partir do navio em que percorremos o Nilo, fiz dezenas de fotos mostrando aspectos das margens do rio, algumas vezes separado do deserto por uma fímbria vegetal de uns poucos metros. Aliás, as viagens de van pelo deserto, em alguns casos, me entusiasmavam mais até do que alguns sítios históricos...



Cabem alguns comentários mais extensos sobre a maneira como me aproximei das atrações turísticas do Egito. Porque eu não era tabula rasa, mas tampouco era um turista carregado de ideias pré-concebidas e possivelmente baseadas em versões hollywoodianas da história egípcia. A minha principal referência era o livro que citei na abertura – “O Egito secreto”, do jornalista, escritor e “filósofo não acadêmico” (como ele próprio se definiu) Paul Brunton. Foi depois de ler esse livro que fiquei convencido de que o buraco da pirâmide é muito mais embaixo do que supõe a nossa vã filosofia.

Havia uma jornalista, inglesa como Brunton, que trabalhava num jornal sob as ordens de um certo Bernard Shaw. Seu nome era Annie Besant. Cética, materialista, inteligente, ativista social, possivelmente até com tendências marxistas, Annie Besant era a pessoa perfeita para a missão que Bernard Shaw tinha em mente: desmascarar Helena Blavatsky, a misteriosa russa que apresentara ao mundo um saber reunido sob o nome de Teosofia.

O plano de Shaw não deu certo: subjugada pela solidez da sabedoria de Blavatsky, bem como por sua energia moral, Annie Besant converteu-se e viria a se tornar um dos pilares da Sociedade Teosófica.

Durante a viagem ao Egito, coincidentemente, eu lia mais um excelente livro de Annie Besant, “O Cristianismo esotérico”. Dele extraio a seguinte passagem: “Os Mistérios do Egito foram a glória dessa terra venerável, e os maiores filhos da Grécia, tal como Platão, se transportaram a Sais e a Tebas para aí serem iniciados por egípcios, Instrutores da Sabedoria.” Diz ainda Besant: “O mito é infinitamente mais verdadeiro que a história; a história apenas nos mostra uma sucessão de sombras e o mito nos fala dos corpos que as produzem. [...] A história é uma narração imperfeita, e quase sempre desfigurada, da dança caprichosa destas sombras, no mundo ilusório da matéria física.”

O Egito do meu imaginário era esse, o de verdades atemporais gravadas na pedra em linguagem cifrada. Enigmas manifestos no tradicional desafio da Esfinge: “Decifra-me ou te devoro.”

O famoso Mito da Caverna, de Platão (que iniciou-se no Egito, como vimos), é uma referência ao estado de ilusão em que vive o homem, tomando o que é sombra pelo Real. Como a Grécia representa o racionalismo, a democracia, o antropocentrismo, e até geograficamente funcionou como um filtro dos saberes do Oriente, os filósofos gregos (incluindo o platônico Platão) resultam mais palatáveis ao egoico e soberbo ocidental; mas é certo que esse homem ocidental não entende verdadeiramente o mito platônico.

Frequentemente os diligentes e cultos guias, que nos levaram aos magníficos monumentos egípcios, abriam um parêntesis antes de passar alguma informação: “Há algumas teorias...” A prudência justifica-se: como ter certeza sobre o que se passou há milênios – e, segundo algumas correntes, há muito mais tempo do que supõe a historiografia oficial? Além disso, se há uma certeza é a de que não somos capazes de alcançar o sentido mais profundo e verdadeiro de todos aqueles símbolos. Nem mesmo o professor Zahi Hawass, talvez o maior egiptólogo vivo (e de quem nosso guia-chefe foi aluno) é capaz de atinar com esse sentido profundo. Escreve Annie Besant a respeito da interpretação das Escrituras cristãs (que guardam muito mais similaridades com tradições religiosas orientais do que supõe o cristão dogmático e sectário): “No quarto livro do De Principiis, Orígenes explica longamente como compreende a interpretação das Escrituras. Elas têm um ‘corpo’, isto é, ‘o sentido ordinário e histórico’, uma ‘alma’ ou sentido figurado que pode ser percebido intelectualmente; finalmente, um ‘espírito’, sentido interior e divino que só conhece aquele que possui ‘a inteligência do Cristo’.”

Reitera Annie Besant: “O conhecimento do símbolos é, portanto, necessário para ler um mito, pois os primeiros autores dos grandes mitos foram sempre Iniciados habituados a empregar a língua simbólica, usando símbolos num sentido fixo e convencional.”

Assim como o Egito contemporâneo é apenas a sombra do Egito histórico, as interpretações atuais dos antigos mitos são apenas a sombra imprecisa de mensagens atemporais.
Este Egito contemporâneo é o Egito dos Mohammeds: nosso guia-chefe chama-se Mohammed Moses; o homem que nos recebeu no aeroporto do Cairo chama-se Mohammed; o guia que nos acompanhou a partir de Luxor é Mohammed; o garçom que nos servia no navio é Mohammed; o motorista da van é Mohammed.
Não são os hieróglifos, os templos magníficos, o Nilo ou a rude beleza do deserto o que levo como lembrança. A imagem que me fica do Egito é a do olhar do condutor de charrete, que nos levou a um dos templos antigos às margens do Nilo,  pedindo gorjeta: um olhar súplice, semelhante ao que ficou registrado na que provavelmente foi uma das primeiras fotografias feitas no Brasil: a de um escravo com olhar indigente, de desterro. O condutor de charrete egípcio não deixa de ser a reedição do antigo escravo que suou sob o sol para erguer as pirâmides: é um escravo contemporâneo, um segregado como tantos de todas as épocas. Seu olhar é o do terceiro mundo, que se vê abandonado no deserto, longe das conquistas e confortos do nosso tempo. À sombra de alguns dos mais magníficos monumentos do passado, o condutor de charrete suplica gorjeta.

Seu nome é Mohammed.

9 comentários:

André disse...

Adorei o texto Nelson e foi um prazer estar no grupo com vocês! Abraços

Rosemari Kloeckner disse...

Amei o texto ,me identifiquei com pensamentos e interpretações suas ,parabéns ,um privilégio para nosso grupo.Grande abraço.

Unknown disse...

Lindo ver o Egito pelos seus olhos!!!!

MEMÓRIAS CAMINHADAS disse...

Maravilhoso seu texto!! Conheci o verdadeiro Egito através de suas palavras. Parabéns e obrigada

Unknown disse...

Lindíssimo texto Nelson, bom ver o Egito sob seu olhar. Imagino a viagem toda é adoraria ver as fotos... leria sem cessar um livro contado por vc. Obrigada por compartilhar

romay disse...

Belo texto Nelson. Sobre as calçadas, na Idade Média ou mesmo Roma e Grécia antigas também não existiam. No Rio de Janeiro colonial também não. São produtos do funcionalismo que ordenou o espaço público com o advento dos automóveis. As praças - antes largos - também foram revistas com o ordenamento neoclassico. Antes a convivência (pessoas, animais carroças) era a regra. Abração!

Ivan disse...

Oi Nelson! Deve ter sido uma experiência singular. A viagem a um país dos mais antigos e ricos em história, com este olhar sagaz,diversificado e ao mesmo tempo divertido que somente os grandes curiosos e interessados como você no estudo e compreensão dos povos, de suas origens e dos seus costumes consegue desenvolver.Este aspecto torna uma viagem como esta simplesmente inesquecível. Parabéns! Muito obrigado! Grande abraço!

Júlio Campolina disse...

Lindo texto meu grande e sábio amigo Nelson! Sempre sob a agradável proteção de sua fiel e inteligente esposa/parceira, Maria Helena!
Certamente em uma possível viagem ao Egito, seria voce um parceiro espetacular para trocar percepções, que podem ir além da admiração das visões de milenares dos monumentos. Talvez mais interessados em Platão, do que as histórias 'românticas' de Cleópatra!
Grande abraço amigo!!!

André disse...

Ótimo texto e um prazer a companhia de vocês nessa viagem! Saudades! Abraços