A democracia
representativa está esgotada.
Entrevista com Jean
Ziegler
21 Maio 2019
Platão registrou há séculos: “Tal
homem, tal Estado; os governos variam como variam os caracteres dos homens
[...] Como são encantadoras as pessoas! [...] Fazem experiências com a
legislação e acreditam que, por meio de reformas, terminarão com as
desonestidades e canalhices da espécie humana – sem perceberem que na realidade
estão desferindo golpes nas cabeças de uma hidra.”
Consta que a Grécia que nos deu
Platão também nos deu a Democracia – regime que, segundo Churchil, “é a pior
forma de governo, com exceção de todas as demais”.
De fato, a Democracia – que no
século 20 foi falaciosamente transformada no ‘antídoto’ para o “Comunismo” –
tornou-se uma espécie de religião dos ateus. ´Democracia é coisa sagrada. É
proibido falar mal da Democracia.
Pois eis que o “Tempo rei”, de
Gilberto Gil, vem confirmar Platão: como as “canalhices da espécie humana” são
renováveis, a Democracia já não dá conta de controlá-las.
É o que afirma Jean Ziegler em
entrevista.
Nelson M. Mendes
Texto
original:
Texto editado
/ NMM:
Jean Ziegler é há quase meio século um intelectual público de projeção global. Seu ativismo rendeu-lhe inimigos entre os bancos, empresários, lideranças conservadoras, e até mesmo no campo mais progressista.
Para Ziegler,
a “democracia representativa está
esgotada” e a resposta à atual crise está no
fortalecimento de uma sociedade civil planetária.
A entrevista é de Jamil Chade, publicada
por SWI,
14-05-2019.
Eis a entrevista.
Vemos em diferentes partes do
mundo uma reação popular contra partidos tradicionais e contra a política.
Também vemos a vitória de políticos como Orban, Trump, Salvini e Bolsonaro. Por qual motivo o sr. acredita que
estamos vendo essa onda?
O mundo se tornou incompreensível
para o cidadão. As 500 empresas multinacionais privadas têm 52% do PIB do mundo
(todos os setores reunidos, bancos, serviços e empresas). Elas monopolizam
um poder
econômico-financeiro, ideológico e político que jamais um imperador ou papa teve na
história da humanidade.
Eles escapam de todos os controles de estado, parlamentares, sindicais ou
qualquer outro controle social. Eles têm uma estratégia só: maximização dos
lucros, no tempo mais curto e não importa a qual preço humano.
Elas são responsáveis, sem dúvida,
por um processo de invenção científica de fato extraordinário.
Até o fim da URSS,
havia a bipolaridade da sociedade dos Estados. A partir de 1991, o capitalismo se
espalhou como fogo de palha. Hoje, o Neoliberalismo sustenta que não são os homens, mas os mercados que fazem a
história e que as forças
do mercado obedecem às leis da natureza.
E qual é a implicação disso
para o cidadão?
De fato, entre o fim da URSS no começo dos
anos 1990, e o ano de 2000, o PIB
mundial dobrou. Mas tudo nas mãos de um número reduzido de pessoas.
A fortuna pessoal dos 36 indivíduos mais ricos do
mundo, segundo a Oxfam,
é igual à renda dos 4,7 bilhões de pessoas mais pobres da humanidade.
A agricultura mundial poderia alimentar normalmente 12 bilhões de
seres humanos. Ou seja, não há fatalidade. Uma criança que morre de fome é assassinada.
Isso é sustentável?
De forma alguma. A desigualdade é vergonhosa. Os mais ricos não pagam impostos como deveriam. Os paraísos fiscais, o sigilo bancário suíço - que continua - isso tudo ainda permite uma enorme opacidade. As maiores fortunas do mundo e as maiores multinacionais pagam os impostos que querem.
Isso é sustentável?
De forma alguma. A desigualdade é vergonhosa. Os mais ricos não pagam impostos como deveriam. Os paraísos fiscais, o sigilo bancário suíço - que continua - isso tudo ainda permite uma enorme opacidade. As maiores fortunas do mundo e as maiores multinacionais pagam os impostos que querem.
E qual a consequência disso?
O fato gera duas situações: esvazia a capacidade social de resposta dos governos e impede contribuições obrigatórias dos países mais ricos às organizações especializadas da ONU que lutam contra a miséria no mundo. Portanto, esse sistema mata.
Essa ditadura do mercado faz com que os cidadãos entendam que não é o governo que tem o poder de definir o destino. Isso cria uma insegurança completa.
O fato gera duas situações: esvazia a capacidade social de resposta dos governos e impede contribuições obrigatórias dos países mais ricos às organizações especializadas da ONU que lutam contra a miséria no mundo. Portanto, esse sistema mata.
Essa ditadura do mercado faz com que os cidadãos entendam que não é o governo que tem o poder de definir o destino. Isso cria uma insegurança completa.
Quem são, portanto, os atores que influenciam o destino econômico de um país?
As sociedades multinacionais privadas são as verdadeiras donas do mundo. Nos EUA, sob a administração Obama, foi criada uma lei que proibia o acesso ao mercado americano de minerais que tenham sido extraídos por crianças em suas minas, principalmente do Congo.
A lei [foi considerada] contra a liberdade dos mercados. Uma das primeiras medidas de Donald Trump, em janeiro de 2017, foi a de acabar com essa lei. Como este, existem muitos outros exemplos no meu livro.
Em quais setores?
A agricultura é outro. Em 2011, três semanas antes da reunião do G7 em Cannes, Nicolas Sarkozy declarou que iria propor que a especulação fosse proibida sobre produtos agrícolas de base. Isso seria uma forma de lutar contra o aumento de preços dos alimentos básicos, especialmente nos países mais pobres. Faltando poucos dias para o G7, a França retirou sua proposta, depois de ter sido pressionada pelas grandes empresas do setor, como Unilever, Nestlé e outras. Essa mobilização impediu uma ação do presidente da França.
Portanto: o Capitalismo mostrou vitalidade nos avanços
tecnológicos e tem uma produtividade muito superior. Mas o modelo capitalista escapa
de todo o controle político, sindical ou da ONU. Eu insisto: ele funciona
sob apenas um princípio, que é o da maximização
dos lucros, no tempo mais curto possível e a qualquer preço.
E o que isso significa para
uma democracia?
É um sistema que priva o cidadão,
mesmo numa Democracia, de todo tipo de resposta efetiva à
precariedade, à desigualdade.
E se cria uma espécie de desespero silencioso. E, como ocorreu na Alemanha, é neste momento
que vêm os grupos de extrema-direita com sua estratégia de criar um
bode expiatório.
De que forma?
Eles chegam a declaram ao cidadão:
sim, sua situação é insuportável. Mas, num segundo momento, apresentam um bode
expiatório para essa crise. Na Europa,
eles são os imigrantes e
os refugiados.
Esses movimentos denunciam a
entrada de estrangeiros em seus países. Como o senhor avalia?
Governos europeus cometem crimes
contra a humanidade, ao recusar de examinar os pedidos de asilo dos refugiados. O direito a pedir asilo
é uma convenção
internacional de 1951, ratificada por todos os países, e os
governos são obrigados a receber os pedidos. Os
eslovacos aceitaram apenas 285 refugiados. Na Hungria, crianças estão na prisão. Mas mesmo assim esses
governos continuam sendo sancionados pela UE, que continua a lhes enviar dinheiro. As
sanções, portanto, são inexistentes.
E qual tem sido o resultado
dessa estratégia desses grupos populistas na Europa?
A estratégia do bode expiatório tem
funcionado. Além disso, a consciência coletiva está sendo cimentada por
uma ideologia neoliberal de
que o homem não é mais o sujeito da história e que apenas pode se adaptar à
situação e às forças do
mercado, que obedecem às leis naturais.
Mas, voltando ao ponto da
representatividade, tal cenário não ameaça minar a própria democracia?
Jean Jacques
Rousseau publicou seu livro O Contrato Social em 1762, que descreveu
a soberania popular e
o fato de dar a voz a alguém para me representar. A delegação é um pilar do
contrato social. Mas esse contrato social, que é a fundação da República, está
esgotado. Essa democracia
representativa está esgotada.
O povo não acredita mais nela. O
povo vê que, ao votar em um deputado, não é ele que toma decisões, mas a
ditadura mundial das oligarquias do capital
financeiro globalizado. Portanto, há uma percepção de que ela
não serve para nada. Ao mesmo tempo, esse povo não está disposto a abrir mão de
seu poder e nem de sua capacidade de intervenção. Os Coletes Amarelos, na França, estão dizendo:
o Parlamento faz
o que quer. Queremos ter o direito de propor leis, de votar por elas.
Quais são as respostas
possíveis?
Retirar essa placa de cimento das
consciências, que foi imposta. Se uma pessoa vê uma criança martirizada, se
reconhece imediatamente nela. Somos a única criatura na terra com essa
consciência de identidade. E é por isso que milhões de jovens se mobilizam pela sobrevivência do planeta e
contra o Capitalismo. Eles estão dizendo aos seus governos: façam algo contra essa ordem
canibal do mundo.
A questão climática pode ser decisiva nesse contexto para modificar a forma de pensamento?
O Acordo de Paris pede que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de suas emissões até 2030 e dediquem parte dos lucros ao desenvolvimento de energia alternativas, como solar, eólica e outras.
Mas desde 2015 as cinco grandes empresas aumentaram sua produção em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens dizem: isso não funcionará.
Então, existe esperança?
Por anos, fui membro do Conselho Executivo da Internacional Socialista. Seu presidente, Willy Brandt, dizia: não se preocupem. Lei por lei, vamos instaurar uma democracia social, igualdade de oportunidades e justiça social.
A questão climática pode ser decisiva nesse contexto para modificar a forma de pensamento?
O Acordo de Paris pede que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de suas emissões até 2030 e dediquem parte dos lucros ao desenvolvimento de energia alternativas, como solar, eólica e outras.
Mas desde 2015 as cinco grandes empresas aumentaram sua produção em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens dizem: isso não funcionará.
Então, existe esperança?
Por anos, fui membro do Conselho Executivo da Internacional Socialista. Seu presidente, Willy Brandt, dizia: não se preocupem. Lei por lei, vamos instaurar uma democracia social, igualdade de oportunidades e justiça social.
Mas isso não ocorreu. O que vimos
foi a instauração da ditadura mundial de oligarquias do capital financeiro
globalizado que dá suas ordens, mesmo aos estados mais poderosos.
Desde a queda do Muro de Berlim em 1989, a liberalização do mercado e a desigualdade social aumentaram. Mas Brandt também nos dizia: quando vocês falarem publicamente, o discurso deve ser analiticamente exato. Mas ele precisa ser concluído com uma afirmação de esperança. Caso contrário, é melhor ficar em casa.
Mas onde está essa esperança?
É a sociedade civil planetária. É a misteriosa fraternidade da noite, a miríade de movimentos sociais - Greenpeace, Anistia Internacional, movimento antirracista, de luta pela terra - que lutam contra a ordem canibal do mundo, cada qual em seu domínio.
Desde a queda do Muro de Berlim em 1989, a liberalização do mercado e a desigualdade social aumentaram. Mas Brandt também nos dizia: quando vocês falarem publicamente, o discurso deve ser analiticamente exato. Mas ele precisa ser concluído com uma afirmação de esperança. Caso contrário, é melhor ficar em casa.
Mas onde está essa esperança?
É a sociedade civil planetária. É a misteriosa fraternidade da noite, a miríade de movimentos sociais - Greenpeace, Anistia Internacional, movimento antirracista, de luta pela terra - que lutam contra a ordem canibal do mundo, cada qual em seu domínio.
Mas essa sociedade é invisível. Não
tem uma sede. Ela é visível cinco dias por ano, no Fórum Social Mundial, organizado pelos brasileiros
em Porto Alegre.
Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.
Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.
Notas:
[1] Jean Ziegler ocupa hoje a
vice-presidência do Comitê
Consultivo do Conselho
de Direitos Humanos da ONU.
[2] Em seu novo livro - Le capitalisme expliqué à ma petite-fille (en espérant qu'elle en verra la fin) - O capitalismo explicado à minha neta (com a esperança que ela veja o fim), da editora Seuil, o sociólogo tenta dissecar o sistema atual de produção e suas consequências para a cidadania.
[3] Ziegler já foi deputado federal, professor da Universidade de Genebra e professor da Universidade Paris Sorbonne. No início do século XXI, ele foi ainda o primeiro relator da ONU para o direito à alimentação.
[2] Em seu novo livro - Le capitalisme expliqué à ma petite-fille (en espérant qu'elle en verra la fin) - O capitalismo explicado à minha neta (com a esperança que ela veja o fim), da editora Seuil, o sociólogo tenta dissecar o sistema atual de produção e suas consequências para a cidadania.
[3] Ziegler já foi deputado federal, professor da Universidade de Genebra e professor da Universidade Paris Sorbonne. No início do século XXI, ele foi ainda o primeiro relator da ONU para o direito à alimentação.
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