quinta-feira, 26 de março de 2020

Lições do vírus II



Nelson M. Mendes

O coronavírus está ensinando ao mundo muitas coisas. Está ensinando que “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, como canta Gilberto Gil em “Tempo Rei”; que a ciência não dá ao homem um super-poder ilimitado; que o mundo não pode continuar sendo o parque de diversões do Capitalismo.

Esse é um nervo sensível: o sistema vigente há séculos, o Capitalismo. Ele já se vestiu de Liberalismo. Depois que o Liberalismo, um feixe de falácias que raramente funcionou, implodiu com a crise de 1929, Hayek, Friedman, Mises et caterva se reuniram em Paris e confeccionaram a nova indumentária: o Neoliberalismo.

Um dos nomes cogitados para a doutrina de proveta foi “Liberalismo interventor”: o Crash da Bolsa, em 29, deixara claro que aquela história de “mão invisível do mercado” não funcionava. Era preciso que o Estado (sim, o Estado) controlasse a ganância irresponsável (eventualmente suicida) dos especuladores.

Ia tudo mais ou menos até o começo dos anos 80. Até Reagan e Thatcher. Começou a haver um movimento para tornar o Neoliberalismo mais liberal. Regras demais atrapalhavam o crescimento, a produção de riqueza. “No regulations” passou a ser o mote. O Estado – aquele mesmo Estado que salvou o Capitalismo tantas vezes – só atrapalhava.

“Greed is good” (a cobiça é boa). Leonardo Boff, em artigo recente, lembra que esse é o lema de Wall Street; e eu lembro que, nos manuais do Neoliberalismo, os operadores econômicos são estimulados a desenvolver o “animal spirit” (espírito animal). Ou seja: o Neoliberalismo, sobretudo depois de Reagan e Thatcher, é o uniforme que o Capitalismo usa para ir à guerra.

É isso o que se espera do século 21, da “Era de Aquário”?

E o que tem tudo isso tem a ver com o Brasil?

Bem, a chamada “globalização” é um fenômeno antigo; mas a palavra virou até moda a partir dos anos 80 do século 20. Era preciso que não houvesse barreiras ao Neoliberalismo liberalizado. “Greed is good.” Era preciso permitir que o Capital Transnacional superasse as fronteiras nacionais.

O fantoche encarregado de abrir as portas para o Capital Transnacional, no Brasil, foi Fernando Collor. Assim como o atual chama-se Jair Bolsonaro.

Décadas de lavagem cerebral haviam preparado o brasileiro para rejeitar qualquer coisa vagamente parecida com Socialismo e acolher entusiasticamente todos aqueles temas: livre-mercado,  globalização, privatização, Estado mínimo.  Tudo aquilo era “modernidade”; o resto era atraso.

O sociólogo “comunista” seria o encarregado de manter entre nós a farsa neoliberal a gosto do Capital Transnacional. Os governos petistas não mudaram a direção do ônibus; mas deram um pouco mais de conforto aos passageiros mais pobres, alguns dos quais viajavam pendurados do lado de fora. Foi o suficiente para que a primeira classe providenciasse a demissão da motorista.

Depois que o motorista substituto, fantoche por excelência, tornou pior a situação de todos e apontou o ônibus para o abismo no breve período em que o dirigiu, os passageiros foram convocados a cumprir o rito já previsto de escolher o novo motorista.

A lavagem cerebral funciona. No Brasil, como em todo o mundo.

Com a queda do Muro de Berlim, no final da década de 80 do século 20, caiu talvez a última barreira à expansão do Neoliberalismo liberalizado. A riqueza até aumentou, mas concentrou-se em cada vez menos mãos. Multidões empobreceram, mesmo nos países ricos, centrais. Mas todos tinham sido devidamente doutrinados a acreditar nas virtudes do Neoliberalismo. Quando a vida ficou muito ruim, o que fizeram? Passaram a clamar por mudanças... na direção do Neoliberalismo.

Aqui no Brasil, onde muitos nunca leram um livro e se informam pelo Jornal Nacional, a adesão às falácias neoliberais foi imediata e profunda. Mesmo pessoas de certo nível cultural, mas com altas doses daquele egoísmo basal que, juntamente com a ignorância, é um dos componentes da personalidade do pequeno-fascista, adotaram sem restrições o discurso neoliberal. (Lembrando – caso alguém esteja estranhando alguma coisa – que o Neoliberalismo foi pela primeira vez ensaiado na Itália de Mussolini.)

É o que explica a eleição do Boçal Fascista. (Em maiúsculas, porque assim são escritos nomes e sobrenomes.)

O Capital Transnacional teria preferido um boneco mais bonitinho e de melhores modos. Mas não era momento para escolher muito. Havia o perigo de que um professor de Ciência Política e doutor em Filosofia, representando o abominável Partido dos Trabalhadores, ganhasse a eleição!

A lavagem cerebral funciona. E funcionou a pleno vapor para que o fantoche fascista (não há contradição entre os termos!) fosse eleito. (Claro que uma fraude judicial fora usada para neutralizar o candidato original pelo PT, favorito absoluto nas pesquisas.) As pessoas tinham sido ensinadas a odiar “a esquerda” e a amar o Neoliberalismo. Então, já “imbecilizadas” (como gostam de dizer Milton Temer e Jessé Souza), acolheram passivamente todas as absurdas, sujas e ridículas fake news engendradas contra o PT; e começaram a tratar por “mito” o candidato sabidamente racista, misógino, homofóbico, belicoso... e burro.

Mas eis que, com pouco mais de um ano de um governo em que o filhote de Hitler tem tentado cumprir sua missão de destruir o país em favor do Capital, surge o Coronavírus.

Por essa a burricada (coletivo de burro) não esperava. O Capital não esperava. O boneco, de tão burro e tosco, já não vinha desempenhando corretamente seu papel. A vida estava ruim para o trabalhador; mas nem banqueiros e megaempresários estavam muito satisfeitos com os resultados do trabalho sujo que haviam encomendado ao Boçal Fascista. E agora um vírus para atrapalhar os negócios!

Boçal, ministros, filhos e empresários zurram que não se pode parar a economia por causa de “uma gripezinha”. Parte da burricada faz eco. Mas apenas a parte mais comprometida moral e intelectualmente. A parte menos degenerada resolve ouvir os especialistas, a Organização Mundial de Saúde, os intelectuais não comprometidos com o esforço inútil para dar sobrevida a um sistema que – talvez – venha a ser abatido por um vírus. E adere ao “isolamento social” – única maneira realmente eficaz de evitar o contágio.

O que nem burricada, nem Boçal nem Capital Transnacional imaginam é que é possível uma civilização sem Capitalismo. E desejável!

Krishnamurti afirma que a solução dos problemas humanos requer inteligência. Mas inteligência, segundo ele, significa rejeitar guerras, preconceitos, radicalismos nacionalistas... Ou seja: assumir que “greed is bad”, abandonar o “espírito animal”, deixar-se “cair para cima”[1], de modo a encontrar a empatia, a solidariedade, o amor.

Não é isso a Era de Aquário?



[1] De volta
Cair para cima / deixar-se amorosamente / levar ao céu / onde moram os sonhos /
e a sabedoria. / Mergulhar os pés / no cálido oceano / que tudo permeia /
e de que somos todos parte. / Fundir-se na luz / que a tudo estrutura /
princípio e fim de tudo. / Eis o que significa / retornar / à morada do coração.

NMM



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