Nelson
M. Mendes
Nos
tempos medievais, as massas eram mantidas inertes sob o peso de ilusões
articuladas em termos de dogmáticas explicações teológicas. Ainda hoje o método
funciona para muita gente. Resgatou-se até a ideia de Terra plana! Mas há os modernos,
os espertos, os antenados: esses exigem explicações científicas.
É para eles, mais do que para os investidores capitalistas, que escrevem os
comentaristas econômicos. Seus textos têm um fedor artificialmente melífluo;
porque são feitos de sofismas e eufemismos.
Numa
pesquisa na Internet para ver o que estão os economistas pensando sobre a crise
deflagrada pelo Coronavírus, encontro um artigo de um certo Omar Hassan.
O
economista Omar Hassan, sustentando que a crise econômica será muito mais séria
que a sanitária, afirma que é hora de os economistas substituírem os médicos. Mas já
houve quem, com muito mais razão, dissesse que a economia não pode ficar apenas
nas mãos dos economistas...
Porque,
em primeiro lugar, muitos economistas mentem; o trabalho deles é mentir em
favor da perpetuação do sistema. Sempre foi assim: mentiram às vésperas do Crash
da Bolsa de 1929, mentiram sobre a aproximação do furacão financeiro de
2007-08, mentiram em muitos outros momentos críticos e mentem diariamente no
rádio, na TV, nos jornais, nos portais da Internet. O economista Paul Krugman,
Prêmio Nobel e honesto, se refere a seus colegas midiáticos como “mercenários
da plutocracia”.
O
mesmo Krugman escreveu no New York Times, em artigo reproduzido pelo Jornal do
Brasil de 3 de fevereiro de 2009: Quando leio comentários recentes sobre
política econômica [...] sinto como se [...] Alan Greenspan ainda regesse a
orquestra, e os banqueiros ainda fossem os heróis do Capitalismo. [...] uma
reportagem do The Washington Post [...] diz que [...] “consideram que os
governos são maus gerentes de banco”, em oposição, supostamente, aos gênios do
setor privado que supervisionaram e perderam mais de US$ 1 trilhão no espaço de
poucos anos.
A
propósito: depois da crise de 2008, até Greenspan passou a defender a
nacionalização de bancos nos EUA.
Em
segundo lugar, como afirmava Celso Furtado (outro economista honesto), a
Economia não é uma ciência exata. Então os economistas podem errar “sem
querer”, como dizem as crianças; errar como erram os meteorologistas – cada vez
menos, felizmente.
Hassan
segue fazendo análises sobre economia e política, sobre os conflitos no Oriente
Médio, sobre a guerra comercial entre EUA e China, e sintetiza: “Mas isso tem a
ver com muito mais coisas do que coronavírus, os preços do petróleo ou até a
economia global. Trata-se do equilíbrio de poder entre o Oriente e o Ocidente.”
Eis
aí um homem com um discurso velho – um discurso feito de sombras de ideias
mortas. Mas não está sozinho.
Raghhuram
Rajan, ex-economista-chefe do FMI (Fundo Monetário Internacional), e que foi um
dos que previram a crise de 2008, até acerta no diagnóstico da causa da crise
atual: o Capitalismo “parou de prover as massas”. E aponta o problema em si, a
sua grande preocupação: o Capitalismo está “sob uma séria ameaça”.
Ele
afirma que os governos precisam adotar políticas econômicas no sentido de
diminuir a desigualdade. O detalhe interessante é que o ex-funcionário de uma
instituição voltada para a perpetuação do sistema capitalista em momento algum
cogita de deixar agir a “mão invisível do mercado”, cuja inoperância fora
reconhecida quando da confecção da doutrina neoliberal...
Rajan,
que também foi diretor do Banco Central da Índia, parece reconhecer, afinal,
que o povo não é “apenas um detalhe”; mas sua atitude lembra a de todos aqueles
que, diante do advento do “comunismo” na URSS, acharam prudente amenizar o
Capitalismo com a adoção de algumas ideias favoráveis ao povo, ao trabalhador. Disse
ele: “O Capitalismo não conseguiu atender às necessidades de muitos; e, quando
isso acontece, há muitas revoltas.”
Como
fiel soldado do Capital, descarta a alternativa de parentesco socialista,
afirmando que, “quando todos os meios de produção são socializados”, o
resultado são regimes autoritários. (É
claro que jamais houve ditaduras sob o Capitalismo!) E, mostrando sempre que
seu ideário é feito de sombras ou cadáveres, afirma, misturando alhos com
bugalhos, que “a democracia de livre-mercado era um sistema equilibrado, mas
precisamos recuperar esse equilíbrio novamente”.
Peter
Schift, que a página da Valor Investe apresenta como “empresário e comentarista
financeiro”, é outro que anteviu 2008 e que está preocupadíssimo com os efeitos
do coronavírus no mercado de ações, no sistema capitalista de modo geral:
“Vamos ter um colapso no mercado, e a crise financeira que está chegando será
muito pior do que em 2008.” E, assim como seu colega indiano e muitos outros,
propõe medidas técnicas para controlar a situação e evitar o inevitável.
Nouriel
Roubini, mais um economista que profetizou 2008 (várias instituições e
especialistas o fizeram, inclusive no Brasil), também está preocupado com o
vírus; e, depois de criticar desdenhosamente a lentidão dos governos em tomar
as necessárias atitudes, pontifica: “A verdade é que a Europa precisaria de
estímulo fiscal mesmo sem a crise do coronavirus.”
O
implícito (como gostam de dizer os professores de Português) do discurso
de Roubini é aquele velho dogma do fundamentalismo liberal: o Estado é
incompetente, só atrapalha.
Esse
é um dos dogmas que já sofreu nocautes desmoralizantes, como em 1929 e 2008, e
que provavelmente morrerá de Covid-19.
E
isso não é ruim.
Como
reconhecem até mesmo os diligentes defensores do sistema, o Capitalismo,
sobretudo com sua indumentária de neoliberalismo liberalizado
pós-Reagan e Thatcher, só fez aumentar o desemprego e a concentração de
riqueza. Hoje, segundo a Oxfam, as 36 pessoas mais ricas do mundo têm riqueza
equivalente à renda das 4,7 bilhões mais pobres. (Que o leitor pesquise para
confirmar o dado. Eu mesmo fiz isso, tão estarrecido fiquei.) E, como disse
Raghhuram Rajan, “quando isso acontece, há muitas revoltas”. Tudo o que o
sistema não quer é uma nova Revolução Francesa; um novo 1917.
Em
artigo do começo de janeiro de 2020 (antes do coronavírus), Miatta Fahnbulleh,
apresentada pela página do Instituto Humanitas Unisinos como “chefe executiva
da New Economics Foundation”, registra que, no rastro da crise de 2008, a
desigualdade de renda só aumentou. Até porque – lembro eu agora – os Estados
gastaram quantias incalculáveis de dinheiro público para salvar o ‘mercado’
(bancos e especuladores).
Mais:
o padrão de vida de milhões de pessoas parou de subir e está até caindo. Isso
leva ao questionamento do sistema e até ao flerte com demonizados ideais socialistas.
Fahnbulle
alerta: “Um mero revival da agenda social-democrata da era pós-guerra, porém,
não seria suficiente.” Por dois motivos, segundo ela: porque não convém
reeditar regime baseado na “autoridade central e na propriedade estatal”; e
porque aquele modelo não estava preparado para um novo desafio, que é “a ameaça
da mudança climática e catástrofe ambiental”. Sintetiza: “O Neoliberalismo não
está acabando com as pessoas: ele acaba com a Terra.” Essa é uma percepção de
muitos sensatos pensadores. O ambientalista Lutzenberger dizia que não se pode
pensar em crescimento infinito num planeta finito. E crescimento infinito é o
sonho capitalista por excelência.
A
articulista propõe: “O novo modelo empoderaria pessoas e daria um forte suporte
à economia, estabelecendo bens públicos comuns e infraestrutura essencial, e
incentivando a propriedade cooperativa e conjunta de empresas privadas
administradas localmente. Esse chamado para um ativo, mas descentralizado
Estado, deveria devolver o poder a nível local para as comunidades e habilitar
as pessoas para agirem coletivamente para melhorarem suas vidas.”
Posso
estar enganado, mas essa proposta se aproxima muito do sonho de Marx, cujo
sistema previa a própria inexistência de Estado (donde podemos concluir que o
stalinismo foi algo completamente diferente do Comunismo). E lembra também
muito o modelo das comunidades no Cristianismo primitivo, de acordo com
Leonardo Boff. Jean Ziegler, segundo o
qual a própria Democracia Representativa foi mortalmente atropelada pelo
Neoliberalismo, acredita que a solução terá de vir da sociedade civil, dos
coletivos, dos movimentos alternativos.
As
cabeças que pensam com liberdade sabem que é preciso construir uma nova sociedade,
uma nova civilização. O Coronavírus só veio tornar essa necessidade mais
evidente e urgente.
Nem
sei se podemos dizer que o Capitalismo foi bom enquanto durou.
- - -
Mas,
enquanto isso, as pessoas precisam viver. Em “isolamento social”.
Ao
contrário do que apregoa um dos presidentes mais imbecis da história mundial, a
economia pode parar, sim. Deve. Até porque, nesses novos tempos, muitas
atividades podem operar em modo virtual: trabalho à distância,
estudo à distância... Não existem até incontáveis adeptos do sexo à
distância?... A economia é feita de relações em cadeia, ou relações
circulares. A rigor, só duas coisas o homem não pode parar de fazer: comer
e respirar. O suprimento de ar é permanente e gratuito; quanto ao alimento, o
homem aprendeu a fazer estoques desde a pré-história... A questão (crítica para
o mundo acorrentado a velhos paradigmas) da remuneração do trabalhador, do
pagamento de contas, etc., será resolvida pela realidade das coisas traduzida
em bom senso: somente os trabalhos essenciais serão realizados; e, se o
empresário não tiver recursos (muitos têm de sobra!) para remunerar o
trabalhador, este, por outro lado, poderá adiar indefinidamente o pagamento de
suas dívidas. O empresário receberá o mesmo benefício. Em suma, a moratória
valeria para todos. A roda da economia giraria apenas mais devagar, lubrificada
pela inteligência solidária.
O
problema é que muitos estão acostumados ao “contato social”: no trabalho, no
clube, na praia, na igreja. Sobretudo estão viciados em fazer alguma coisa.
Poucos sabem ficar parados, esperar. E muitos não abrem mão do famoso
“direito de ir e vir”.
Portanto,
o isolamento contraria três necessidades (ou vícios): o convívio, a ação e o deslocamento
geográfico.
Entretanto...
Muitos
filósofos e escritores – Shakespeare, por exemplo – se pronunciaram sobre a
conveniênia de que o homem guarde momentos de quietude. Ele mesmo declarou que
há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia...
(Considero essa declaração o maior atestado de reconhecimento, por parte de um
ocidental, das limitações do pensamento.) Mas – Homem, teu nome é inquietude!
Não
há nada de errado com a ação. Há na própria Índia, associada à imagem de
ascetas solitários e permanentemente imóveis, dedicados à meditação, um ramo de
yoga que se baseia no reto-agir: Karma Yoga.
Não
há nada errado com a convivência, obviamente. (Exceto em tempos de pandemia!) Mesmo
a convivência frívola – no bar, na praia, no estádio, no culto religioso
conduzido por um charlatão – pode trazer ensinamentos, além de prazer.
Tampouco
há algo de errado com o impulso pelo deslocamento, a necessidade de viajar. Mas
esse impulso, de fato – mesmo nas mentes mais superficiais ou céticas – , é a expressão
mundana do sagrado e secreto desejo que todos temos por encontrar a
Verdade, a Fonte; Deus.
O
escritor espiritualista (não confundir com “espírita”!) Paul Brunton conta a
história de um homem que, tendo sido feito prisioneiro, declararia depois: “Aprendi
mais num canto escuro da torre que viajando por toda a Europa.”
Portanto:
aproveitemos a oportunidade para refletir sobre todos aqueles valores e
certezas que nos foram inculcados desde a meninice. Empresários, banqueiros,
trabalhadores, economistas, religiosos, intelectuais de modo geral: ninguém
sabe o que está acontecendo e o que vai acontecer. É natural. O sistema, que só
não morreu em outras ocasiões porque recebeu tratamento intensivo proporcionado
pelo Estado, e que já vinha mais uma vez claudicando, pode estar entrando em
coma irreversível.
Não
há nada a lamentar. O Capitalismo foi feito para o Homem, e não o Homem para o
Capitalismo.
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