quinta-feira, 2 de abril de 2020

Lições do vírus III



Nelson M. Mendes

Nos tempos medievais, as massas eram mantidas inertes sob o peso de ilusões articuladas em termos de dogmáticas explicações teológicas. Ainda hoje o método funciona para muita gente. Resgatou-se até a ideia de Terra plana! Mas há os modernos, os espertos, os antenados: esses exigem explicações científicas. É para eles, mais do que para os investidores capitalistas, que escrevem os comentaristas econômicos. Seus textos têm um fedor artificialmente melífluo; porque são feitos de sofismas e eufemismos.
Numa pesquisa na Internet para ver o que estão os economistas pensando sobre a crise deflagrada pelo Coronavírus, encontro um artigo de um certo Omar Hassan.
O economista Omar Hassan, sustentando que a crise econômica será muito mais séria que a sanitária, afirma que é hora de os  economistas substituírem os médicos. Mas já houve quem, com muito mais razão, dissesse que a economia não pode ficar apenas nas mãos dos economistas...
Porque, em primeiro lugar, muitos economistas mentem; o trabalho deles é mentir em favor da perpetuação do sistema. Sempre foi assim: mentiram às vésperas do Crash da Bolsa de 1929, mentiram sobre a aproximação do furacão financeiro de 2007-08, mentiram em muitos outros momentos críticos e mentem diariamente no rádio, na TV, nos jornais, nos portais da Internet. O economista Paul Krugman, Prêmio Nobel e honesto, se refere a seus colegas midiáticos como “mercenários da plutocracia”.
O mesmo Krugman escreveu no New York Times, em artigo reproduzido pelo Jornal do Brasil de 3 de fevereiro de 2009: Quando leio comentários recentes sobre política econômica [...] sinto como se [...] Alan Greenspan ainda regesse a orquestra, e os banqueiros ainda fossem os heróis do Capitalismo. [...] uma reportagem do The Washington Post [...] diz que [...] “consideram que os governos são maus gerentes de banco”, em oposição, supostamente, aos gênios do setor privado que supervisionaram e perderam mais de US$ 1 trilhão no espaço de poucos anos.
A propósito: depois da crise de 2008, até Greenspan passou a defender a nacionalização de bancos nos EUA.
Em segundo lugar, como afirmava Celso Furtado (outro economista honesto), a Economia não é uma ciência exata. Então os economistas podem errar “sem querer”, como dizem as crianças; errar como erram os meteorologistas – cada vez menos, felizmente.
Hassan segue fazendo análises sobre economia e política, sobre os conflitos no Oriente Médio, sobre a guerra comercial entre EUA e China, e sintetiza: “Mas isso tem a ver com muito mais coisas do que coronavírus, os preços do petróleo ou até a economia global. Trata-se do equilíbrio de poder entre o Oriente e o Ocidente.”
Eis aí um homem com um discurso velho – um discurso feito de sombras de ideias mortas. Mas não está sozinho.
Raghhuram Rajan, ex-economista-chefe do FMI (Fundo Monetário Internacional), e que foi um dos que previram a crise de 2008, até acerta no diagnóstico da causa da crise atual: o Capitalismo “parou de prover as massas”. E aponta o problema em si, a sua grande preocupação: o Capitalismo está “sob uma séria ameaça”.
Ele afirma que os governos precisam adotar políticas econômicas no sentido de diminuir a desigualdade. O detalhe interessante é que o ex-funcionário de uma instituição voltada para a perpetuação do sistema capitalista em momento algum cogita de deixar agir a “mão invisível do mercado”, cuja inoperância fora reconhecida quando da confecção da doutrina neoliberal...
Rajan, que também foi diretor do Banco Central da Índia, parece reconhecer, afinal, que o povo não é “apenas um detalhe”; mas sua atitude lembra a de todos aqueles que, diante do advento do “comunismo” na URSS, acharam prudente amenizar o Capitalismo com a adoção de algumas ideias favoráveis ao povo, ao trabalhador. Disse ele: “O Capitalismo não conseguiu atender às necessidades de muitos; e, quando isso acontece, há muitas revoltas.”
Como fiel soldado do Capital, descarta a alternativa de parentesco socialista, afirmando que, “quando todos os meios de produção são socializados”, o resultado são regimes autoritários.  (É claro que jamais houve ditaduras sob o Capitalismo!) E, mostrando sempre que seu ideário é feito de sombras ou cadáveres, afirma, misturando alhos com bugalhos, que “a democracia de livre-mercado era um sistema equilibrado, mas precisamos recuperar esse equilíbrio novamente”.
Peter Schift, que a página da Valor Investe apresenta como “empresário e comentarista financeiro”, é outro que anteviu 2008 e que está preocupadíssimo com os efeitos do coronavírus no mercado de ações, no sistema capitalista de modo geral: “Vamos ter um colapso no mercado, e a crise financeira que está chegando será muito pior do que em 2008.” E, assim como seu colega indiano e muitos outros, propõe medidas técnicas para controlar a situação e evitar o inevitável.
Nouriel Roubini, mais um economista que profetizou 2008 (várias instituições e especialistas o fizeram, inclusive no Brasil), também está preocupado com o vírus; e, depois de criticar desdenhosamente a lentidão dos governos em tomar as necessárias atitudes, pontifica: “A verdade é que a Europa precisaria de estímulo fiscal mesmo sem a crise do coronavirus.”
O implícito (como gostam de dizer os professores de Português) do discurso de Roubini é aquele velho dogma do fundamentalismo liberal: o Estado é incompetente, só atrapalha.
Esse é um dos dogmas que já sofreu nocautes desmoralizantes, como em 1929 e 2008, e que provavelmente morrerá de Covid-19.
E isso não é ruim.
Como reconhecem até mesmo os diligentes defensores do sistema, o Capitalismo, sobretudo com sua indumentária de neoliberalismo liberalizado pós-Reagan e Thatcher, só fez aumentar o desemprego e a concentração de riqueza. Hoje, segundo a Oxfam, as 36 pessoas mais ricas do mundo têm riqueza equivalente à renda das 4,7 bilhões mais pobres. (Que o leitor pesquise para confirmar o dado. Eu mesmo fiz isso, tão estarrecido fiquei.) E, como disse Raghhuram Rajan, “quando isso acontece, há muitas revoltas”. Tudo o que o sistema não quer é uma nova Revolução Francesa; um novo 1917.
Em artigo do começo de janeiro de 2020 (antes do coronavírus), Miatta Fahnbulleh, apresentada pela página do Instituto Humanitas Unisinos como “chefe executiva da New Economics Foundation”, registra que, no rastro da crise de 2008, a desigualdade de renda só aumentou. Até porque – lembro eu agora – os Estados gastaram quantias incalculáveis de dinheiro público para salvar o ‘mercado’ (bancos e especuladores).
Mais: o padrão de vida de milhões de pessoas parou de subir e está até caindo. Isso leva ao questionamento do sistema e até ao flerte com demonizados ideais socialistas.
Fahnbulle alerta: “Um mero revival da agenda social-democrata da era pós-guerra, porém, não seria suficiente.” Por dois motivos, segundo ela: porque não convém reeditar regime baseado na “autoridade central e na propriedade estatal”; e porque aquele modelo não estava preparado para um novo desafio, que é “a ameaça da mudança climática e catástrofe ambiental”. Sintetiza: “O Neoliberalismo não está acabando com as pessoas: ele acaba com a Terra.” Essa é uma percepção de muitos sensatos pensadores. O ambientalista Lutzenberger dizia que não se pode pensar em crescimento infinito num planeta finito. E crescimento infinito é o sonho capitalista por excelência.
A articulista propõe: “O novo modelo empoderaria pessoas e daria um forte suporte à economia, estabelecendo bens públicos comuns e infraestrutura essencial, e incentivando a propriedade cooperativa e conjunta de empresas privadas administradas localmente. Esse chamado para um ativo, mas descentralizado Estado, deveria devolver o poder a nível local para as comunidades e habilitar as pessoas para agirem coletivamente para melhorarem suas vidas.”
Posso estar enganado, mas essa proposta se aproxima muito do sonho de Marx, cujo sistema previa a própria inexistência de Estado (donde podemos concluir que o stalinismo foi algo completamente diferente do Comunismo). E lembra também muito o modelo das comunidades no Cristianismo primitivo, de acordo com Leonardo Boff.  Jean Ziegler, segundo o qual a própria Democracia Representativa foi mortalmente atropelada pelo Neoliberalismo, acredita que a solução terá de vir da sociedade civil, dos coletivos, dos movimentos alternativos.
As cabeças que pensam com liberdade sabem que é preciso construir uma nova sociedade, uma nova civilização. O Coronavírus só veio tornar essa necessidade mais evidente e urgente.
Nem sei se podemos dizer que o Capitalismo foi bom enquanto durou.
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Mas, enquanto isso, as pessoas precisam viver. Em “isolamento social”.
Ao contrário do que apregoa um dos presidentes mais imbecis da história mundial, a economia pode parar, sim. Deve. Até porque, nesses novos tempos, muitas atividades podem operar em modo virtual: trabalho à distância, estudo à distância... Não existem até incontáveis adeptos do sexo à distância?... A economia é feita de relações em cadeia, ou relações circulares. A rigor, só duas coisas o homem não pode parar de fazer: comer e respirar. O suprimento de ar é permanente e gratuito; quanto ao alimento, o homem aprendeu a fazer estoques desde a pré-história... A questão (crítica para o mundo acorrentado a velhos paradigmas) da remuneração do trabalhador, do pagamento de contas, etc., será resolvida pela realidade das coisas traduzida em bom senso: somente os trabalhos essenciais serão realizados; e, se o empresário não tiver recursos (muitos têm de sobra!) para remunerar o trabalhador, este, por outro lado, poderá adiar indefinidamente o pagamento de suas dívidas. O empresário receberá o mesmo benefício. Em suma, a moratória valeria para todos. A roda da economia giraria apenas mais devagar, lubrificada pela inteligência solidária.
O problema é que muitos estão acostumados ao “contato social”: no trabalho, no clube, na praia, na igreja. Sobretudo estão viciados em fazer alguma coisa. Poucos sabem ficar parados, esperar. E muitos não abrem mão do famoso “direito de ir e vir”.
Portanto, o isolamento contraria três necessidades (ou vícios): o convívio, a ação e o deslocamento geográfico.
Entretanto...
Muitos filósofos e escritores – Shakespeare, por exemplo – se pronunciaram sobre a conveniênia de que o homem guarde momentos de quietude. Ele mesmo declarou que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia... (Considero essa declaração o maior atestado de reconhecimento, por parte de um ocidental, das limitações do pensamento.) Mas – Homem, teu nome é inquietude!
Não há nada de errado com a ação. Há na própria Índia, associada à imagem de ascetas solitários e permanentemente imóveis, dedicados à meditação, um ramo de yoga que se baseia no reto-agir: Karma Yoga.
Não há nada errado com a convivência, obviamente. (Exceto em tempos de pandemia!) Mesmo a convivência frívola – no bar, na praia, no estádio, no culto religioso conduzido por um charlatão – pode trazer ensinamentos, além de prazer.
Tampouco há algo de errado com o impulso pelo deslocamento, a necessidade de viajar. Mas esse impulso, de fato – mesmo nas mentes mais superficiais ou céticas – , é a expressão mundana do sagrado e secreto desejo que todos temos por encontrar a Verdade, a Fonte; Deus.
O escritor espiritualista (não confundir com “espírita”!) Paul Brunton conta a história de um homem que, tendo sido feito prisioneiro, declararia depois: “Aprendi mais num canto escuro da torre que viajando por toda a Europa.”
Portanto: aproveitemos a oportunidade para refletir sobre todos aqueles valores e certezas que nos foram inculcados desde a meninice. Empresários, banqueiros, trabalhadores, economistas, religiosos, intelectuais de modo geral: ninguém sabe o que está acontecendo e o que vai acontecer. É natural. O sistema, que só não morreu em outras ocasiões porque recebeu tratamento intensivo proporcionado pelo Estado, e que já vinha mais uma vez claudicando, pode estar entrando em coma irreversível.
Não há nada a lamentar. O Capitalismo foi feito para o Homem, e não o Homem para o Capitalismo.

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