segunda-feira, 6 de abril de 2020

Quem sabe faz a hora - M. Chauí


Quem sabe faz a hora

Por Marilena Chaui*

Considerações sobre o Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro”.
“Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer” (Geraldo Vandré)
Texto original:

Texto editado / NMM:

O Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro” é uma convocação para agirmos no momento oportuno.
Seu acerto é duplo. Em primeiro lugar, por propor agir como uma frente nacional contra a incitação ao homicídio feita por Bolsonaro ao se opor ao isolamento social, e sua demora em tomar providências mínimas para assegurar a vida de milhões de brasileiros.
Em segundo lugar, o Manifesto acerta ao propor a renúncia de Bolsonaro e não seu impeachment, pois este acrescentaria à crise atual mais uma crise num momento em que a sociedade brasileira clama por clareza de objetivos e de ações.
Para não esquecer
Durante os últimos 35 anos, vimos surgir e agir uma personagem batizada de “O Mercado”, dotado de onisciência e onipotência. Onisciência porque sabe sempre e os rumos corretos e necessários do Capitalismo. Onipotência porque possui um poder incontestável de decisão sobre as ações dos Estados e das sociedades e sobre os corações e as mentes dos indivíduos. “O Mercado”, como sabemos, é o apelido do Capitalismo neoliberal.
Ora, nas últimas semanas com a expansão do coronavírus, a palavra “mercado” desapareceu como por um golpe de mágica. Jornalistas, políticos, governantes e cidadãos passaram a empregar duas palavras que haviam sido banidas do vocabulário: economia e Estado. Como conseqüência, de repente, não mais que de repente, o vocabulário da Socialdemocracia – controle estatal da economia e políticas sociais – é retomado.
Exemplifiquemos com o caso do Brasil.
Sem a menor vergonha na cara, agora é feito o elogio [dos programas sociais, do SUS]. Por sua vez, o “empresário de si mesmo”, os trabalhadores informais, os desempregados e os moradores de favelas e de rua passaram a receber uma nova designação: “vulneráveis”, como se sua vulnerabilidade tivesse surgido por conta da Covid-19 e não da aliança entre “O Mercado” e o governo neoliberal.
É espantoso o uso da palavra “solidariedade” por aqueles que, até um mês atrás, se empenhavam do elogio irrestrito à competição e à “meritocracia”.  Com igual descaramento, o governo federal exige que os cientistas das universidades públicas e dos centros públicos de pesquisa tragam rapidamente soluções para aquilo que deixou de ser “histeria”, sem que se diga que não houve investimento algum nas pesquisas públicas. Exemplos não faltam se lembrarmos tudo o que foi dito e feito desde o golpe contra Dilma e a prisão de Lula.
É preciso resgatar e unificar por meio dos partidos de oposição as lutas e manifestações de movimentos sociais e populares que, desde o governo Temer, se espalharam pelo país, mas eram sempre fragmentadas, esporádicas e sobretudo criminalizadas. Os chamados “vulneráveis”, a despeito da ideologia neoliberal sobre a “nova classe média brasileira”, constituem, na verdade, o que chamo de “nova classe trabalhadora brasileira”, fragmentada e isolada, desprovida de uma visão social e política que lhe dê um lugar na luta democrática e socialista. Esse resgate de lutas e essa unificação de classe poderão, agora, encontrar eco na sociedade brasileira em sua rejeição a Bolsonaro.
Para nos ajudar a compreender
O artigo de Harvey “Política anticapitalista na época do Covid19”, é iluminador sobre a situação planetária do Capitalismo e da crise do Neoliberalismo, bem como sobre o lugar da Covid-19 na luta de classes. Harvey traça com firmeza o panorama planetário do Neoliberalismo vitorioso, das lutas contra ele e dos efeitos da Covid-19 sobre ele, assinalando a ironia histórica do surgimento de uma perspectiva socialista no centro do mundo neoliberal.
O artigo de Paulo Capel Narvai, “A estratégia da pinça”, salienta que o que está em jogo não é a pandemia, mas as eleições de 2022. É particularmente significativa sua análise sobre a luta do grupo bolsonarista contra os governadores, que serão responsabilizados pelo péssimo desempenho da economia, e sobretudo sua análise do papel de Mandetta nesse jogo, isto é, do discurso técnico aparentemente oposto ao discurso psicótico de Bolsonaro.
Uma proposta para discussão
Algumas pesquisas indicam que, no Brasil, os mais penalizados pelos efeitos da Covid-19 são exatamente os eleitores dos partidos de oposição, aqueles de cujas organizações e lutas nasceram os projetos e programas dos partidos de esquerda, e também aqueles, destroçados pela economia e política neoliberais, que hoje buscam a criação e garantia de direitos. Os partidos de oposição (esquerda e centro) devem a eles sua presença na política brasileira e por isso faço aqui uma proposta.
O Manifesto apresenta uma lista de ações necessárias a serem exigidas do governo federal, mas essa frente nacional também pode agir diretamente no atendimento emergencial dos que foram os mais atingidos pela destruição dos direitos sociais, pois são os que mais dependem dos serviços públicos e das garantias trabalhistas. Proponho dirigir os fundos partidários para ações emergenciais, de maneira a deixar claro que o Manifesto é político e social. Isso configuraria uma espécie de governo paralelo? Que assim seja.
*Marilena Chaui é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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