segunda-feira, 25 de maio de 2020

Sobre o racismo de Monteiro Lobato


Nelson M. Mendes

Eu li tudo de Monteiro Lobato. E, quando criança, nunca me senti contaminado por qualquer mínimo teor de racismo que pudesse haver em seus livros. Ele só nos fazia sentir carinho por tia Anastácia, mesmo dizendo que ela, fugindo de alguma coisa, subira numa árvore com a agilidade de uma "macaca de carvão". E aprendi MUITA coisa com Monteiro Lobato: muita coisa de história, arte, valores, filosofia – e  até de gramática...

Quando conheci seus livros 'para adultos', minha admiração não diminuiu. Ele nunca foi da Academia Brasileira de Letras, mas meia-dúzia de incensados acadêmicos amontoados uns sobre os outros não lhe fariam sombra...

De vez em quando esse assunto vem à baila: a necessidade de banimento ou ‘correção’ dos escritores e artistas ‘politicamente incorretos’. Mark Twain já foi ameaçado, Machado de Assis já foi ameaçado!  Preciso dizer que esse ‘revisionimo’ nos faz pensar nos coptas (cristãos egípcios), que vandalizaram monumentos do tempo dos faraós, por considerá-los heréticos? Ou no regime talibã, que destruiu duas gigantescas estátuas de Buda no Afeganistão, pelo mesmo motivo? Ou anda nos fundamentalistas evangélicos, que atacam imagens de Santa Maria?

Tem um provérbio que diz assim: “Cada roca com seu fuso, cada povo com seu uso.” Nós não podemos avaliar produções artísticas e literárias antigas a partir de nossos valores e crenças. Tudo isso é tão mutável! Na antiguidade clássica era considerado natural e desejável que um homem maduro tivesse um rapazinho como – digamos – brinquedo sexual.

Nós NÃO estamos no ápice de um processo civilizatório que começou nas cavernas e que ainda há de nos levar às estrelas; já houve vários ciclos, várias ascensões e quedas; e incontáveis recomeços. Nós NÃO estamos, portanto, apetrechados de saberes e instrumentos especiais para que possamos, quais deuses do Olimpo do século 21, decretar de forma incontestável o que é belo, bom, correto, perfeito.

Aparentemente, Monteiro Lobato era, sim racista; flertava com a eugenia. Naquela época, isso era muito comum, não era? O mundo era assim. Consigo imaginar que Lobato, obcecado pelo progresso social, pela evolução em todos os sentidos, se inclinasse a acreditar que ela passaria também pelo ‘aprimoramento’ racial...  Vamos levar isso a extremos: alguém negaria que pessoas bem alimentadas e saudáveis sejam mais inteligentes e produtivas? Uma das razões do atraso cultural e econômico do Brasil é que metade da população tem deficiências cognitivas resultantes da desnutição na primeira infância...

Claro: o perigo é que logo ali na esquina está Hitler, com suas ideias sobre “raça ariana” e quimeras tais.

Mas voltemos ao assunto: é possível separar o autor da obra? Bem, quantos pintores, músicos, astros de cinema e poetas, todos excelentes, têm temperamento e comportamento deploráveis?  Cada pessoa vem ao mundo para cumprir uma missão e prestar contas de seus atos. Os hindus se referem a esses aspectos da vida respectivamente como ‘Dharma’ e ‘Karma’. As vidas de grandes artistas são muitas vezes turbulentas, trágicas, cheias de passagens vergonhosas. Mas é por isso que iremos destruir pinturas, esculturas, rasgar poemas e partituras? Quem somos nós para julgar o modo como os outros desempenham o ‘Dharma’ e cumprem o ‘Karma’?

Repito: li tudo de Lobato. Com 8 anos, já lera toda a coleção infantil. Só assimilei valores (já que estamos em clima de julgamento) positivos: liberdade, otimismo, coragem, vontade de aprender, e até tolerância. Em nenhum momento me senti influenciado pelo suposto racismo de Lobato. Pelo contrário: há até alguns pitorescos episódios na minha vida provando que eu não tinha nem ‘noção’ de que características físicas, como cor da pele, pudessem fazer diferença. Eu simplesmente não ‘via’ essas características.

Curiosamente, quando li os livros de Monteiro Lobato ‘para adultos’, não registrei as passagens com suposto teor racista. Lobato tinha tanta coisa a dar! Iria eu desdenhar a gema só por causa de insignificante jaça?

“Quem procura, acha” – eis outro sábio adágio popular. Quem, na arte ou na literatura, procura maldade, acha maldade; quem procura imoralidade, acha imoralidade; quem procura racismo, acha racismo. Eu nem passo perto de músicos, escritores, artistas, cineastas, dramaturgos ou blogueiros que sabidamente se ocupam dessas coisas. Por que perderia meu tempo? Se eu desse nome a alguns bois, certamente melindraria muitos que idolatram esses deploráveis criadores, mas que desejam censurar Lobato por racismo...

Outra coisa, ainda: é sério esse negócio de fazer a ‘revisão’ de textos ‘politicamente incorretos’? Então sugiro que deem uma olhada cuidadosa no maior best-seller de todos os tempos: a Bíblia. Aquilo é uma vergonha. Tem de tudo para escandalizar as tradicionais famílias no mundo inteiro. Racismo ali é pinto.

Deixem Lobato em paz.

 _____

01/06/2020

Quando escrevi este texto, provocado por um post no Facebook que apresentava Monteiro Lobato como racista, eugenista, eu sabia que iria causar polêmica entre meus quatro ou cinco leitores. Natural: tudo muda, e coisas que eram aceitas ou simplesmente ignoradas há poucas décadas – a homofobia, o bullying, a misoginia, a violência doméstica, o racismo – não são mais consideradas “politicamente corretas”.

Nem quero entrar no quanto há de cinismo e até oportunismo abrigados sob o conceito de “politicamente correto”; assim como – apenas para fazer um paralelo didático – há cinismo e oportunismo sob rótulos como “capitalismo verde”, “desenvolvimento sustentável” e outros que prefiro nem citar para evitar novos melindres.

A questão é que muitas críticas a meu artigo (que começou como comentário no Facebook mas desembestou, cresceu demais) são honestas e pertinentes.

Minha jovem e esclarecida amiga Barbara Bottino, por exemplo, não mediu palavras:

“Eu discordo. [...] a questão não era apenas a tia Anastácia, mas como ele era, sim, totalmente supremacista e saudosista da escravidão. [...] boa parte dos sofrimentos que o mundo enfrenta até hoje são consequência desse tipo de pensamento.”

Sim, o pensamento escravocrata (que, aliás, faz parte da cultura brasileira, como lembra o sociólogo Jessé Souza) causou e causa muitos sofrimentos. Durante muitos milênios o escravagismo foi considerado natural e até indispensável. Os mesmos setores que, hoje, alimentam falácias como “livre mercado”, “meritocracia”, “investimento estrangeiro” e até “democracia” – tudo para sustentar a falácia-mor do Neoliberalismo – no século 19 declaravam peremptoriamente que, sem escravos, o Brasil iria “quebrar”.

Mas, se Monteiro Lobato era, de fato, “supremacista e saudosista da escravidão”, ele falhou feio em conquistar adeptos. Não consta que ele se tenha tornado um apóstolo dessas ideias.

“Numa parte do texto, você diz: ‘Não podemos avaliar produções artísticas e literárias antigas a partir de nossos valores e crenças. Tudo isso é tão mutável!’ Mas ora, se você acredita que defender o linchamento de negros e supremacia é uma crença mutável, e por isso a importância de uma obra literária deve-se sobrepor, fico no mínimo muito triste.”

Disso eu não abro mão. Aliás, regra básica entre antropólogos e sociólogos é evitar projetar seus valores e saberes contemporâneos sobre a análise de civilizações antigas ou grupos étnicos exóticos. Os Masai, na África, que causam desconforto entre veganos com sua dieta à base de leite e sangue, simplesmente não teriam sobrevivido de outra forma. Eu jamais adotaria tal dieta, e tentaria dissuadir quem por ela se interessasse, usando argumentos éticos, nutricionais, políticos, ecológicos; mas quem sou eu para, sentado na montanha de alternativas alimentares ofertada pelo século 21, condenar um estilo de alimentação que permitiu a um grupo étnico sobreviver por séculos?

Não considero que o linchamento de negros seja aceitável em qualquer época ou lugar. Aliás, sempre me incomodou a injustiça. Ficava indignado quando meus coleguinhas gordos, fracos ou simplesmente ‘diferentes’ sofriam bullying – embora a palavra nem existisse ainda.

Mas o curioso é isto: não me lembro de ter lido em Monteiro Lobato incitamento à violência contra negros. Mas parece que houve: teriam sido pescadas em seus textos declarações nesse sentido.

Mas são essas declarações, que poderiam ser relativizadas e contextualizadas à luz de saberes da Psicologia, da Linguística, da Sociologia e da História, o legado de Monteiro Lobato?

“No mais, sua experiência pessoal não pode ser dada como regra. [...] é extremamente nocivo, sim, crianças lerem esse tipo de [...] referência a pessoas negras. Pode ter te passado despercebido, mas não passaria a uma criança negra hoje em dia. Ou, talvez, [...] uma criança branca [...]  usaria como motivo para humilhar um colega negro. Tudo isso tem consequências na construção de identidade e amor próprio de uma pessoa negra. E, em uma sociedade que ainda é MUITO racista e excludente, a educação precisa ir na contramão desse caminho. Ninguém está falando para queimar os livros dele. Qualquer um pode ler quando quiser. Daí a manter como livro didático de ensino fundamental é muito diferente.”

Aceito essa crítica: minha experiência pessoal não pode ser tomada como regra. Mas não consigo ver todo esse racismo virulento e desvirtuador, corruptor de menores nos livros de Lobato. Nem eu nem, por exemplo, Nelson Motta, de quem discordo em várias coisas, mas que tampouco acha que a literatura de Monteiro Lobato forjava jovens racistas.

E não forjava racistas porque ela tem muito mais a oferecer. Há pessoas que, diante de belíssimo quadro num museu, concentram-se em reparar no quase imperceptível arranhão na moldura. É o caso dos novos fiscais do “politicamente correto”.

Eu não via racismo quando frequentava o Sítio do Pica-Pau Amarelo; mas via o tempo todo à minha volta, e até dentro da minha família! Meu pai, nordestino raça pura, contava piadas racistas, homofóbicas e misóginas; um de meus irmãos, outro ariano puro, é racista; minhã mãe, assim como minha avó, tinham fobia tanto a negros quanto a “comunistas”. Mas o que mais me chamava a atenção era o racismo explícito do garoto da minha idade, filho do camponês miserável que era caseiro do sítio de meus avós: eu não conseguia entender que ele considerasse inferior outra pessoa apenas porque tinha a pele um pouco mais escura...

“Por fim, pra mim isso tudo é indiscutível. Irrelativizável e intolerável, graças ao paradoxo da tolerância. [...]”

“Ah! Mais um adendo. Construir no leitor uma relação carinhosa com a personagem não anula o racismo. Como ele mesmo diz é uma ‘negra de estimação’, como se fizesse referência a um animal, do qual se espera servidão, amor incondicional e pouca complexidade. Possuir algum tipo de carinho por uma pessoa (em especial se ela expressar comportamento submisso) não significa respeitá-la como ser humano e indivíduo.”

O paradoxo da tolerância é tolerável. Ele é uma saída, uma fórmula mágica útil exatamente nos tempos atuais, quando muitos poderiam tender a considerar que não seria “politicamente correto” ser intolerante com a intolerância. E até concordo que não devemos ser tolerantes com muitas coisas. Mas não concordo que possa ser aplicado ao caso de Monteiro Lobato. Pelas razões que já apresentei: o alegado racismo não contaminou de fato sua obra. Repito: li tudo dele. Das coleções da infância, a única que preservei até hoje foi a de Monteiro Lobato. Tenho sua obra completa. Como também já disse, ele me influenciou em vários aspectos; mas não fez de mim nem racista, nem eugenista. E, se uma criança atual, mais sensível a esses temas, puder ser influenciada por ideias racistas, terá primeiro de ser impregnada de muitos outros valores e ideais, que fazem o corpo principal da obra de Monteiro Lobato.

Finalmente, não posso deixar de fazer um último comentário.

Essa besteira do “politicamente correto” é mais um desvio, mais uma distração. Parece-me claro que devemos sempre focar as coisas de fato importantes. Tanto mais em tempos em que mesmo as coisas importantes poderão ser varridas por uma tempestade que veio da China.


Nenhum comentário: