Quando conheci seus livros 'para adultos', minha admiração não diminuiu. Ele nunca foi da Academia Brasileira de Letras, mas meia-dúzia de incensados acadêmicos amontoados uns sobre os outros não lhe fariam sombra...
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01/06/2020
Quando escrevi este texto,
provocado por um post no Facebook que apresentava Monteiro Lobato como racista,
eugenista, eu sabia que iria causar polêmica entre meus quatro ou cinco
leitores. Natural: tudo muda, e coisas que eram aceitas ou simplesmente ignoradas
há poucas décadas – a homofobia, o bullying, a misoginia, a violência
doméstica, o racismo – não são mais consideradas “politicamente corretas”.
Nem quero entrar no quanto há
de cinismo e até oportunismo abrigados sob o conceito de “politicamente correto”;
assim como – apenas para fazer um paralelo didático – há cinismo e oportunismo
sob rótulos como “capitalismo verde”, “desenvolvimento sustentável” e outros
que prefiro nem citar para evitar novos melindres.
A questão é que muitas
críticas a meu artigo (que começou como comentário no Facebook mas desembestou,
cresceu demais) são honestas e pertinentes.
Minha jovem e esclarecida
amiga Barbara Bottino, por exemplo, não mediu palavras:
“Eu discordo. [...] a questão não era
apenas a tia Anastácia, mas como ele era, sim, totalmente supremacista e
saudosista da escravidão. [...] boa parte dos sofrimentos que o mundo enfrenta
até hoje são consequência desse tipo de pensamento.”
Sim, o pensamento escravocrata
(que, aliás, faz parte da cultura brasileira, como lembra o sociólogo Jessé
Souza) causou e causa muitos sofrimentos. Durante muitos milênios o escravagismo
foi considerado natural e até indispensável. Os mesmos setores que, hoje,
alimentam falácias como “livre mercado”, “meritocracia”, “investimento estrangeiro”
e até “democracia” – tudo para sustentar a falácia-mor do Neoliberalismo – no século
19 declaravam peremptoriamente que, sem escravos, o Brasil iria “quebrar”.
Mas, se Monteiro Lobato era,
de fato, “supremacista e saudosista da escravidão”, ele falhou feio em
conquistar adeptos. Não consta que ele se tenha tornado um apóstolo dessas
ideias.
“Numa parte do texto, você diz: ‘Não
podemos avaliar produções artísticas e literárias antigas a partir de nossos
valores e crenças. Tudo isso é tão mutável!’ Mas ora, se você acredita que
defender o linchamento de negros e supremacia é uma crença mutável, e por isso
a importância de uma obra literária deve-se sobrepor, fico no mínimo muito
triste.”
Disso eu não abro mão. Aliás,
regra básica entre antropólogos e sociólogos é evitar projetar seus
valores e saberes contemporâneos sobre a análise de civilizações antigas ou grupos
étnicos exóticos. Os Masai, na África, que causam desconforto entre
veganos com sua dieta à base de leite e sangue, simplesmente não teriam
sobrevivido de outra forma. Eu jamais adotaria tal dieta, e tentaria dissuadir
quem por ela se interessasse, usando argumentos éticos, nutricionais, políticos,
ecológicos; mas quem sou eu para, sentado na montanha de alternativas
alimentares ofertada pelo século 21, condenar um estilo de alimentação que
permitiu a um grupo étnico sobreviver por séculos?
Não considero que o
linchamento de negros seja aceitável em qualquer época ou lugar. Aliás, sempre
me incomodou a injustiça. Ficava indignado quando meus coleguinhas gordos,
fracos ou simplesmente ‘diferentes’ sofriam bullying – embora a palavra
nem existisse ainda.
Mas o curioso é isto: não me
lembro de ter lido em Monteiro Lobato incitamento à violência contra negros.
Mas parece que houve: teriam sido pescadas em seus textos declarações nesse
sentido.
Mas são essas declarações, que
poderiam ser relativizadas e contextualizadas à luz de saberes da Psicologia,
da Linguística, da Sociologia e da História, o legado de Monteiro Lobato?
“No mais, sua experiência pessoal não
pode ser dada como regra. [...] é extremamente nocivo, sim, crianças lerem esse
tipo de [...] referência a pessoas negras. Pode ter te passado despercebido,
mas não passaria a uma criança negra hoje em dia. Ou, talvez, [...] uma criança
branca [...] usaria como motivo para
humilhar um colega negro. Tudo isso tem consequências na construção de
identidade e amor próprio de uma pessoa negra. E, em uma sociedade que ainda é
MUITO racista e excludente, a educação precisa ir na contramão desse caminho.
Ninguém está falando para queimar os livros dele. Qualquer um pode ler quando
quiser. Daí a manter como livro didático de ensino fundamental é muito
diferente.”
Aceito essa crítica: minha
experiência pessoal não pode ser tomada como regra. Mas não consigo ver todo
esse racismo virulento e desvirtuador, corruptor de menores nos livros
de Lobato. Nem eu nem, por exemplo, Nelson Motta, de quem discordo em várias
coisas, mas que tampouco acha que a literatura de Monteiro Lobato forjava
jovens racistas.
E não forjava racistas porque
ela tem muito mais a oferecer. Há pessoas que, diante de belíssimo
quadro num museu, concentram-se em reparar no quase imperceptível arranhão na
moldura. É o caso dos novos fiscais do “politicamente correto”.
Eu não via racismo quando frequentava
o Sítio do Pica-Pau Amarelo; mas via o tempo todo à minha volta, e até dentro
da minha família! Meu pai, nordestino raça pura, contava piadas
racistas, homofóbicas e misóginas; um de meus irmãos, outro ariano puro,
é racista; minhã mãe, assim como minha avó, tinham fobia tanto a negros quanto
a “comunistas”. Mas o que mais me chamava a atenção era o racismo explícito do
garoto da minha idade, filho do camponês miserável que era caseiro do sítio de
meus avós: eu não conseguia entender que ele considerasse inferior outra pessoa apenas
porque tinha a pele um pouco mais escura...
“Por fim, pra mim isso tudo é
indiscutível. Irrelativizável e intolerável, graças ao paradoxo da tolerância.
[...]”
“Ah! Mais um adendo. Construir no
leitor uma relação carinhosa com a personagem não anula o racismo. Como ele
mesmo diz é uma ‘negra de estimação’, como se fizesse referência a um animal, do
qual se espera servidão, amor incondicional e pouca complexidade. Possuir algum
tipo de carinho por uma pessoa (em especial se ela expressar comportamento
submisso) não significa respeitá-la como ser humano e indivíduo.”
O paradoxo da tolerância é
tolerável. Ele é uma saída, uma fórmula mágica útil exatamente nos
tempos atuais, quando muitos poderiam tender a considerar que não seria “politicamente
correto” ser intolerante com a intolerância. E até concordo que não devemos ser
tolerantes com muitas coisas. Mas não concordo que possa ser aplicado ao caso
de Monteiro Lobato. Pelas razões que já apresentei: o alegado racismo não
contaminou de fato sua obra. Repito: li tudo dele. Das coleções da infância, a única
que preservei até hoje foi a de Monteiro Lobato. Tenho sua obra completa. Como
também já disse, ele me influenciou em vários aspectos; mas não fez de mim nem
racista, nem eugenista. E, se uma criança atual, mais sensível a esses temas, puder
ser influenciada por ideias racistas, terá primeiro de ser impregnada de muitos
outros valores e ideais, que fazem o corpo principal da obra de Monteiro
Lobato.
Finalmente, não posso deixar
de fazer um último comentário.
Essa besteira do “politicamente
correto” é mais um desvio, mais uma distração. Parece-me claro que
devemos sempre focar as coisas de fato importantes. Tanto mais em tempos em que
mesmo as coisas importantes poderão ser varridas por uma tempestade que veio da
China.
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