terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Teoria da Ordem

 



Nelson M. Mendes

Alguém disse certa vez que comentarista esportivo é aquele sujeito que, terminada a batalha, entra em campo e mata todos os feridos. Alguns dos próprios comentaristas se assumem, muitas vezes, como “engenheiros de obras prontas”; ou profetas do que já passou.

O que eu tenho a dizer é que os comentaristas parecem alimentar a ilusão de que seja possível equacionar esse extraordinário conjunto de imponderáveis denominado esporte. Houve um paciente psiquiátrico, Arthur Bispo do Rosário, que tentou explicar ou mapear o universo, desenvolvendo para isso uma escrita, feita de cordões, pedras – o que lhe caísse nas mãos – que  resultou numa produção de intrigante apelo artístico. A pessoa sensível, diante de seus trabalhos, percebe seu esforço para fugir ao caos, encontrar a ordem, o sentido.

Essa ânsia por entender e organizar as coisas não é coisa de maluco: muitos cientistas e filósofos a sentem. Aldous Huxley a chama de “vontade de ordem”, e diz que ela pode inclusive levar esses pensadores a elaborar sistemas que pretensamente abrangem o todo – mas que são tão arbitrários e precários quanto os ingênuos esquemas do Bispo do Rosário. Que grande cientista, filósofo ou poeta não imaginou um dia ter encontrado a resposta, a solução, a explicação final? O próprio Einstein não morreu sonhando com uma “teoria de tudo”?

Entretanto, não bastasse a Teoria da Relatividade, não bastasse a Física Quântica, a ciência nos trouxe ainda mais um fantasma para atrapalhar nossos sonhos de um universo ordenado, previsível: a Teoria do Caos...

É por isso que os comentaristas esportivos erram. (Muitos economistas erram também por isso –  porque se iludem com a ideia de que a Economia seja uma ciência exata; outros, entretanto, erram porque são pagos para mentir em favor da Plutocracia.)

E que dizer dos profissionais ou leigos que se aventuram a fazer previsões políticas? Ou a comentar os resultados eleitorais?

Aí mesmo é que é o caos; sem teoria: na prática...

As eleições municipais de novembro deste conturbado 2020, como de praxe, produziram muitos videntes e analistas. Havia a expectativa de que, depois de dois anos de trapalhadas fascistas do pior presidente da História, o eleitor faria, como se diz no jargão político, uma “opção mais à esquerda”.

As urnas frustraram as otimistas previsões. Nem Marília Arraes em Recife, nem Guilherme Boulos em São Paulo, nem Manuela d’Ávila em Porto Alegre. Os analistas registram que o PT (Partido dos Trabalhadores) não elegeu nenhum prefeito de capital.

O eleitor mostrou sua face conservadora; sua ignorância política; seu medo visceral do ‘comunismo’.

Os videntes e analistas, leigos ou profissionais – alguém tem de dizer isso –, estão ainda presos a conceitos marxistas, a noções corretas, porém desgastadas, de esquerda/direita. Ninguém, mais do que este articulista, tem afirmado que não chegamos ao “fim da História”; que o Capitalismo não é a solução; que a antinomia  direita/esquerda é uma espécie de manifestação, na esfera sociopolítica, da 3ª lei de Newton, a da ação/reação; e que a esquerda, na verdade, é o motor da História. No entanto...

Não podemos nos permitir ser vítimas da “vontade de ordem”, da pretensão de, ancorados em Marx, Platão, Cristo, Kant – quem seja –, elaborar diagnósticos e prognósticos no que se refere aos fenômenos sociais, políticos e econômicos. Vamos relembrar: a Teoria do Caos surgiu quando a ciência assumiu que nem mesmo os fenômenos físicos eram perfeitamente previsíveis!

E repito: os velhos instrumentos teóricos já perderam o fio. Marx, na opinião de muitos estudiosos, é o maior analista, de todos os tempos, desses fenômenos sociais, políticos e econômicos. Ele foi aliás ressuscitado para explicar a crise financeira de 2008, que havia surpreendido todos os especialistas; e que talvez seja um dos últimos espasmos do sistema moribundo. Mas mesmo Marx não dá conta de explicar tudo. As turbulências da História (“turbulência” é um termo muito usado na Teoria do Caos) são imprevisíveis; e mais ainda nesses tempos em que todos os processos estão acelerados.

As massas não serão “educadas”, não “aprenderão a votar”. Em primeiro lugar, como tem este ensaísta amador insistido, existe no coração de cada ser humano aquilo que ele denominou egoísmo basal; é neste solo, em cuja composição há também muito de ignorância, que se enraíza a rejeição ao ‘comunismo’ e a qualquer ideia de ‘esquerda’. Em segundo lugar, os poderes estabelecidos há muito tempo tratam de explorar esse pânico ‘anticomunista’, e lançam no solo as sementes do fascismo – com ou sem aspas, em versão analógica ou digital.

O resultado? Derrotas impensáveis das propostas ‘de esquerda’.

Alguém também tem que dizer isto: precisamos renunciar às nossas crenças infantis, aos nossos heróis políticos. Deu trabalho superar as tolices teológicas que nos foram incutidas desde a infância; entender como a religião foi e ainda é usada para legitimar as injustiças sociais. Mas agora é hora de darmos um passo adiante.

Cristo não nos irá salvar. Mas Marx também não.

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Na foto de abertura, a assustadora Manuela d’Ávila, que não foi eleita prefeita de Porto Alegre por ser filiada ao abominável Partido Comunista do Brasil.


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