quarta-feira, 27 de outubro de 2021

“O caso Veja” e o ocaso da mentira

 




 

Nelson M. Mendes

 

Escreve Luís Nassif em “O CASO VEJA – o naufrágio do jornalismo brasileiro”, livro que vem de lançar neste segundo semestre de 2021:

Desde os anos 80, cada vez mais Veja se especializaria em “construir” matérias que assumiam vida quase independente dos fatos que deveriam respaldá-la. Definia-se previamente como “seria” a matéria. Cabia aos repórteres apenas buscar declarações que ajudassem a colocar aquele monte de suposições em pé.

Essa preparação prévia da reportagem ocorria toda segunda-feira nas reuniões de editores. Era chamada de “pensata”.

O que era um estilo criticável, com o tempo acabou tornando-se uma compulsão, como se a revista não mais precisasse dos fatos para compor suas reportagens. Ela se tornou uma ficção ampla, algo que é de conhecimento geral dos jornalistas brasileiros.

Todos os brasileiros minimamente informados sabiam que há muito tempo a revista Veja não faz jornalismo, mas publicidade ideológica, campanha política, e, como diz Nassif, “assassinato de reputações”. Mas Nassif nos vem mostrar que o monstro é muito mais sinistro e asqueroso do que podíamos imaginar.

Mal havíamos começado a elaborar este texto, e ficamos sabendo das declarações do banqueiro André Esteves, que se gaba de influenciar a Câmara, o Banco Central, e de ter “educado” o STF – que não por acaso aprovou a independência do Banco Central.

Todos os brasileiros minimamente informados sabem que os banqueiros há muito tempo mandam no Brasil. E que a grande mídia – O Globo, Folha, Estadão, Veja, etc. – sempre foi a voz dos banqueiros. Agora tudo ficou mais explícito, porque esses grupos não mais pertencem às tradicionais famiglias: estão sendo comprados pelo sistema financeiro. O Grupo Abril – de que a revista Veja é o produto mais conhecido – pertence agora ao banqueiro André Esteves.

No texto “A Mídia e o Voto”, de 2014, nós escrevemos, a partir da leitura de uma dissertação de mestrado (infelizmente perdida):

A revista Veja sempre moveu verdadeira perseguição ao PT, de modo geral, e a Lula, particularmente, o que pode ser ilustrado com a citação da página 38 do nº 1455 da revista, já nos anos 80: “Lula não é um candidato que tranquiliza. Com um braço na CUT e outro nos sem-terra, o PT é um partido associado à ideia de desordem. Em caso de vitória de Lula, existe a possibilidade de elevação da temperatura social do país, com greves e invasões de terras numa escala como nunca se viu.”

Todos os brasileiros minimamente informados sabem que a elevação produzida pelos governos petistas foi a do nível socioeconômico do povo, de modo geral. Nem o chamado “poder econômico-financeiro” teve do que reclamar! O Brasil chegou à posição de 6ª enonomia do mundo, saiu do “mapa da fome”, beneficiou-se de vários programas sociais, e ainda assim acumulou U$ 380 bilhões em reservas cambiais.

Todos os brasileiros minimamente informados sabem que a perseguição ao PT, de modo geral, e a Lula, particularmente, promovida pelo poder econômico-financeiro, envolveu as instituições (Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, Polícia Federal, MP) e a chamada “mídia corporativa”.

Todos os brasileiros minimamente informados sabem que a Veja teve e continua tendo papel de destaque nessa perseguição. Ainda no texto “A Mídia e o Voto”, está registrado  que Eduardo Campos relatou ao jornalista Ricardo Kotscho ter feito uma visita em 2012 à Editora Abril, e que  Roberto Civita, apontando algumas revistas Veja, falou: “Você está vendo estas capas aqui? Esta é a única oposição de verdade que ainda existe ao PT no Brasil. O resto é bobagem. Só nós podemos acabar com esta gente, e vamos até o fim.”

O método para “acabar com esta gente” é a mentira, é o “assassinato de reputações”, na expressão de Nassif. É usado pela mídia suja, descompromissada com a ética, a verdade e até com os mais básicos valores humanistas. Há casos conhecidos de pessoas comuns cujas vidas foram destruídas por uma imprensa ávida de faturar em cima de escândalos – embora não tivessem qualquer envolvimento político que justificasse a perseguição. Mas o alvo preferencial dessa mídia venal, onde pontificam os “mercenários da plutocracia” (jornalistas pagos para mentir em favor do poder econômico, segundo o economista Paul Krugman), são obviamente os políticos progressistas. Qualquer político ou intelectual que destoe do cantochão neoliberal, é imediatamente atacado, ridicularizado, acusado de todo tipo de crimes. Esse método é usado há décadas – e não apenas no Brasil.

Mas, como foi dito, a mídia não está sozinha nesse trabalho. Geralmente ele é feito “com o Supremo, com tudo” (na imortal fala do senador Romero Jucá). Em fevereiro de 2017 o jurista Eugênio de Aragão, no texto “O risco dos castelos teóricos do Ministério Público em investigações complexas”, fez críticas (que apresentamos bastante editadas) aos procedimentos inquisitoriais do MP:

É absolutamente legítimo, numa tentativa mais exata de explicar fatos complexos, que se busque a respeito deles construir um modelo teórico.

Paul Feyerabend sugere que cientistas [desonestos] promovem puxadinhos de novas hipóteses por testar, sempre no esforço, não de desistir da teoria, mas de camuflar suas inconsistências. Se necessário, até por meio de falácias ocultas.

O agir de investigadores criminais, quando lidam com ilícitos de maior complexidade, parece não ser muito diferente. O Ministério Público vai além, porque tem de elaborar uma teoria que sustente a acusação.

Esse tipo de técnica foi largamente usado na Apn 470-DF, conhecida como “Mensalão”.

A experiência do uso do modelo teórico foi tão bem recebida por uma mídia comercial, ávida por uma versão que comprometesse todo o governo do PT, que logo se realizou curso de “Mensalão” na Escola Superior do Ministério Público da União, para os colegas aprenderem a montar seus castelos teóricos como rotina acusatória.

O problema de teorias investigativas é que, se estáticas, incidem sobre grave violação do princípio de inocência.

As provas que vão chegando ao processo são empurradas, piladas, socadas para dentro de categorias pré-concebidas. Não interessam as demonstrações de inocência provável do investigado/acusado, porque são antiestéticas. Sacrifica-se, com arrogância moralista, essa inocência pelo amor ao castelo teórico.

Piores ainda são os castelos construídos pelas “task forces”, forças-tarefas, criadas por Polícia e Ministério Público com todo o estardalhaço. É que uma força-tarefa fica sob permanente pressão para apresentar resultados. Ninguém cria força-tarefa para arquivar um inquérito.

Esse estardalhaço, por si só, fere mortalmente a presunção de inocência e vai consolidando na opinião pública a certeza do envolvimento dos atores escolhidos nos fatos supostamente ocorridos.

Forças-tarefas que envolvem trabalho conjunto de Polícia com Ministério Público, sob a suspeita imiscuição do juiz em todas as etapas, são inconstitucionais.

O que se percebe hoje, na força-tarefa da operação Lava a Jato, é precisamente isso: Polícia, Ministério Público e juiz como parceiros de uma mesma empreitada, para chegar a conclusões antecipadamente postuladas.

Nenhuma prova sólida é apresentada, mas apenas suposições baseadas em duvidosas declarações de testemunhas sem credibilidade.

Mas fazem-se coletivas de imprensa para apresentação de vistosos gráficos de PowerPoint de impressionante fragilidade, sempre em prol de uma teoria prévia, teoria montada.

O jurista Afranio Silva Jardim, ao preparar em 2017 um parecer para o Comitê de DireitosHumanos da ONU sobre o “lawfare” (perseguição política por meios jurídicos) sofrido por Lula, escreveu um texto que também editamos, e de que apresentamos a seguir alguns extratos:

Estou convicto de que ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva está “previamente condenado”.

Como se costuma dizer: escolheram o “criminoso” e estão agora procurando o crime...

É de todos sabido, e consta até de trabalhos acadêmicos, que a estratégia da Lava a Jato foi cooptar a opinião pública, através de acordos com a grande imprensa.

Em nosso sistema processual, o juiz não pode participar de investigações prévias à instauração do processo. O juiz não pode produzir prova, para que tenha sua imparcialidade preservada.

Esta desejada imparcialidade do juiz penal deixa de existir quando todos os agentes do chamado “sistema de justiça penal” estão irmanados em um determinado “combate à corrupção”, estão “do mesmo lado”.

Pior ainda quando o Ministério Público resolve fazer o papel de polícia ou atuar em conjunto com ela, como ocorre nos processos instaurados contra o ex-presidente Lula.

Tudo isso fica agravado com as violações de várias regras processuais que tratam da competência jurisdicional. O Dr. Sérgio Moro virou um verdadeiro “juiz penal universal”, em detrimento do relevante princípio constitucional do “juiz natural”.

O juiz Sérgio Moro quer e vai condenar o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

O “lawfare” é gritante e acintoso.

Os dois notáveis juristas – Eugênio de Aragão e Afranio Silva Jardim – faziam, já em 2017, a dissecação do monstro híbrido, com tentáculos no Judiciário, no Legislativo, nas Forças Armadas, no MP, na Polícia, na mídia e até no meio evangélico, criado para que a implantação do Neoliberalismo (doutrina de proveta elaborada às pressas por Friedman, Mises, Hayek et caterva, em substituição ao falido Liberalismo clássico) fosse consolidada. Esse projeto de sequestro do país tinha sido parcialmente interrompido pelos governos petistas. O PT era o grande inimigo do capital transnacional predatório, bem como de seus representantes brasileiros.

Interessante destacar que as análises dos juristas antecederam em dois anos a divulgação, pelo The Intercept, das indecorosas e criminosas conversas do juiz Moro com o procurador Dallagnol, capturadas pelo hacker Walter Delgatti Neto, verdadeiro herói nacional. Mas as ilegalidades cometidas para destruir lideranças progressistas e abrir caminho para o saqueio do país, já tinham sido apontadas, na contramão do mainstream midiático, por muitos juristas, jornalistas, intelectuais de modo geral.

Já em fevereiro de 2013, por exemplo, o jornalista Paulo Moreira Leite lançava “A outra história do Mensalão”, questionando a versão dada a um episódio que Ali Kamel, poderoso chefão do jornalismo da Globo, determinou fosse tratado como “o maior escândalo da história da República”. Hoje está provado que Paulo tinha razão: foi tudo mais uma farsa jurídico-midiática.

Mas essas vozes no deserto não impediriam que as hienas neoliberais dessem o golpe na Dilma e, na sequência, por meio de uma das mais absurdas perseguições jurídicas de que se tem notícia (só comparável aos processos do Nazismo, do Stalinismo, do Macarthismo ou os promovidos pela Santa Inquisição), colocassem Lula na cadeia, impedindo-o de participar da eleição de 2018, que ele teria facilmente vencido.

O livro de Nassif – “O caso Veja” – vem mostrar, às vezes com detalhes nauseantes,  a origem desse fedorento e tóxico rio de mentiras que terminaria desaguando na inacreditável eleição do fantoche fascista Jair Bolsonaro.

Mas a pororoca já começa a acontecer. Muitos jornalistas mercenários já começam, por um motivo ou outro, a se arrepender; militantes fascistas estão sendo presos; até parte do eleitorado bolsonarista jura que não votará de modo algum no miliciano desclassificado. Enquanto isso, Lula, com seus direitos políticos recuperados, tendo superado já 19 fraudes judiciais, deverá vencer no primeiro turno em 2022. O ex (e futuro) presidente já tinha previsto: “A verdade vencerá.”




Por feliz coincidência, este texto é publicado no dia do aniversário de Lula.




3 comentários:

Carlos Valdetaro disse...

Muito bom o texto, mostra de forma clara e coerente fatos que hoje começam a cair no domínio público.

Nelson M. Mendes disse...

Exatamente. A verdade começa a vencer.

Rita Lustosa disse...

Excelente texto, verdades colocadas com detalhes, contudo, não dá pra falar em "vitória"; as hienas nunca largaram a carniça e não será agora, foram vorazes em destruir em pouco tempo as conquistas dos governos do PT, e seguirão com a mesma prática; ainda q entre novamente um governo progressista, tudo que vier a edificar desmorona c/um próximo governo de direita, ou seja, seremos sempre a nação q tenta consolidar seu progresso mas não consegue; isso vai minando o senso de patriotismo de muitos (o meu por ex) pq vc percebe que o "Sistema" está posto e o jogo, jogado.