Nelson M. Mendes
Em 1973, o professor Reinaldo
Pimenta, criticando a abolição dos acentos diferenciais de timbre pela emenda
ortográfica de 1971, disse que os dicionários do futuro teriam de
trazer a indicação de timbre entre parêntesis – (ê), (ô), (e), (o). O professor
errou: os dicionários trazem a indicação entre colchetes. Mas acertou quando
previu que seria particularmente problemática a distinção entre ‘fôrma’ e
‘forma’; tanto que Aurélio Buarque de Holanda ignorou a convenção gramatical e
registrou dois verbetes independentes, num dos quais a palavra vinha óbvia e
sensatamente acentuada.
O que veio
antes: o ovo, ou a galinha? A discussão começa no bar, passa pela ciência e se
perde nos etéreos céus da filosofia. Mas ninguém tem dúvida de que a fala
antecedeu a escrita. O próprio Deus, segundo as escrituras cristãs, vocalizou para
criar o Universo. (O escriba considera que “Universo”, como ‘o topônimo dos
topônimos’, ‘o rei dos topônimos’, deva ser grafado com inicial maiúscula.) “No
princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo.” Deus
simplesmente disse: “Faça-se luz.” Ele não publicou um decreto dando conta da
criação do Universo.
Se a fala
veio antes, tudo o que a escrita deveria pretender seria emular a
fala da melhor forma possível. A missão da escrita é traduzir
graficamente o discurso que nasceu oral, feito de ondas sonoras a viajar pelo
ar.
Assim,
quando os gramáticos, em seu afã reformador, resolveram
banir os acentos diferenciais de timbre, eles criaram, na escrita, um problema
que não existia na comunicação oral. É claro que nem todos os acentos
diferenciais são indispensáveis: o timbre pode ser facilmente depreendido pelo
contexto (embora um estrangeiro ou criança possam ficar confusos); mas em
alguns casos, o acento faz falta. Por exemplo: “A sede do poder é a causa de
nossos problemas.” E agora? estou me referindo a sede (timbre
aberto), no sentido institucional de local (o Palácio do
Planalto, no caso brasileiro), ou estou falando de sede (timbre
fechado), no sentido metafórico de ânsia, ambição? Sede ou sêde?
O fim dos
acentos diferenciais de timbre representou um grave prejuízo para a comunicação
escrita. Exagero? (E agora? Eu usei o substantivo “exagêro”, ou o verbo na
primeira pessoa do singular do presente do indicativo? Uma análise
psico-lingüística poderia mostrar que há diferença.)
O leitor
atento observou que o escriba, no parágrafo acima, violou, desta feita, o
Acordo Ortográfico que passou a ter valor de lei em 2016 –
embora já vigorasse desde 2009 e tivesse sido assinado, salvo engano, no remoto
ano de 1990. O correto seria ter escrito “psicolinguística”, sem hífen nem
trema.
Bem, o
escriba tem também suas implicâncias com a última Reforma Ortográfica. Aliás,
com a ortografia, de modo geral. Aliás, com a gramática.
E agora assumindo a primeira
pessoa: não sou, de modo algum, adepto da anarquia gramatical. A
gramática é um excelente instrumento a serviço da comunicação: ela
nos ajuda a falar, a escrever, a interpretar textos. A linguagem precisa, sim,
ser sistematizada. E isso vale sobretudo para o discurso escrito, a que faltam
os recursos da fala – como expressões faciais, entonações, gestos, etc. Se o
discurso escrito não for muito bem estruturado, dará margem a ambigüidades (com
trema!) e passagens incompreensíveis, falhando assim no objetivo precípuo da
linguagem, que é comunicar. No entanto...
Vamos ver alguns casos de
incongruências ou bobagens gramaticais.
A última Reforma Ortográfica, se
teve o bom senso de resgatar o acento de ‘fôrma’ (em caráter opcional – os
gramáticos não dariam totalmente o braço a torcer...), por outro lado criou um
monte de dificuldades desnecessárias. O caso do hífen deu até livro: “A infernização do hífen”, de José
Carlos Gentili – um livro que, pelo que nos informa o Google, tem
616 páginas... Abaixo, comentários sobre a “infernização”.
Muitos foram os pintores, ao
longo da História, que fizeram auto-retratos; mas, depois da última Reforma
Ortográfica, eles passaram a fazer autorretratos. Isso representou uma mudança
que afetará o próprio rumo da Arte.
A ortografia (e creio que este
caso nem é culpa da última Reforma) estabelece que, nas
palavras compostas em que entram nomes próprios, sejam esses nomes grafados com
inicial maiúscula caso tenha permanecido a referência às celebridades
mencionadas; caso essa noção se tenha perdido com o tempo, os nomes virão com
iniciais minúsculas. Significa isso que o pobre usuário tem de ter uma ampla
cultura geral, conhecer História, estar sintonizado com a egrégora da
Língua, de modo a evitar cometer pecado ortográfico. Não seria melhor
estabelecer que os nomes próprios nas palavras compostas serão sempre grafados
da mesma forma – seja com iniciais minúsculas, ou maiúsculas?
Mas tem mais “infernização”: a
formação das palavras ‘paraquedas’ e ‘para-lamas’ é exatamente a mesma; e não
incidem sobre elas diferentes regras de “infernização”. No entanto, como notou
o leitor, uma tem hífen, e a outra, não.
Muitos outros exemplos poderiam
ilustrar a confusão e incongruência que regem o emprego do hífen na Língua
Portuguesa; mas o escriba não pretende escrever um livro de 600 páginas sobre o
assunto...
(Façamos um parêntese, porque
certamente há patrulheiros gramaticais incomodados com algumas
coisas. Porque eles não sabem, por exemplo, que o escriba reivindica, para si e
todos os usuários da Língua, liberdade estilística no uso de
iniciais maiúsculas, no emprego de sinais de pontuação, no manejo do próprio
hífen, – que vinha sendo o nosso assunto – e em muitas outras situações lingüisticas.
Mas os patrulheiros estarão
particularmente incomodados porque o escriba usou mais acima, para escândalo de
Dona Norma Culta, o verbo ‘ter’ no sentido de ‘haver’, ‘existir’. Bem, em 1928
Drummond escreveu que “tinha uma pedra no meio do caminho”. Faz quase um século
que o poeta assumiu literariamente um aspecto da linguagem popular mais que
consagrado pelo uso. No entanto, até hoje essa pedra gramatical não foi
removida do caminho do usuário da Língua Portuguesa.
E, para mostrar que o escriba de
fato reivindica liberdade estilística, ele encerra aqui um
parêntese que se estendeu por três parágrafos.)
Como foi dito, o escriba tem
muitas implicâncias com a ortografia. Ele é capaz de se lembrar de algumas.
Vejamos a questão dos ‘porques’, que são grafados de quatro formas: ‘por que’, por quê’, ‘porque’ e ‘porquê’. (O
escriba se recusa a acentuar “porques”, por motivos que serão explicitados na
seqüência – com trema).
A ortografia exige, em
nosso entendimento de maneira correta, que os oxítonos terminados em ‘e’ sejam
acentuados: ‘café’, ‘purê’. Bem. Qualquer ‘porque’, seja conjunção, seja
substantivo, é um oxítono terminado em ‘e’. Além do mais, em certas
situações do discurso, a sílaba final do ‘porque’ é absurdamente tônica.
Imaginemos a sequinte construção: “Isso porque, na raiz de todo problema, está
a ignorância humana.” Esse ‘porque’ é uma conjunção; e, embora o ‘que’ seja
claramente tônico, a gramática estabeleceu que o circunflexo no ‘porque’ (com
termos unidos) é característica identificadora do substantivo. Nesse caso, se
nem sempre é possível assinalar graficamente a tonicidade (e se a regra de
acentuação de oxítonos já foi a priori violada), por que
perpetuar essa confusão, por que insistir no barroco ‘por quê’, cujo abstruso
emprego demanda do usuário até o conhecimento de análise sintática?
O próprio professor Bechara disse
uma vez que os ‘porques’ poderiam ser reduzidos a apenas duas grafias. Como a
entrevista era na TV, ele, por falta de tempo ou oportunidade, não deu os
exemplos. Mas acreditamos que seriam: ‘por que’ e ‘porque’; nenhum com acento.
Qual é o porque de tanta
confusão? Será porque os gramáticos gostam de inventar hermetismos que só eles
sejam capazes de desvelar? Por que não simplificar o uso dos porques? Por que?
(E acaso sentiu o leitor falta de
acentos nessa porqueria toda acima?)
Na mesma entrevista, aliás,
Bechara falou que a questão do hífen poderia ter sido simplificada na última
Reforma...
O escriba quer chamar o leitor a
atentar para aquilo que vem tentando demonstrar: enquanto a gramática faz
bobagens como eliminar os acentos diferenciais de timbre e o trema (que fazem
falta), por outro lado se esmera em criar complicações
desnecessárias, como nos casos do hífen e dos ‘porques’ – apenas para citar dois
exemplos. O escriba insiste na tese inicial: a função da escrita é reproduzir
graficamente a fala. (Nem vou – descendo mais uma vez
do alter ego literário e assumindo a 1ª pessoa – discutir que a escrita é um
universo especial, praticamente autônomo, que é muito mais que simples tradução
gráfica da fala, etc. e tal; poucos respeitam e amam a escrita tanto quanto
eu.) O que é importante frisar é que a gramática cria obstáculos à
comunicação, resultando em que a escrita falhe, como não custa repetir, na
sua função primordial.
(E aqui abro parêntese para não
deixar passar um assunto: muitos consideram que a linguagem verbal é a própria
matéria-prima de que é feito o pensamento. Sem palavras não haveria pensamento.
Bem, eu poderia discutir educadamente a questão, citar filósofos e sábios de
todos os lugares e eras; mas vou me permitir incorporar o espírito da Emília,
de Monteiro Lobato, e disparar à queima-roupa: essa ideia de que não existe
pensamento sem palavras é uma grande besteira.)
Sejamos ainda mais claros: os
acentos diferenciais de timbre, que serviam por exemplo para diferenciar
‘fôrma’ de ‘forma’, foram banidos em 1971; e a reforma que passou a valer em
2016, cometeu a iniqüidade de acabar com o trema – além de criar uma série de
hermetismos quanto ao hífen. Acentos e trema serviam para que o som das
palavras fosse transportado corretamente para o universo
gráfico. Afinal, a escrita tem de reproduzir a fala. Mas –
pergunto – para que serve o hífen?
Na comunicação oral, ninguém
pensa se uma palavra tem ou não tem hífen. E todo mundo se entende.
Assim, o escriba volta a
insistir: que o usuário da Língua tenha liberdade estilística para
usar ou não usar hífen – lembrando que, se resolver dispensá-lo, terá de estar
atento às regras relativas à reconstrução das palavras. Ou
seja: é mais simples e seguro fazer a hifenização à antiga, que
apenas emenda as palavras, mantendo sua forma original. (Sim,
o escriba sabe que muitas palavras monolíticas resultaram
da fusão – ou aglutinação, na terminologia
gramatical – de elementos de palavras originalmente compostas; ‘extraordinário’,
por exemplo. Mas não foi uma confraria de gramáticos que determinou a fusão;
ela ocorreu naturalmente, por conta das leis que regem o desenvolvimento da
Língua.)
Mas dizia o escriba que sua bronca não
é apenas com a ortografia. Ele já deixou isso explícito ao denunciar o
anacronismo inacreditável da impossibilidade, segundo Dona Norma Culta, do
emprego do verbo ‘ter’ no sentido de ‘haver’. Mas tem mais.
Por exemplo: a briga sujeito
indeterminado X voz passiva sintética. “Vende-se casas” (sujeito
indeterminado), ou “Vendem-se casas” (voz passiva sintética)? E por que não
deixar que o usuário da Língua decida?
Outra coisa que faz Dona Norma
Culta passar mal é começo de frase com pronome oblíquo átono: “Me dá um doce”,
“Te faço um favor”. Muitos professores consideram que esse tipo de pronome só
se mantém átono lá nas origens lusitanas; no Brasil tropical, dos
espaços infinitos, o pronome cresceu, engordou, ganhou tonicidade.
Uma outra complicação gramatical
muito corriqueira é o emprego de onde e aonde. O
escriba já ouviu que ‘aonde’ deve ser usado com relação a verbos que indicam
movimento, qualquer coisa assim. Mas (desembarcando do alter ego), eu considero
que é tudo uma questão de regência, não de semântica. Ousaria até sugerir que a
forma ‘aonde’ fosse simplesmente banida da Língua Portuguesa. (O escriba já fez
isso em seus próprios textos.) Assim, seria possível resolver o famoso conflito
sintático da canção de Milton Nascimento: “Todo artista tem de ir a
onde o povo está.
É claro que o escriba poderia
listar muitas outras implicâncias. Porque os gramáticos não fogem à
tendência, comum a pensadores e estudiosos de todas as épocas, de encontrar
a sistematização absoluta.
O jurista Eugênio de Aragão, quando
em 2017 analisava as fraudes judiciais cometidas na Operação Lava a
Jato (e que já haviam ocorrido no ‘Mensalão’), citou o pensador
austríaco Paul Feyrabend, segundo o qual muitos cientistas, no afã de dar
sustentação às suas hipóteses, criavam narrativas falaciosas, eventualmente até
recheadas de dados suspeitos.
O escritor e filósofo Aldous
Huxley dizia que muitos intelectuais, das mais diversas disciplinas, são
freqüentemente vítimas do que ele chamava “vontade de ordem”, ou seja: a
necessidade ou pretensão de fechar uma ideia; ou organizar,
sistematizar, normatizar pelo menos o seu setor específico de conhecimento.
Alguns pensadores tentam até mesmo elaborar uma organização absoluta.
O próprio Einstein morreu sem ter conseguido elaborar a sonhada “Teoria de
Tudo”, ou “Teoria da Grande Unificação”.
No Brasil houve um homem, por
muitos considerado um gênio, que pacientemente criou complexos trabalhos
artísticos, com os quais ele tentava mapear, decifrar, sistematizar o próprio
Universo. O observador atento percebe claramente essa intenção no artista; mas
ele a confessa textualmente, em inscrição num de seus elaborados painéis. Seu
nome era Arthur Bispo do Rosário. O leitor saberá compreender as
pretensões universalistas do artista se considerar que ele era
um comprometido paciente psiquiátrico.
E que podemos falar da obsessão
sistematizadora dos gramáticos? Seria injustiça insinuar que eles insistem na
perpetuação de herméticas regras (quando não inventam novas, como ocorreu com a
polêmica última Reforma Ortográfica), apenas para que possam continuar
exercendo seu poder? Será que temem tornar-se supérfluos caso as regras sejam simplificadas?
Pois eu digo que os gramáticos teriam muito com que se ocupar
se deixassem de lado filigranas desprezíveis que só servem pra atormentar o
usuário da Língua.
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