sexta-feira, 11 de março de 2022

Insubordinação gramatical

 

Nelson M. Mendes

Em 1973, o professor Reinaldo Pimenta, criticando a abolição dos acentos diferenciais de timbre pela emenda ortográfica de 1971, disse que os dicionários do futuro teriam de trazer a indicação de timbre entre parêntesis – (ê), (ô), (e), (o). O professor errou: os dicionários trazem a indicação entre colchetes. Mas acertou quando previu que seria particularmente problemática a distinção entre ‘fôrma’ e ‘forma’; tanto que Aurélio Buarque de Holanda ignorou a convenção gramatical e registrou dois verbetes independentes, num dos quais a palavra vinha óbvia e sensatamente acentuada.

         O que veio antes: o ovo, ou a galinha? A discussão começa no bar, passa pela ciência e se perde nos etéreos céus da filosofia. Mas ninguém tem dúvida de que a fala antecedeu a escrita. O próprio Deus, segundo as escrituras cristãs, vocalizou para criar o Universo. (O escriba considera que “Universo”, como ‘o topônimo dos topônimos’, ‘o rei dos topônimos’, deva ser grafado com inicial maiúscula.) “No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo.” Deus simplesmente disse: “Faça-se luz.” Ele não publicou um decreto dando conta da criação do Universo.

         Se a fala veio antes, tudo o que a escrita deveria pretender seria emular a fala da melhor forma possível. A missão da escrita é traduzir graficamente o discurso que nasceu oral, feito de ondas sonoras a viajar pelo ar.

         Assim, quando os gramáticos, em seu afã reformador,  resolveram banir os acentos diferenciais de timbre, eles criaram, na escrita, um problema que não existia na comunicação oral. É claro que nem todos os acentos diferenciais são indispensáveis: o timbre pode ser facilmente depreendido pelo contexto (embora um estrangeiro ou criança possam ficar confusos); mas em alguns casos, o acento faz falta. Por exemplo: “A sede do poder é a causa de nossos problemas.” E agora? estou me referindo a sede (timbre aberto), no sentido institucional de local (o Palácio do Planalto, no caso brasileiro), ou estou falando de sede (timbre fechado), no sentido metafórico de ânsia, ambição? Sede ou sêde?

         O fim dos acentos diferenciais de timbre representou um grave prejuízo para a comunicação escrita. Exagero? (E agora? Eu usei o substantivo “exagêro”, ou o verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo? Uma análise psico-lingüística poderia mostrar que há diferença.) 

         O leitor atento observou que o escriba, no parágrafo acima, violou, desta feita, o Acordo Ortográfico que passou a ter valor de lei em 2016 – embora já vigorasse desde 2009 e tivesse sido assinado, salvo engano, no remoto ano de 1990. O correto seria ter escrito “psicolinguística”, sem hífen nem trema.

         Bem, o escriba tem também suas implicâncias com a última Reforma Ortográfica. Aliás, com a ortografia, de modo geral. Aliás, com a gramática.

E agora assumindo a primeira pessoa: não sou, de modo algum, adepto da anarquia gramatical. A gramática é um excelente instrumento a serviço da comunicação: ela nos ajuda a falar, a escrever, a interpretar textos. A linguagem precisa, sim, ser sistematizada. E isso vale sobretudo para o discurso escrito, a que faltam os recursos da fala – como expressões faciais, entonações, gestos, etc. Se o discurso escrito não for muito bem estruturado, dará margem a ambigüidades (com trema!) e passagens incompreensíveis, falhando assim no objetivo precípuo da linguagem, que é comunicar. No entanto...

Vamos ver alguns casos de incongruências ou bobagens gramaticais.

A última Reforma Ortográfica, se teve o bom senso de resgatar o acento de ‘fôrma’ (em caráter opcional – os gramáticos não dariam totalmente o braço a torcer...), por outro lado criou um monte de dificuldades desnecessárias. O caso do hífen deu até livro: “A infernização do hífen”, de José Carlos Gentili – um livro que, pelo que nos informa o Google, tem 616 páginas... Abaixo, comentários sobre a “infernização”.

Muitos foram os pintores, ao longo da História, que fizeram auto-retratos; mas, depois da última Reforma Ortográfica, eles passaram a fazer autorretratos. Isso representou uma mudança que afetará o próprio rumo da Arte.

A ortografia (e creio que este caso nem é culpa da última Reforma) estabelece que, nas palavras compostas em que entram nomes próprios, sejam esses nomes grafados com inicial maiúscula caso tenha permanecido a referência às celebridades mencionadas; caso essa noção se tenha perdido com o tempo, os nomes virão com iniciais minúsculas. Significa isso que o pobre usuário tem de ter uma ampla cultura geral, conhecer História, estar sintonizado com a egrégora da Língua, de modo a evitar cometer pecado ortográfico. Não seria melhor estabelecer que os nomes próprios nas palavras compostas serão sempre grafados da mesma forma – seja com iniciais minúsculas, ou maiúsculas?

Mas tem mais “infernização”: a formação das palavras ‘paraquedas’ e ‘para-lamas’ é exatamente a mesma; e não incidem sobre elas diferentes regras de “infernização”. No entanto, como notou o leitor, uma tem hífen, e a outra, não.

Muitos outros exemplos poderiam ilustrar a confusão e incongruência que regem o emprego do hífen na Língua Portuguesa; mas o escriba não pretende escrever um livro de 600 páginas sobre o assunto...

(Façamos um parêntese, porque certamente há patrulheiros gramaticais incomodados com algumas coisas. Porque eles não sabem, por exemplo, que o escriba reivindica, para si e todos os usuários da Língua, liberdade estilística no uso de iniciais maiúsculas, no emprego de sinais de pontuação, no manejo do próprio hífen, – que vinha sendo o nosso assunto – e em muitas outras situações lingüisticas.

Mas os patrulheiros estarão particularmente incomodados porque o escriba usou mais acima, para escândalo de Dona Norma Culta, o verbo ‘ter’ no sentido de ‘haver’, ‘existir’. Bem, em 1928 Drummond escreveu que “tinha uma pedra no meio do caminho”. Faz quase um século que o poeta assumiu literariamente um aspecto da linguagem popular mais que consagrado pelo uso. No entanto, até hoje essa pedra gramatical não foi removida do caminho do usuário da Língua Portuguesa.

E, para mostrar que o escriba de fato reivindica liberdade estilística, ele encerra aqui um parêntese que se estendeu por três parágrafos.)

Como foi dito, o escriba tem muitas implicâncias com a ortografia. Ele é capaz de se lembrar de algumas.

Vejamos a questão dos ‘porques’, que são grafados de quatro formas: ‘por que’, por quê’, ‘porque’ e ‘porquê’. (O escriba se recusa a acentuar “porques”, por motivos que serão explicitados na seqüência – com trema).

A  ortografia exige, em nosso entendimento de maneira correta, que os oxítonos terminados em ‘e’ sejam acentuados: ‘café’, ‘purê’. Bem. Qualquer ‘porque’, seja conjunção, seja substantivo, é um oxítono terminado em ‘e’. Além do mais, em certas situações do discurso, a sílaba final do ‘porque’ é absurdamente tônica. Imaginemos a sequinte construção: “Isso porque, na raiz de todo problema, está a ignorância humana.” Esse ‘porque’ é uma conjunção; e, embora o ‘que’ seja claramente tônico, a gramática estabeleceu que o circunflexo no ‘porque’ (com termos unidos) é característica identificadora do substantivo. Nesse caso, se nem sempre é possível assinalar graficamente a tonicidade (e se a regra de acentuação de oxítonos já foi a priori violada), por que perpetuar essa confusão, por que insistir no barroco ‘por quê’, cujo abstruso emprego demanda do usuário até o conhecimento de análise sintática?

O próprio professor Bechara disse uma vez que os ‘porques’ poderiam ser reduzidos a apenas duas grafias. Como a entrevista era na TV, ele, por falta de tempo ou oportunidade, não deu os exemplos. Mas acreditamos que seriam: ‘por que’ e ‘porque’; nenhum com acento.

Qual é o porque de tanta confusão? Será porque os gramáticos gostam de inventar hermetismos que só eles sejam capazes de desvelar? Por que não simplificar o uso dos porques? Por que?

(E acaso sentiu o leitor falta de acentos nessa porqueria toda acima?)

Na mesma entrevista, aliás, Bechara falou que a questão do hífen poderia ter sido simplificada na última Reforma...

O escriba quer chamar o leitor a atentar para aquilo que vem tentando demonstrar: enquanto a gramática faz bobagens como eliminar os acentos diferenciais de timbre e o trema (que fazem falta),  por outro lado se esmera em criar complicações desnecessárias, como nos casos do hífen e dos ‘porques’ – apenas para citar dois exemplos. O escriba insiste na tese inicial: a função da escrita é reproduzir graficamente a fala. (Nem vou – descendo mais uma vez do alter ego literário e assumindo a 1ª pessoa – discutir que a escrita é um universo especial, praticamente autônomo, que é muito mais que simples tradução gráfica da fala, etc. e tal; poucos respeitam e amam a escrita tanto quanto eu.) O que é importante frisar é que a gramática cria obstáculos à comunicação, resultando em que a escrita falhe, como não custa repetir, na sua função primordial.

(E aqui abro parêntese para não deixar passar um assunto: muitos consideram que a linguagem verbal é a própria matéria-prima de que é feito o pensamento. Sem palavras não haveria pensamento. Bem, eu poderia discutir educadamente a questão, citar filósofos e sábios de todos os lugares e eras; mas vou me permitir incorporar o espírito da Emília, de Monteiro Lobato, e disparar à queima-roupa: essa ideia de que não existe pensamento sem palavras é uma grande besteira.)

Sejamos ainda mais claros: os acentos diferenciais de timbre, que serviam por exemplo para diferenciar ‘fôrma’ de ‘forma’, foram banidos em 1971; e a reforma que passou a valer em 2016, cometeu a iniqüidade de acabar com o trema – além de criar uma série de hermetismos quanto ao hífen. Acentos e trema serviam para que o som das palavras fosse transportado corretamente para o universo gráfico. Afinal, a escrita tem de reproduzir a fala. Mas – pergunto – para que serve o hífen?

Na comunicação oral, ninguém pensa se uma palavra tem ou não tem hífen. E todo mundo se entende.

Assim, o escriba volta a insistir: que o usuário da Língua tenha liberdade estilística para usar ou não usar hífen – lembrando que, se resolver dispensá-lo, terá de estar atento às regras relativas à reconstrução das palavras. Ou seja: é mais simples e seguro fazer a hifenização à antiga, que apenas emenda as palavras, mantendo sua forma original. (Sim, o escriba sabe que muitas palavras monolíticas resultaram da fusão – ou aglutinação, na terminologia gramatical – de elementos de palavras originalmente compostas; ‘extraordinário’, por exemplo. Mas não foi uma confraria de gramáticos que determinou a fusão; ela ocorreu naturalmente, por conta das leis que regem o desenvolvimento da Língua.)

Mas dizia o escriba que sua bronca não é apenas com a ortografia. Ele já deixou isso explícito ao denunciar o anacronismo inacreditável da impossibilidade, segundo Dona Norma Culta, do emprego do verbo ‘ter’ no sentido de ‘haver’. Mas tem  mais.

Por exemplo: a briga sujeito indeterminado X voz passiva sintética. “Vende-se casas” (sujeito indeterminado), ou “Vendem-se casas” (voz passiva sintética)? E por que não deixar que o usuário da Língua decida?

Outra coisa que faz Dona Norma Culta passar mal é começo de frase com pronome oblíquo átono: “Me dá um doce”, “Te faço um favor”. Muitos professores consideram que esse tipo de pronome só se mantém átono lá nas origens lusitanas; no Brasil tropical, dos espaços infinitos, o pronome cresceu, engordou, ganhou tonicidade.

Uma outra complicação gramatical muito corriqueira é o emprego de onde aonde. O escriba já ouviu que ‘aonde’ deve ser usado com relação a verbos que indicam movimento, qualquer coisa assim. Mas (desembarcando do alter ego), eu considero que é tudo uma questão de regência, não de semântica. Ousaria até sugerir que a forma ‘aonde’ fosse simplesmente banida da Língua Portuguesa. (O escriba já fez isso em seus próprios textos.) Assim, seria possível resolver o famoso conflito sintático da canção de Milton Nascimento: “Todo artista tem de ir a onde o povo está.

É claro que o escriba poderia listar muitas outras implicâncias. Porque os gramáticos não fogem à tendência, comum a pensadores e estudiosos de todas as épocas, de encontrar a sistematização absoluta.

O jurista Eugênio de Aragão, quando em 2017 analisava as fraudes judiciais cometidas na Operação Lava a Jato (e que já haviam ocorrido no ‘Mensalão’), citou o pensador austríaco Paul Feyrabend, segundo o qual muitos cientistas, no afã de dar sustentação às suas hipóteses, criavam narrativas falaciosas, eventualmente até recheadas de dados suspeitos.

O escritor e filósofo Aldous Huxley dizia que muitos intelectuais, das mais diversas disciplinas, são freqüentemente vítimas do que ele chamava “vontade de ordem”, ou seja: a necessidade ou pretensão de fechar uma ideia; ou organizar, sistematizar, normatizar pelo menos o seu setor específico de conhecimento. Alguns pensadores tentam até mesmo elaborar uma organização absoluta. O próprio Einstein morreu sem ter conseguido elaborar a sonhada “Teoria de Tudo”, ou “Teoria da Grande Unificação”.

No Brasil houve um homem, por muitos considerado um gênio, que pacientemente criou complexos trabalhos artísticos, com os quais ele tentava mapear, decifrar, sistematizar o próprio Universo. O observador atento percebe claramente essa intenção no artista; mas ele a confessa textualmente, em inscrição num de seus elaborados painéis. Seu nome era Arthur Bispo do Rosário. O leitor saberá compreender as pretensões universalistas do artista se considerar que ele era um comprometido paciente psiquiátrico.

E que podemos falar da obsessão sistematizadora dos gramáticos? Seria injustiça insinuar que eles insistem na perpetuação de herméticas regras (quando não inventam novas, como ocorreu com a polêmica última Reforma Ortográfica), apenas para que possam continuar exercendo seu poder? Será que temem tornar-se supérfluos caso as regras sejam simplificadas? Pois eu digo que os gramáticos teriam muito com que se ocupar se deixassem de lado filigranas desprezíveis que só servem pra atormentar o usuário da Língua.

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