quinta-feira, 21 de abril de 2022

A travessia

 




Nelson M. Mendes

O engenheiro civil Eduardo Moreira, que trocou uma carreira de sucesso no mercado financeiro pela participação ativa em causas sociais, diz, no livro “Travessia”, que

somos criados dentro de um sistema que promete respostas para todas as questões importantes da vida. É como se a vida tivesse um “gabarito”, e fôssemos treinados a todo instante para decorar as respostas. [...] Curiosamente, as respostas do “gabarito” costumam beneficiar sempre o mesmo grupo de pessoas e instituições.” [...] O fato é que [...] teses, ideias e teorias [...] são apenas criações de nossa mente. [...] Enquanto funcionam [...] ganham o status de “verdade”. Entram para o “gabarito”. Até que um dia a realidade muda [...] e aí as teorias perdem seu status muitas vezes até então de dogmas. Acontece com modelos econômicos, mas pode acontecer também com modelos matemáticos.

        Eduardo diz que, enquanto operou no mercado financeiro, decorou todas as respostas do “gabarito”:

Sou capaz de escrever uma dezena de livros que deixariam antigos sócios e professores cheios de orgulho. Livros que “provariam” como as tais respostas do gabarito são capazes de fazer do mundo um lugar mais justo e melhor, e que só não fizeram ainda porque as pessoas não estão indo bem na prova. Elas devem tirar notas mais altas! Dar mais liberdade ao mercado, prender e matar mais criminosos, criar ambientes mais competitivos, etc.

Diz Eduardo Moreira que seus antigos amigos apenas questionam: “Como é que esse cara virou comunista?”

É óbvio que Eduardo Moreira não virou “comunista”: ele foi tocado pela compaixão, pela empatia. Ele explica a sua travessia: “Não existe [...] um evento isolado que tenha mudado de maneira definitiva a minha maneira de ver o mundo. [...] Existiram, sim, vários pequenos despertares. Vários momentos em que o que estava diante dos meus olhos desafiava tudo aquilo que eu tinha aprendido até então.” Conta que “esses momentos aconteceram durante minhas viagens pelas regiões mais pobres do país [...]” Leonardo Boff, no prefácio, faz um paralelo entre a experiência de Eduardo e “aquilo que Jesus chama de metanoia, vale dizer, mudar a mente e o coração”. E lembra que Francisco de Assis, filho de um rico mercador, passou por experiência semelhante: depois de uma crise existencial, abandonou riquezas, festas, e saiu de casa: foi viver com os leprosos.

É óbvio que Eduardo Moreira não viveu a metanoia, no estrito e transcendente sentido; é óbvio que ele não é nem pretende ser um novo Francisco de Assis. Mas a comparação feita por Boff é pertinente. Experimentando presencialmente o sofrimento do povo, convivendo com os excluídos, Eduardo foi levado, pelos ventos do coração, a abandonar todas as certezas dos tempos de banqueiro.

Para toda a comunidade do “andar de cima”, como diz Elio Gaspari, e para todos os pensadores neoliberais, Eduardo Moreira só pode ter sofrido uma regressão mental, ou enlouquecido.

Assim certamente pensaria um comentarista econômico que tinha inserções diárias no rádio, sobre o qual escrevi em 2018 no Facebook:

O cara é economista. Representa uma operadora do mercado financeiro. Pretende ser a voz da verdade, da lógica e do bom senso. (O resto é ignorância e “ideologia”.) Vozes semelhantes juraram que estava tudo bem às vésperas da crise de 2008, e com criminosa irresponsabilidade em 1929. O cara tem voz grave, de baixo ou barítono, o que confere caráter ainda mais professoral e “científico” ao que diz. Mas há também na sua fala uma preguiça, uma sonolência, como se ele achasse um tédio ter de explicar o óbvio para a massa de aborígines ignorantes.

No texto “A metástase terminal e o pequeno-fascista”, é desmascarado o Neoliberalismo, uma construção falaciosa desde a origem, e demonstrada sua associação com o Fascismo:

Na verdade, o Neoliberalismo cresceu na estufa do Fascismo. O Grande Capital via no Fascismo uma proteção contra o “comunismo” (um sistema que jamais existiu de fato no mundo, conforme você aprendeu no link acima). Por isso, grandes corporações e bancos financiaram o nazifascismo. O ícone liberal Friedich Hayek apoiou explicitamente Hitler; e seu par Ludwig von Mises não só foi conselheiro do governo fascista de Engelbert Dolfuss, na Áustria, como disse que o nazifascismo “salvou a civilização europeia”.

Mussolini tinha neoliberais de carteirinha no seu ministério. “Queremos retirar do Estado todos os seus poderes econômicos. Basta de ferroviários estatais, carteiros estatais, seguradores estatais. Basta deste Estado mantido à custa dos contribuintes e pondo em risco as exauridas finanças do Estado italiano.” Quem disse isso foi o próprio Mussolini, em discurso de 1922. Foi Mussolini que “inventou” as privatizações!

          De fato, o Neoliberalismo foi um remendo que os grandes teóricos liberais, como Mises, Hayek e Friedman, num encontro em Paris, em 1938, fizeram no velho Liberalismo, que provocara a catástrofe de 1929. O Neoliberalismo, como gosto de dizer, é uma doutrina de proveta, elaborada em caráter emergencial, para dar sobrevida ao Capitalismo. E, como vimos, foi primeiramente aplicada na Itália de Mussolini; em seguida, o experimento seria feito na ditadura sanguinária de Pinochet – que contou, aliás, com a colaboração do nosso Paulo Maria Antonieta Guedes...

          Eduardo Moreira foi educado dentro da mais pura tradição do Neoliberalismo: aprendeu todas as “respostas certas”. Alguns anos atrás, seria capaz de fazer comentários econômicos tão científicos e categóricos quanto o comentarista com voz de barítono. Mas ele finalmente viu que a terrível realidade de seu país e do mundo não cabia naqueles modelos artificiais. (Assim como a verdade não cabia nas fraudes judiciais do “Mensalão”, do impeachment da presidente Dilma, da condenação de Lula. Maiores detalhes no texto “‘O caso Veja’ e o ocaso da mentira”.)

            Parêntese necessário: a doutrina neoliberal e as fraudes judiciais, engendradas contra forças populares, têm o mesmo objetivo: manter o satatus quo, perpetuar a hedionda, obscena desigualdade no Brasil e no mundo. Em 2017 escrevemos no texto "O lawfare que fere Lula":

O Delegado José Castilho, que foi boicotado na investigação do Escândalo Banestado ao chegar perto da cúpula do governo FHC e do poder econômico, declarou: “Me é difícil conciliar o sono à noite, só de pensar nas crianças abandonadas. Por trás de tudo isso está a corrupção.” Inocência do delegado. A corrupção não é o grande problema. O principal problema brasileiro é a desigualdade. Para mantê-la, os poderosos iludem as massas, inclusive com a quimera da corrupção. Prestidigitação é isso. Enquanto o mágico chama a atenção do público para detalhes sem importância, um elefante se materializa no fundo do palco.

          Antes que um oportunista da retórica levante a questão, quero dizer que não considero corrupção uma coisa irrelevante. No atual governo Bolsonaro ela é escancarada: são compras gigantescas e superfaturadas de picanha, salmão, cerveja, uísque, leite condensado, viagra... Até na compra de vacina para Covid-19 o governo tentou faturar uma gorda propina. Mas o Boçal Fascista está blindado por Augusto Aras, Procurador Geral da República, e por Arthur Lira, maestro do “Centrão”, grupo político interessado apenas nas generosas verbas que jorram através do famigerado “orçamento secreto”, artifício que Bolsonaro criou para tentar se equilibrar no poder.

          Mas também a chamada “grande mídia” tem papel importante na blindagem do governo Bolsonaro. Afinal, a mídia corporativa é a voz do Grande Capital Transnacional; e o Boçal Fascista é exatamente o fantoche eleito para defender os interesses desse Capital. Claro que, quando a imundície é muita, alguma coisa vaza e a mídia não pode deixar de publicar. Até porque a corrupção pode até servir de cortina de fumaça para que não se perceba que o governo está “passando a boiada” de medidas altamente lesivas ao povo brasileiro.

          De fato, como escrevi certa vez nas redes sociais, “corrupção é varejo; pior é o que eles fazem no atacado”. O saudoso jornalista Pedro Porfírio, em artigo de 2011, mostrou-se surpreso ao encontrar no Monitor Mercantil, uma publicação alinhada com o mítico “mercado”, um texto de que ele extraiu a seguinte passagem:

Depois de estudar 23 países, Raymond Baker, diretor de um think tank de Washington, elevou (as perdas com as fraudes) a US$ 2 trilhões, e conclui que 3% do total podem ser atribuídos à corrupção política, um terço ao crime organizado e entre 60% e 65% a manobras ilícitas de pessoas físicas e grandes empresas. Traduzindo: os ricos evadem o dobro do dinheiro que os políticos e o crime organizado juntos.

          No Brasil, temos ainda o astronômico roubo legalizado, que é o comprometimento de metade do Orçamento Federal com a famigerada “Dívida Pública”. Ou seja: metade do dinheiro é destinado a engordar banqueiro. Aliás, a tal taxa Selic de juros costuma subir a pretexto de combater a inflação – uma falácia tão ridícula e inconsistente que até este modesto escriba, que não é economista, poderia desmontá-la facilmente. Na verdade, o objetivo é proporcionar maiores rendimentos aos que detêm títulos da “dívida” – que jamais foi auditada. 






            (Foi aliás por tentar trazer os juros a patamares mais decentes, além de anunciar a intenção de uso social de parte dos recursos do pré-sal, bem como por não fazer acordos com a enorme banda podre do Congresso, que Dilma sofreu impeachment sem que houvesse o tal “crime de responsabilidade”. As tais questionáveis “pedaladas fiscais” foram pretexto bisonho para o golpe.)

De qualquer modo, o destaque dado à corrupção dos chamados governos de direita, como o de Bolsonaro e o de FHC, nem se compara à perseguição promovida pelos veículos de comunicação ao PT e particularmente a Lula. Isso já foi tema de trabalhos acadêmicos (eu mesmo li dissertação de mestrado focalizando os ataques da revista Veja a Lula desde os anos 80), e amplamente demonstrado pelo respeitado Instituto de Pesquisas “Manchetômetro”, sediado na UERJ, que faz a análise da quantidade e qualidade das notícias relacionadas a determinados personagens. O escritor Fernando Morais, no 1º volume da biografia de Lula, dedica 14 páginas a reproduzir alguns desses números, levantados pelo “Manchetômetro”, que mostram de forma irrefutável a verdadeira caçada realizada a Lula pelos grandes jornais, revistas, redes de TV.

          O professor Igo Fuser, da Universidade Federal do ABC (UFABC), deu depoimento ao Diário Liberdade em 2015, quando a Rede Globo completava 50 anos. Transcrevemos, editado, seu comentário, que poderá ser lido na íntegra neste link: 

A Rede Globo é o aparelho ideológico mais eficiente que as classes dominantes já construíram no Brasil desde o início do século XX. Esteve ao lado de todos os governos de direita, desde o regime militar – no qual se transformou no gigante que é hoje – até Fernando Henrique. Mais tarde, após o fim da ditadura, alinhou-se no apoio à implantação do Neoliberalismo, apresentado como a única forma possível de organizar a economia e a sociedade.

No plano cultural, a Rede Globo opera como o principal agente da imbecilização da sociedade brasileira. Começando pelas novelas, seguindo pelos reality shows, pelos programas de auditório, o papel da Globo é sempre o de anestesiar as consciências, bloquear qualquer tipo de reflexão crítica.

O jornalismo da Globo contraria os padrões básicos da ética, ao negar o direito ao contraditório. Só a versão ou ponto de vista do interesse da empresa é veiculado. Ocorre, nos programas jornalísticos da Globo, a manipulação constante dos fatos.

No plano da política, a Rede Globo tem adotado perante os governos petistas uma conduta de sabotagem permanente, omitindo todos os fatos que possam apresentar uma visão positiva da administração federal, ao mesmo tempo em que as notícias de corrupção são apresentadas, muitas vezes sem a sustentação em provas e evidências, de forma escandalosa, em uma postura de constante denuncismo.

A Globo pratica o monopólio dos meios de comunicação, ao controlar simultaneamente as principais emissoras de TV e rádio em todos os Estados Brasileiros, juntamente com uma rede de jornais, revistas, emissoras de TV a cabo e portais na Internet.

Uma verdadeira democratização das comunicações no Brasil passa, necessariamente, pela adoção de medidas contra a Rede Globo, para que o monopólio seja desmontado e que a sua programação tenha de se submeter a critérios pautados pela ética jornalística, pelo respeito aos direitos humanos e pelo interesse público.

          É claro que a Globo não está sozinha nesse trabalho de “anestesiar as consciências”; ou de imbecilizar o povo, como diz também o sociólogo Jessé Souza. Toda a “grande mídia”, como vimos, está empenhada nesse trabalho. Mas sem dúvida a Globo é a grande produtora de tergiversações, falácias e mentiras descaradas.




          O famoso processo do “Triplex do Guarujá”, por exemplo, começou a partir de uma ficção engendrada pelo jornal O Globo. Rapidamente Moro, em associação criminosa com os procuradores de Curitiba, tratou de dar uma artificial materialidade jurídica à farsa. O objetivo, tanto da mídia quanto de um MP viciado, era claro: destruir Lula politicamente, impedi-lo de concorrer à eleição de 2018. O objetivo foi alcançado: Lula ficou ilegalmente preso por 580 dias em Curitiba, em razão de um processo que já nascera torto, ilegal; porque o suposto crime teria sido cometido em São Paulo, e um juizeco paranaense jamais poderia se ocupar do caso.

          Mas estava tudo articulado. Inclusive com o TRF4, que teria de referendar a sentença de Moro. Os três ministros confirmaram por unanimidade a condenação, e ainda acrescentaram mais alguns anos à pena, para garantir que Lula não poderia recorrer e talvez ter possibilidade de se candidatar. E tudo em tempo recorde. Emir Sader escreveu na época: “O revisor do processo do Lula leu 250 mil páginas em 6 dias. Isto é, ele leu 2 mil páginas por hora, sem dormir, durante 6 dias.”

          Era preciso agir rápido, para impedir que Lula viesse a se tornar novamente presidente do Brasil.

          Muitas pessoas, inclusive advogados, sugeriram que Lula, diante da injustiça inquisitorial perpetrada contra ele, não se deixasse prender: que pedisse abrigo numa embaixada. Não faltariam países dispostos a acolher o ex-presidente, já que o lawfare (perseguição política com uso distorcido de instrumentos jurídicos) era evidente e já reconhecido no mundo todo (à exceção dos EUA, onde na verdade teve origem o movimento que resultou na Lava a Jato). Mas Lula decidiu aceitar a cadeia, para “provar que Moro é mentiroso”. E anunciou: “A verdade vencerá.”

          A verdade está vencendo.

          Em março de 2022, Lewandowsky, ministro do STF, suspendeu o último dos 24 processos que tinham sido forjados contra Lula: o que o acusava de irregularidades na compra dos aviões de caça suecos (negociação que começara com FHC e só seria concluída por Dilma). A defesa havia pedido que a 10ª Vara Federal Criminal Federal declarasse a suspeição dos procuradores Frederico de Carvalho Paiva e Herbert Reis Mesquita. Ricardo Lewandowsky destacou, na sua decisão, que os procuradores, conforme conversas captadas pelo hacker Walter Delgatti Neto (material periciado e considerado juridicamente válido), “jamais deixaram de reconhecer a fragilidade das imputações que pretendiam assacar contra o reclamante” [Lula]. Num grupo do Instagram, composto por Frederico Paiva, Herbert Mesquita e muitos membros da “Operação Lava a Jato”, de Curitiba, tanto Paiva quanto Mesquita admitiram que as acusações a Lula não tinham consistência.

          Lewandowsky lembrou ainda que os procuradores Paiva e Mesquita, do Distrito Federal, não poderiam ter contado com a colaboração dos procuradores de Curitiba, por princípio juridicamente incompetentes para investigar Lula, que teria cometido crime em Brasília.

          Mas estavam todos irmanados no desejo de destruir Lula.

          Prossegue Lewandowsky:

Não bastasse isso, é possível verificar, ainda, neste exame preliminar dos autos, que os integrantes da “Lava a Jato” de Curitiba não apenas idealizaram, desde os primórdios, a acusação contra o reclamante objeto da presente contestação – possivelmente movidos pelos mesmos interesses heterodoxos apurados em outras ações que tramitaram no Supremo Tribunal Federal – como também, pasme-se, revisaram a minuta elaborada pelos procuradores do Distrito Federal.

Não é possível ignorar, pois, que os Procuradores da República responsáveis pela denúncia  referente à compra dos caças suecos agiam de forma concertada com os integrantes da “Lava a Jato” de Curitiba, por meio do aplicativo Telegram, para urdirem, ao que tudo indica, de forma artificiosa, a acusação contra o reclamante, valendo lembrar que investigações do mesmo jaez, relativas aos casos “Triplex do Guarujá” e “Sítio de Atibaia”, foram consideradas inaproveitáveis pelo Supremo Tribunal Federal, por afronta, dentre outros, aos princípios  constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

          Lewandowsky fez ainda referência, ao acatar a tese de suspeição de Paiva e Mesquita, à “franca antipatia e, em consequência, manifesta parcialidade em relação à pessoa do reclamante”.

          A defesa de Lula declarou que

a robusta decisão do ministro Ricardo Lewandosky acolheu os elementos que apresentamos e reconhece que a ação penal referente ao “Caso Caças Gripen” fazia parte do “Plano Lula”, que foi engendrado por integrantes da extinta “Lava a Jato” para cassar arbitrariamente os direitos políticos do ex-presidente e para sobrecarregar – e tentar inviabilizar – o trabalho de sua defesa, atuando inclusive em cumplicidade com membros do Ministério Público de outras jurisdições. [...] a decisão é um importante registro histórico sobre o uso estratégico do direito para fins ilegítimos (lawfare), que foi praticado pela “Operação Lava a Jato”, que atacou o próprio Estado de Direito e feriu a Democracia no país.

          Sobre essa questão do lawfare (perseguição política por meio de fraudes jurídicas) contra Lula, cabe ainda lembrar que o respeitado jurista Afrânio Silva Jardim escreveu um parecer para o Comitê de Direitos humanos da ONU, demonstrando, de forma cristalina, que o Judiciário e o MP estavam perseguindo Lula com objetivos políticos óbvios: neutralizar a mais significativa liderança popular do Brasil. O documento, amplamente recheado de fundamentações técnicas, traz uma frase-síntese: “O lawfare é gritante e acintoso.” O texto integral do professor Silva Jardim não consta mais do site Empório do Direito; mas felizmente preservamos uma edição em nosso blog.

          O caso “Triplex do Guarujá” (o mais conhecido dos processos, e o que resultou na prisão de Lula) motivou 122 profissionais do Direito (advogados, procuradores, defensores públicos, etc.) a escrever o livro, coordenado pela jurista Carol Proner, “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”, em que são demonstradas as ilegalidades cometidas, desde o início, para que Lula fosse condenado de qualquer maneira. Como escrevera o jurista Afrânio Silva Jardim em seu parecer para o Comitê de Direitos Humanos da ONU: “Estou convicto de que o ex-presidente está ‘previamente condenado’. [...] Como se costuma dizer: escolheram o ‘criminoso’ e agora estão procurando o crime...”

          O mesmo caso do triplex seria estudado por Euclides Mance, filósofo e professor de Lógica, no livro “Falácias de Moro – análise lógica da sentença condenatória de Luís Inácio lula da Silva”. No livro, o professor levanta 10 falácias produzidas por Moro para condenar Lula sem qualquer prova. O livro ganhou o reconhecimento público de dezenas de doutores em Filosofia, Matemática, etc.  

Até Reinaldo Azevedo, autodeclarado “liberal” e inimigo tradicional do PT, admitiu que “Moro fez picadinho do devido processo legal”.

 

***

         

          A “Operação Lava a Jato”, hoje não se tem mais dúvida, foi um dos muitos instrumentos que os Estados Unidos usam para fazer valer seus interesses imperialistas. Convinha aos EUA neutralizar, no Brasil, políticos progressitas e nacionalistas: a ideia era se apropriar do pré-sal, desindustrializar o Brasil e derrubar as empresas de engenharia brasileiras que estavam se assanhando demais e ganhando concorrências, contra empresas estadunidenses, para obras em vários países. O golpe contra Dilma foi basicamente pra evitar que ela cumprisse o propósito, expresso em lei sancionada em setembro de 2013, de destinar parte dos recursos obtidos com o pré-sal, para a educação e a saúde. Em razão das políticas de lesa-pátria que começaram imediatamente a ser implementadas pelo usurpador Temer (“com o Supremo, com tudo”), nem um só centavo dos 106 bilhões de lucro da Petrobras em 2021 foi para a educação ou para a saúde: 101 bilhões foram destinados a pagar acionistas, muitos deles estrangeiros; e muito pouco foi reservado para reinvestimento na própria empresa, que deveria se fortalecer, tornando-se instrumento mais eficaz a serviço do desenvolvimento socioeconômico do país, o que é a missão básica de uma empresa como a Petrobras. A Lava a Jato tirou do Brasil 172 bilhões em investimentos e produziu 4,4 milhões de desempregados. E abriu caminho para o fantoche diabólico contratado para completar a destruição: Jair Boçal Fascista Bolsonaro. A Rede Globo não fala disso, a Veja não fala, a mídia corporativa em sua totalidade não fala; mas é isso que nossos netos vão ler nos livros de História.

          Nossos netos também vão ler que os EUA, nesse começo de século XXI, desesperados ao perceber que estavam perdendo o posto de primeira potência absoluta e intangível, passaram a usar freneticamente todos os seus recursos políticos e econômicos na vã tentativa de deter a inexorável decadência.

          Essa decadência coincide com a aproximação do fim do sistema capitalista, de que os EUA são, nesse momento do século XXI, o principal representante.

          É nesse contexto que se insere o conflito na Ucrânia.

          Logo no começo do conflito, foram divulgadas imagens de um tanque supostamente russo esmagando um automóvel ucraniano; depois, imagens de mulher saindo de maternidade que teria sido bombardeada pelos russos. Pouco tempo depois, ficamos sabendo que o tanque era ucraniano e o atropelamento, acidental; e que a suposta mãe era uma atriz desempenhando um papel num vídeo de propaganda em frente a um antigo hospital transformado em base militar ucraniana. Mais tarde haveria uma chacina na cidade de Bucha; os russos pediram uma reunião da ONU para apresentarem provas de que não tinham qualquer participação no caso, mas alguns membros da OTAN se opuseram à ideia da reunião. Por quê?

          O depoimento de Natascha Janssen, atualmente residindo na Holanda, merece ser reproduzido:

Com minhas raízes russas/ucranianas, amo muito as duas nações – centenárias, irmãs. Acho bom que todos na Holanda estejam agora se manifestando contra a guerra. [...] Mas por que todos ficaram em silêncio quando esse conflito começou há 8 anos? Por que não questionaram a Ucrânia por não seguir os acordos estabelecidos em Minsk? Por que ignoram a tragédia [...] em Odessa? Não se preocuparam [...] que um governo legitimamente eleito fosse derrubado em 2014 e um grande país na fronteira com a Europa estivesse infestado de grupelhos neonazistas agindo livremente? Onde estavam quando o regime ucraniano retirou dos cidadãos de etnia russa os seus direitos fundamentais? [...] E, finalmente, por que ficaram calados quando grandes partes desse belo país [...] acabaram vendidas a bancos e investidores estrangeiros por preço vil [...] ? [...] A Ucrânia foi transformada em quintal do Ocidente, colônia. [...] centenas de milhares de ucranianos já fugiram para a Rússia (incluindo meus entes queridos [...] Há manipulação global sobre o que está acontecendo de fato. [...] Os EUA  não querem a Europa estreitando laços com os russos. Perderiam influência e controle sobre os europeus. [...] os EUA têm dívidas no mundo todo, viveram muito tempo de crédito, apenas impondo seus dólares [...] Atualmente o dólar está perdendo espaço no mundo. [...] Putin está certo em exigir pagamento pela venda de produções russas em rublos. [...] Ele quer que a riqueza produzida na Rússia permaneça na Rússia, incluindo os benefícios financeiros... [...] TODOS poderíamos viver em um mundo muito mais digno.

          Observação: um mundo bem mais digno poderá surgir com o fim do Capitalismo – cujo declínio, como vimos, coincide com a aproximação do fim da primazia dos Estados Unidos no cenário mundial. Brian Mier, jornalista estadunidense radicado no Brasil e profundo conhecedor de assuntos internacionais, disse que a melhor coisa que poderá acontecer ao mundo será o fim do imperialismo exercido por seu país natal.

          Um interessante texto do sociólogo Lúcio Carril circulou pelas redes sociais:

A Globo diz por quem você deve chorar. Como não te mandou chorar pelos 500 mil mortos na Síria, você não chorou. Você também não chorou pelos mortos do Iraque, da Líbia, da Iugoslávia, da Somália. Você só chora por quem te mandam chorar. A CNN mandou você chorar pelos refugiados da ucrânia. [...] Mas a CNN não mandou você chorar pelos 6 milhões de refugiados da Síria. Nem pelos 2,7 milhões da Iugoslávia. A Band mandou você chorar pelas crianças presas na Rússia. [...] Mas a Band não mandou você chorar pelas mais de 100 crianças mortas nas repúblicas de Donetsk e Lugansk, vítimas dos bombardeios de drones mandados por Zelensky. [...] Se quer soltar o choro, chore por todos os mortos pelo imperialismo no mundo. Chore pelos 250 mil mortos de Hiroshima e Nagazaki. Chore pelo povo queimado com napalm no Vietnã [...] pelas mulheres estupradas pelo exército americano no Afeganistão [...] pelas mulheres, homoafetivos e negros mortos no Brasil. [...] Quem diz hoje por quem você deve chorar, está por trás de todas as maldades cometidas neste mundo. Aquelas maldades que poderiam te fazer explodir de indignação, mas não te contam. Só falam para você aquilo que querem que te faça chorar. [...]

          Maria Julia Temer escreveu no Facebook em 15 de abril de 2022:

Israel profana a mesquita AlAqsa durante Ramadã. E fere centenas de palestinos durante a Semana Santa. Atenção aos que choram lágrimas midiáticas pela Ucrânia: o genocídio dos palestinos e a usurpação de seus bens materiais já se estendem há mais de 70 anos. Quem chora pelos palestinos? Foi ali que Jesus foi denunciado pelos rabinos e condenado por Pôncio Pilatos. Alguém imaginaria um ataque similar a uma sinagoga? O mundo viria abaixo em protesto, os jornais gastariam oceanos de tinta e montanhas de papel, a internet não teria pixels suficientes para espalhar o clamor pelos céus do planeta. Ah... mas são os palestinos de sempre... quem se importa? Nem mesmo na semana das mais sagradas liturgias cristãs e muçulmanas, são os palestinos poupados de massacre e martírio pelos israelenses, justo no lugar que a ironia denomina “Terra Santa”.

O jornalista Breno Altman entrevistou Lola Melnyck, que nasceu na cidade de Odessa na época em que a Ucrânia fazia parte da União Soviética. Morando em São Paulo desde 2009, ela disse, em Português fluente, que tudo começou com o golpe de 2014 contra Viktor Yanukovych:

As pessoas que não reconheceram o golpe e, depois, a eleição de Volodmyr Zelensky, eram das regiões que se identificavam com a Rússia, como Lugansk e Donetsk. [...] são ucranianas, não negam o idioma ucraniano, mas historicamente falam mais russo e não querem deixar de falar russo. Essas pessoas começaram a ser exterminadas porque Kiev queria acabar com qualquer coisa que remetesse à Rússia.

Lola Melnyck explicou que a perseguição ficava a cargo de grupos neonazistas, como o famigerado Batalhão Azov. E lembrou as dezenas de pessoas que morreram no incêndio criminoso na Casa dos Sindicatos em Odessa, sua cidade natal, em 2014. Diz que nenhum carro de bombeiro apareceu, e que as provas do crime “acabaram sumindo”.

Sobre esse episódio, encontramos interessante comentário na página ORIENTE mídia:

Com a clara intenção de diminuir o impacto do acontecimento, entrou em cena a “linguagem do poder”; então, em vez de ficarmos sabendo que 46 pessoas foram cercadas e queimadas vivas, foram usados artifícios como “enfrentamentos deixam 46 mortos”, ou ainda “incêndio causa mortes”, sem entrar em detalhes e ocultando ou camuflando a autoria do incêndio e tomando cuidado especial para não personificar as vítimas.

Quem provocou o incêndio e impediu que as pessoas saíssem do prédio foram os neonazistas que integram o Batalhão Azov. Batalhão que, segundo declarou o próprio Zelensky, em entrevista à Fox News, em 1º de abril de 2022 (e ele não estava mentindo!), está “defendendo nosso país” e foi incorporado ao Estado, é um “componente do Exército ucraniano”.

De fato, o Batalhão Azov foi formado em 2014, depois que o governo ucraniano deu sinal verde para a criação de grupos paramilitares que pudessem reprimir, particularmente em Donetsk e Lugansk, tendências separatistas de comunidades que têm identificações étnicas e linguísticas com a Rússia.

O Ocidente vinha ignorando as denúncias sobre as atrocidades praticadas pelos neonazistas ucranianos. Muitos chegavam a negar a própria existência do Batalhão Azov. Até que, no 1º de abril, o próprio Zelensky admitiu que o Batalhão não só existia, como tinha sido oficializado, incorporado ao Exército.

Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, um senador estadunidense disse uma frase que ficaria célebre: “Na guerra, a primeira vítima é a verdade.” Essa questão da verdade X propaganda é extensamente abordada em nosso texto “A arma do negócio”. Dele extraio a seguinte passagem, no encerramento da minha reflexão:

Quem já percorreu o blog Satyagraha, percebe que há anos eu falo a mesma coisa. Há anos eu me irrito com mídia venal, com os “jornalistas amestrados”, com o judiciário partidário, com as falácias, com as mentiras, com a propaganda explícita ou disfarçada. O sistema capitalista agoniza, e, para sobreviver, aciona a ignorância e o egoísmo do pequeno-fascista, fazendo-o trabalhar contra os próprios interesses.

O presente ensaio pretende ser um “espelho de alta definição” em que, contemplando sua feia e risível imagem, o cidadão possa despertar de seu sono zumbi; e deixar de ser vítima da propaganda, a arma do negócio.

          A verdade – que nossos netos vão ler nos livros de História – é que o conflito não é entre Rússia e Ucrânia: é entre Rússia e OTAN, que é praticamente um braço dos interesses imperialistas estadunidenses. (O comando militar da OTAN é sempre dos EUA.) Como tem sido dito, trata-se de uma “guerra por procuração”; a Ucrânia está sendo usada como bucha de canhão.

          Em nosso texto “A burrice do fim do mundo”, escrevemos: “Quando um organismo entra em falência, ele começa a devorar-se pela periferia, para preservar os órgãos essenciais. Na ordem mundial capitalista, a periferia somos nós, o terceiro mundo.”

          O organismo moribundo, evidentemente, é o Capitalismo; que, conforme dizia recentemente o professor de História e atual vereador pelo Rio de Janeiro, Chico Alencar, já tem 500 anos. (Nós sempre dissemos isto; mas alguns puristas da cronologia poderiam discordar, desejosos de alegar a relativa juventude de um sistema que, em essência, é a oficialização do direito que tem o predador sobre a presa, o mais forte sobre o mais fraco. Repito o que já registrei alhures: os operadores financeiros são estimulados, nos manuais do Neoliberalismo, que é a atual casca doutrinária do Capitalismo, a liberarem seu “instinto animal”, agirem como predadores; e o lema de Wall Street, a Meca mundial do “mercado”, é: “Cobiça é bom.”)

          Estou muito longe de ser especialista. Mas ousaria dizer que na Ucrânia, encravada na fronteira entre Europa e Ásia, trava-se conflito que simboliza, expressa de fato um antagonismo geopolítico e histórico: Ocidente e Capitalismo, de um lado; Oriente e um sistema econômico embrionário, do outro.

Realmente, o conflito marca o surgimento de um mundo multipolar (ou pelo menos bipolar, tripolar...) e a decadência do sistema capitalista. Os historiadores argumentarão que o Império Romano durou 500 anos, e que há mais de um século já se falava no fim do Capitalismo. Bem, os EUA já têm praticamente dois séculos de imperialismo, e no século XX eles intervieram no mundo todo, fosse por meio de pressões econômicas, políticas ou culturais, fosse através de ações militares, mesmo.  Mas a verdade é que os processos históricos têm se acelerado vertiginosamente. Os EUA não durarão tanto quanto Roma; e o sistema capitalista, à custa de muita fraude e muita violência, já completou os 500 anos regulamentares.




O Brasil, naturalmente, não está fora desse quadro de mudanças. O jornalista Leonardo Attuch afirmou que em outubro de 2022 teremos “eleições plebiscitárias”: a escolha será entre Democracia ou Fascismo, Civilização ou Barbárie. O nazifascismo, como se sabe, é a “solução final” (para usarmos a abominável expressão hitlerista) empregada para garantir a sobrevivência de um sistema a priori injusto e desumano. Mas, como gostamos de dizer, nada pode deter o rio da História.

O Brasil e o mundo, portanto, estão fazendo uma travessia.


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Adendo:

 

Ainda hoje muitas pessoas, envenenadas por décadas de propaganda, repetem mecanicamente o bordão “Lula ladrão”. No passado, os “ladrões” eram Getúlio Vargas, João Goulart, Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola. Sempre que as oligarquias querem demolir lideranças populares e nacionalistas, inventam a história de um “mar de lama”. As acusações jamais são comprovadas; mas o que importa é destruir a imagem do político insolente, que ousou pensar no povo, em vez de apenas na elite econômica associada ao poder econômico transnacional.

Eis que, depois do furo do jornalista Jamil Chade, na véspera, o Comitê de Direitos Humanos da ONU divulga oficialmente, em 28 de abril de 2022, ter concluído aquilo que o próprio STF havia reconhecido em 2021: que Lula havia sido vítima de perseguição política através de farsas judiciais. (O nome disso é lawfare.)

Comentando a decisão da ONU, o advogado Cristiano Zanin Martins explicou que, dos 24 processos montados contra Lula, ele foi inocentado em dois ou três; os outros esfarelaram, porque não tinham pé nem cabeça, não tinham consistência jurídica mínima. Mesmo esse modesto escriba, que não é jornalista, já sabia, pelo menos desde 2017, que os processos eram fraudulentos. Foi quando escreveu “O lawfare que fere Lula”, para o que leu mais de 70 textos de juristas, sociólogos, cientistas políticos, historiadores, jornalistas e até economistas. As fraudes jurídicas ficaram evidentes, e explodiram com cheiro pútrido, quando The Intercept passou a divulgar, ainda que a conta-gotas, as conversas indecentes e criminosas, capturadas pelo hacker Walter Delgatti Neto, de Sérgio Moro com Dallagnol e demais envolvidos na trama para condenar Lula e impedir que ele fosse candidato à presidência em 2018.

O historiador Fernando Horta declarou: “Agora não é mais o STF... É o Comitê de Direitos Humanos da ONU que falou ‘juiz ladrão’.” Aliás, depois da decisão da ONU, o tema “juiz ladrão” se tornou um dos mais comentados no Twitter.

No começo de maio de 2022, a revista Time, que nada tem de “comunista” ou sequer “esquerdista”, estampa na capa uma fotografia em que Lula, contra um fundo negro, aparece com a pose de estadista que ajudará seu país a sair da escuridão abissal a que foi levado pelas forças do fascismo e da ignorância. Essa capa é como o eco da notícia, divulgada dias antes, de que a ONU havia considerado ter sido Lula vítima de perseguição judicial com motivação política; e funciona também como endosso do próprio Capital à candidatura de Lula, que é sem dúvida o melhor nome dentre os postulantes à presidência do Brasil.

Na verdade, considerando que do outro lado está a perspectiva de continuidade do governo do Boçal Fascista, Lula representa a única alternativa.