domingo, 13 de novembro de 2022

Contraste endovenoso


 


Nelson M. Mendes

Em 1895, o físico Wilhelm Conrad Roentgen fazia alguns experimentos, quando certos resultados o levaram a uma descoberta inesperada. Relatou sua experiência no artigo “Sobre uma nova espécie de raios”; e, sem estar seguro do que se tratava, denominou-os raios-x, usando a notação matemática x para indicar incógnita, desconhecido. Depois Von Laue demonstraria que os raios tinham a mesma natureza da luz, tendo apenas frequência mais elevada.

Ao projetar os recém-descobertos raios na mão da esposa, que repousava sobre uma chapa fotográfica, Roentgen produziu a primeira radiografia (ou roentgenograma) da História. (A mancha escura é o anel que ela usava.)

 


http://www.imaginologia.com.br/dow/upload%20historia/Roentgen-e-a-Descoberta-dos-Raios-X.pdf

 

Era revolucionária a possibilidade de investigar o interior do corpo sem necessidade de cirurgia exploratória; mas logo se constatou que a superposição dos tecidos, bem como a variação na sua densidade, resultavam amiúde em imagens confusas e pouco nítidas. Por isso, já no ano seguinte começaram as pesquisas sobre contrastes; e em 1897 foi publicado o primeiro artigo sobre o assunto.

Hoje, está totalmente estabelecida a prática da aplicação, sempre que houver necessidade e o paciente não for alérgico, do contraste endovenoso; que é a substância aplicada na veia do paciente para que, num exame como raio-x, tomografia ou ressonância magnética, a imagem apareça com mais nitidez, podendo revelar patologias ainda em fase inicial.

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Quando não há como fazer um exame de imagem, sobretudo com o auxílio do contraste endovenoso, uma enfermidade pode se desenvolver silenciosamente, e só ser detectada quando já comprometeu seriamente o organismo; esse é o caso de muitos tipos de câncer.

Uma enfermidade social também pode avançar silenciosa. No lindo samba  “Vai passar”, Chico Buarque registrou: “Dormia / A nossa pátria mãe tão / Distraída / Sem perceber que era / Subtraída / Em tenebrosas / Transações.” Ele podia estar se referindo a vários períodos da história brasileira – inclusive (e provavelmente) ao da ditadura inaugurada em 1964 e que ainda persistia quando do lançamento da canção (1984). O tema, aí, é o do arbítrio associado à traição dos interesses do povo; mas o próprio povo pode ser tomado de tal patologia ideológica e cultural, que venha até a defender ideias contrárias a seus interesses, como lembrava o saudoso jornalista Fritz Utzeri.

O nazifascismo, no século XX, é um caso típico de contaminação do povo por ideias a priori contrárias a seus interesses. Como é sabido, as massas se deixaram atrair por um discurso que, conforme a metáfora oriental, assemelha-se a mel envenenado: saboroso, porém mortal.

Essa atração pelo veneno – registre-se – só ocorre porque o nazifascismo (incluindo todas as suas versões atualizadas) é expressão adequada daquilo que chamamos de egoísmo basal: assim como pessoas gananciosas se deixam enganar e lesar pelas promessas de estelionatários (vide as famosas “pirâmides”, por exemplo), multidões podem se encantar pelo canto de sereia de líderes que prometem grandes benefícios, ainda que, em contrapartida, amplos setores da sociedade possam ser excluídos. (Nada de novo: o cidadão romano não se importava se seu conforto dependia da exploração de escravos.)

A imagem do lobo seduzindo cordeiros é válida tanto na antiguidade, como hoje. E os balidos do rebanho, em apoio ao pastor lupino, também persistem.

No Brasil, nós tivemos em 1964 a famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”: milhares de pessoas, preocupadas com o “fantasma do comunismo”, saíram às ruas, acenando para o golpe militar que não tardaria. A “ameaça comunista” era uma fantasmagoria engendrada pelos Estados Unidos e rapidamente encampada pelas oligarquias brasileiras, que usaram a mídia para propagá-la. O resultado foi que, como dizia Fritz Utzeri, a classe média (reduto do pequeno-fascista), marchou pedindo aquilo que era contrário aos seus interesses, o golpe militar... O jornalista Sebastião Nery comentaria certa vez que muitas daquelas pessoas “marchadeiras” teriam seus filhos torturados e mortos pelo regime militar.

Em muitos momentos da História, o panorama era muito claro: havia os bárbaros contra os romanos; o nazifascismo contra os Aliados na Segunda Guerra; o Capitalismo contra o “Comunismo” durante os anos de guerra fria; a ditadura plutomilitar (implementada pelos militares, mas instrumentalizada pela plutocracia) brasileira de um lado, e os adeptos da Democracia, de outro. E assim por diante.

Nas últimas décadas, após a dissolução da União Soviética e o fim da guerra fria, ficou um pouco mais difícil separar os campos, identificar os antagonismos. O Neoliberalismo assumiu o controle e o mundo sofreu uma pasteurização, uma homogeneização.

No Brasil, após a bizarra fase de transição democrática representada pelo governo Sarney e até pelo governo Collor/Itamar (caso típico em que o povo, doutrinado, chama de volta seus algozes), tivemos os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Foi a época das dubiedades, das imprecisões: para muitos, FHC era um “sociólogo comunista”; para outros, era “a maior decepção da sua geração” – porque de fato revelou-se um dócil operador do Neoliberalismo. Não era muito fácil identificar o inimigo, saber quem era “comunista”, “fascista”, “de esquerda”, “de direita”. O saudoso Jô Soares, certa vez, se referindo às posturas do PSDB (partido de Fernando Henrique Cardoso), disse que era o partido do “depende”...

De todo modo, finda a ditadura plutomilitar, o país pôde respirar uma atmosfera pelo menos formalmente democrática por alguns anos; e eleger e reeleger governos progressistas (Lula e Dilma). Mas a plutocracia não podia admitir por muito tempo a “boa vida” do povo trabalhador... Por outro lado, o pequeno-fascista de classe média, que sempre foi massa de manobra das oligarquias, se incomodava de ver que o pobre havia melhorado de padrão e podia dividir com ele aeroportos e shoppings... Os jornalistas que trabalham como  “mercenários da plutocracia”, na expressão de Paul Krugman (alguns dos nomes mais conhecidos da grande mídia) passaram a assediar os generais de pijama, a sugerir que alguma coisa fosse feita para interromper o ciclo de governos petistas. Os congressistas do eterno e famigerado “centrão” também se alvoroçavam; porque a gula econômica das elites nacionais e transnacionais vinha sendo contida por governos que pensavam no povo brasileiro. O resultado, como se sabe, seria o golpe contra Dilma, a prisão ilegal de Lula e a eleição, em 2018, do Boçal Fascista.

Eis que Lula, cuja inocência foi finalmente reconhecida pelo STF e até pela ONU, ressurge revigorado e vence o pleito de 2022.  E o que fazem os pequenos-fascistas derrotados? Interditam estradas e fazem bisonhas manifestações em frente aos quartéis, incluindo o Comando Militar do Leste, no Rio de janeiro, pedindo intervenção militar – em muitos casos cínica e eufemisticamente rebatizada de “intervenção federal”. Mais uma vez, é o escravo fazendo o discurso do senhor, da Casa-Grande; ou, como gosta de dizer um amigo, é o suíno clamando pelo abatedouro.

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Mas uma coisa tem que ser dita: agora não há mais dúvidas sobre o perfil do povo brasileiro, bem como das instituições. Todo povo tem seus nichos ideológicos, religiosos, etc. Há “radicais” de todos os matizes, assim como uma grande massa amorfa e relativamente “neutra”. Mas o que pudemos ver, nos últimos anos, é que, se a cadela do fascismo está sempre no cio, como dizia Brecht, ela mostrou particular disponibilidade reprodutiva nessas nossas terras tropicais, talvez eliminando definitivamente o mito do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda.

O ódio, o egoísmo basal, que são os alimentos do fascismo, moram no coração do Homem. (Não temos dúvidas de que, mais profundamente ainda, existe um incomensurável aquífero de amor e paz – mas não é essa a questão no momento.) Mas a grande mídia, instrumento do Grande Capital, vem há anos insuflando esse ódio, ensinando o povo a odiar o “comunismo” e as “esquerdas” de modo geral.

Todo esse rio de ódio e ignorância confluiu para onde? Para seu representante perfeito, o militar reformado, o verme que há décadas vivia no lodo da baixa política no Rio de Janeiro.

O Boçal Fascista foi eleito em 2018, fez um dos piores governos da história mundial, e ainda assim disputou o segundo turno em 2022 com Luís Inácio Lula da Silva, talvez o maior líder da história brasileira, e um dos grandes do mundo. (Na opinião da filósofa e psicanalista Viviane Mosé, Lula é o maior líder mundial vivo.) Claro que o Boçal Fascista jogou todo o peso da máquina e fez todas as manobras sujas para conquistar eleitores; mas ainda assim espanta que o governo que destruiu o país, que é responsável por pelo menos 400 mil mortes por Covid-19, segundo especialistas, e que fez o Brasil voltar ao Mapa da Fome da ONU – espanta que esse governo tenha sido avalizado por mais de 58 milhões de eleitores. Felizmente, Lula obteve mais de 60 milhões de votos. O Brasil e o mundo respiram aliviados.

Não acreditamos que o Brasil tenha mais de 58 milhões de eleitores fascistas. Os fascistas-raiz, aqueles que encontraram no Boçal Fascista seu representante, mal chegariam a 25% da população. Mas muitos brasileiros são vulneráveis aos apelos do fascismo, com ou sem aspas, no sentido amplo ou estrito.

De qualquer modo, o perfil político e cultural do povo brasileiro foi revelado. Fascistas autênticos e fascistas eventuais somam mais de 58 milhões de eleitores.

O Brasil nunca mais será o mesmo.  Dificilmente voltaremos a seguir falsos messias, ou seremos surpreendidos pela eclosão de um ovo em que a serpente do fascismo dormitava silenciosa e imperceptivelmente.

Essa foi a grande missão do Boçal Fascista: funcionar como o contraste endovenoso que permitiu ao Brasil visualizar com nitidez, na radiografia política, a caratonha horrenda de sua patologia social. 




Um comentário:

Carlos Valdetaro disse...

Foi um pesadelo, una noite de 4 anos, mas como está no texto, posicionou e mostrou o jogo, agora é tudo as claras.