terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Contrabando espiritual


Nelson M. Mendes


Na busca espiritual, há que se tomar cuidado com o ego, que facilmente pode assumir o protagonismo também aí, nos levando por caminhos equivocados.
Na verdade, muitos, enclausurados nos limites encouraçados do ego, confundem a caminhada espiritual com a aquisição de poderes sobrenaturais.
A primeira frase do belíssimo e fundamental livro  “A voz do silêncio”, de Helena Blavatsky, é a seguinte: “Estas instruções são para os que ignoram os perigos dos Iddhis inferiores.” Em nota de rodapé, explica-se que os Iddhis (termo páli correspondente a Siddhis, no Sânscrito) são as “faculdades psíquicas, os poderes anormais no homem”. Bem mais adiante está dito: “O nome da segunda sala é a Sala de Instrução. Nela tua Alma achará as flores da vida, mas debaixo de cada flor está uma serpente enrolada.” Em nota, explica-se que essa sala é “a região astral, o mundo psíquico das percepções supersensíveis e visões enganosas – o mundo dos médiuns, (...) da Grande Ilusão.”  Continua o livro: “Se queres atravessar seguro a segunda sala, não te detenhas a aspirar o aroma de suas narcóticas flores.”  O grande sábio Ramana Maharshi faz advertências semelhantes: “Visões e sons devem ser encarados como distrações e tentações.”  “Os poderes ocultos estão apenas nas limitações da mente pensante. Não são inerentes ao Ser.” “Aquele que não se dedica a nenhum tipo de prática espiritual está em melhores condições do que os que buscam os poderes mentais.”
Os Siddhis (poderes psíquicos) podem vir como um bônus aos que realizaram o Ser. Não está dito na Bíblia que tudo será dado por acréscimo àquele que chegou ao Pai – e que de nada mais precisa? Alguns, cercados de precauções éticas e imbuídos dos mais nobres propósitos – teosofistas sérios, médiuns sérios, pesquisadores sérios – optam por desenvolver faculdades psíquicas latentes a fim de colocá-las a serviço da fraternidade, da verdade, da luz. Há ainda aqueles que já nascem dotados de tais poderes, e com a missão  de empregá-los pelo bem da humanidade; esse é o seu Dharma­ – como explica Prem Baba no livro “Propósito”.
É preciso dizer uma coisa: a atração pelos poderes sobrenaturais e até mesmo o desejo de adquirir uma erudição espiritual, um verniz exotérico com o qual “fazer amigos e influenciar as pessoas” não são a priori coisas condenáveis e nefastas.
O útil instrutor brasileiro Prem Baba, no já citado livro, explica que servir sem esperar nada em troca proporciona grande satisfação; e que muitos se propõem ao serviço esperando exatamente sentir tal alegria. Acrescenta Prem Baba: “Mas não há nada de errado nisso. Você começa a partir do interesse em experimentar a alegria, até que possa se entregar ao serviço de forma desinteressada.”
Do mesmo modo, a egoica atração pelos mistérios pode levar a que a pessoa finalmente se defronte com o Mistério. O ego ou personalidade (o uso dos termos varia segundo as escolas filosóficas) percebe então que não passa de um “feixe de tendências” (Ramana Maharshi), um “software instalado num hardware neural” (Nelson Mendes); ou que simplesmente “não existe” (Cordélia Figueiredo).
Seja como for, é preciso estar em guarda contra a avidez espiritual, o desejo de adquirir poderes, “despertar kundalini”, acumular uma bagagem exotérica.
Essa atitude leva a que os “conhecimentos espirituais” sejam agregados ao ego exatamente como são adicionados adereços a uma fantasia. Por isso, muitos sábios – diretamente, como Krishnamurti, ou indiretamente, como Ramana Maharshi – não aprovam a expressão “expansão da consciência”; porque ela pode dar a ideia de que se trata da “expansão”, do crescimento a partir de  um centro – a partir do ego.
Em suma, o que muitos desejam é tornar-se “super-heróis espirituais”. E a sabedoria é exatamente o oposto disso: é a nulificação do ego. É a dissolução da gota no oceano.

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