sábado, 7 de julho de 2018

A Tulipa Podre





 Nelson M. Mendes

Vamos aos fatos: você foi condicionado, é manipulado pelas forças que não querem que absolutamente nada mude sob o sol desse “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Repetindo pela milésima vez: tudo – todos os sistemas cosmológicos, físicos, biológicos, humanos – tem seu fim. E o Capitalismo caiu de podre, morreu. O fraudulento upgrade (ou ajuste) chamado Neoliberalismo não passa de uma sobrevida artificial, à base de aparelhos.
Um dos artifícios usados pelos “médicos” que sofregamente tentam manter vivo o “paciente” é exatamente a Propaganda. Propaganda é, de modo geral, uma forma institucionalizada de mentir. (Quem diz isso é um publicitário.) E nunca se mentiu tanto como nessas décadas de agonia do Capitalismo.
Quando se tentou, canhestra e enviesadamente, colocar em prática as ideias que Marx havia esboçado como contraponto ao Capitalismo, a reação foi violenta em todos os níveis: econômico, político, militar, cultural e até religioso. Sim, a religião foi chamada a defender os sacros valores capitalistas, inclusive com as justificativas teológicas mais esdrúxulas e inacreditavelmente cínicas.
Mas a principal arma, mais poderosa até do que bombas e pressões econômicas, é a Propaganda – que, como dissemos, é a mentira institucionalizada.
A Propaganda ensinou você a confundir Comunismo com sua degradação, praticamente seu oposto – o Stalinismo; a misturar o conceito de sistema econômico (Capitalismo, Comunismo...) com o de regime político (Democracia, Monarquia...); a acreditar que nos ditos “países comunistas” (que, stricto sensu, jamais houve no mundo), as pessoas viviam delatando-se umas às outras e, por causa da pobreza, comiam criancinhas.
No arranco final do Neoliberalismo – a era das privatizações dos anos 80/90 – a Propaganda funcionou como uma avalanche. Era preciso convencer o distinto público de que era bom para ele que estratégicas empresas estatais, muitas com importante papel social e verdadeiros pilares da economia nacional, fossem entregues a preço de banana à sanha dos especuladores, muitos dos quais estrangeiros e sem qualquer interesse no bem-estar do povo brasileiro.
Fizeram até a propaganda – lembra? – dos elefantes competindo com cavalos de corrida. Os elefantes – claro – representavam as lentas, desajeitadas e ineficientes empresas estatais; os cavalos simbolizavam as empresas privatizadas. A propaganda dizia também que, com as privatizações, o governo arrecadaria dinheiro para fazer investimentos sociais, como em educação e saúde. As empresas privatizadas, por sua vez, melhor geridas, dariam mais lucro e teriam recursos para investir em tecnologia e na expansão dos serviços. Mais: as tarifas, sob o efeito desse “choque de gestão”, cairiam.
Você acreditou em tudo isso. Natural: a excelência da propaganda brasileira é internacionalmente reconhecida; e o povo brasileiro é notoriamente inculto, despreparado, despolitizado. Não foi Darcy Ribeiro quem disse que a negligência dos nossos governantes em relação à educação é uma estratégia?
A miséria que o governo arrecadou com as privatizações evaporou-se – provavelmente numa nuvem de propina.  Os serviços não melhoraram. As tarifas não caíram, pelo contrário: subiram. E, para que fossem honrados os bons costumes e princípios neoliberais, milhares de trabalhadores foram colocados no olho da rua. Afinal, o importante é cortar custos e aumentar lucros.
Mas você continuou achando isso bom. A propaganda é a arma do negócio.
Quando, em 2008, o Capitalismo teve uma de suas muitas síncopes – a prevista, pelos economistas honestos, “crise financeira internacional” – , você  levou um susto. Você naturalmente nem sonhava em nascer em 1929, quando uma devastadora crise, provocada pela natural autofagia do sistema capitalista, só foi debelada de fora, pela mão forte e salvadora do tão execrado Estado: o New Deal de Roosevelt foi o oxigênio que salvou o Capitalismo de uma crise terminal. Em 2008, como em 1929 e em muitos outros momentos de crise, os especialistas garantiram que os rugidos e fumaças do vulcão não significavam que a erupção estivesse próxima: estava tudo tranquilo, as finanças iam de vento em popa.
A propaganda é a arma do negócio. É a mentira institucionalizada. E você caiu que nem um patinho amarelo.
Nada de muito novo.
Em 1593 o botânico Carolus Clusius trouxe de Constantinopla (atual Istambul) para a Holanda, com propósitos medicinais, alguns bulbos de tulipa. Mas algumas de suas plantas foram roubadas e despertaram a atenção de quem podia pagar para ostentar raridades.
Em breve se criou uma furiosa demanda por tulipas. A tulipa, naquele começo de século XVII, se tornou o ouro do momento, o petróleo do momento. Todos queriam enriquecer comprando e revendendo tulipas.
A tulipa mais valiosa era a Semper Augustus, pela rara coloração púrpura imperial. Curiosa e simbolicamente, a cor era causada por uma doença, um vírus. O objeto da cobiça dos especuladores era uma flor doente.

Mas os bulbos florescem somente entre a primavera e o verão, e apenas de 7 a 12 anos depois de plantados. Então os especuladores passaram a vender contratos de tulipas: o compromisso de comprar a tulipa que ainda ia florescer. Modernamente, isso se chama título; trata-se de um contrato de futuros. Os próprios contratos passaram a ser negociados: era o primeiro mercado de derivativos do mundo. Os preços dos títulos (ou vale-tulipas) passaram a subir vertiginosamente.
Estava inventada a especulação financeira.
O Capitalismo estava no seu alvorecer. Já no século XVI as Leis de Cercamento (Eclousure Acts) haviam começado o processo de privatização de terras, pondo fim ao regime dos open fields e criando multidões de deserdados (ou desterrados) que passaram a se aglomerar nas cidades em busca de migalhas. O comunismo informal (a expressão é nossa), que Leonardo Boff identifica até mesmo nas primitivas comunidades cristãs, definitivamente tornara-se coisa do passado.
A especulação com as tulipas, inicialmente praticada pelos holandeses endinheirados, despertou o interesse de pessoas comuns e até estrangeiros, principalmente franceses. Muitos se desfaziam de casas e outros bens para investir na compra de tulipas, cujos preços continuavam a subir exponencialmente.
Mas a farra tinha data para acabar. No inverno de  1636/1637, alguém percebeu que não fazia sentido investir uma fortuna numa flor e deixou de honrar um contrato; além disso, descobriu-se que alguns títulos (vale-tulipas) não correspondiam a qualquer tulipa como lastro, isto é, eram falsos. A confiança no Mercado ruiu, e imediatamente tulipas e respectivos títulos perderam totalmente o valor.
Estava inventado o estouro da bolha.
Na história contemporânea, o estouro mais famoso e trágico foi o Crash de 1929 nos Estados Unidos. Assim como ocorrera no século XVII na Holanda, milionários se viram de repente com papéis sem qualquer valor – papéis podres. O vírus da Semper Augustus, que conferia à tulipa sua sedutora cor, atravessara os séculos e, mutante como são frequentemente os vírus, sob novo disfarce produzia novamente miséria, sofrimento e morte.
E, assim como os holandeses haviam ficado desconfiados de investimentos especulativos depois que as tulipas murcharam, todo o mundo contemporâneo ficou escaldado depois do Crash de 1929.
O Liberalismo havia falhado. Próceres liberais se reuniram às pressas e criaram o remendo chamado Neoliberalismo. Fosse como fosse, a moderação especulativa permaneceu por décadas.
Mas a cobiça é eterna e, nos anos 1980, com Reagan e Thatcher, a avalanche neoliberal veio removendo as regulations que haviam mantido uma certa decência no Mercado Financeiro.
2008 estava logo ali.
Você levou um susto, mas continuou acreditando nas falácias, nas mentiras que lhe vinham sendo incutidas há décadas. Achou natural até que, sob vigência do tão incensado Neoliberalismo, o Estado, o inimigo, fosse chamado em todo o mundo a socorrer banqueiros e rentistas com dinheiro público. A lógica do sistema é privatizar o lucro e socializar o prejuízo.
Mas você continuou achando tudo muito natural, muito científico.  
Em 1989 você já não quisera votar na alternativa progressista que se apresentava no segundo turno: Lula. Preferiu votar em Collor, o monstrengo conservador que a propaganda fantasiara de indômito “Caçador de Marajás”, o homem que acabaria com os altíssimos salários do setor público e, assim, resolveria os problemas do país.
Você acreditou. Você é um homem de fé.
Quando Lula, depois de perder várias eleições, vestiu o figurino “Lulinha paz e amor”, comprometendo-se, na famigerada “Carta aos brasileiros”, a não incomodar os poderosos e a respeitar a quimera chamada Mercado, ele recebeu o aval do poder real para finalmente ganhar uma eleição. E aí você passou a achar que Lula, afinal de contas, não era tão feio como o haviam pintado.
O problema é que Lula se reelegeu e ainda emplacou Dilma como sucessora. O Mercado, os neoliberais, o poder real – ninguém podia suportar isso.
Começou então a temporada de caça às reputações, através do arremesso de calúnias. O mesmo expediente que fora usado contra Getúlio, Jango, Brizola, era agora usado, com vergonhosa participação do Legislativo, do Judiciário e da mídia, para derrubar Dilma e condenar Lula num processo kafkiano.
É claro que você acreditou que estava tudo certo. A propaganda é mesmo a arma do negócio.
Enquanto essas linhas são redigidas, o Brasil é eliminado pela Bélgica na Copa do Mundo na Rússia. Gritos e silêncios na vizinhança me mantêm informado sobre o andamento do jogo. Não deixa de ser curioso que, num mundo com tantos problemas e carências, se dê tanta importância à trajetória de uma esfera de couro em relação ao vão retangular, num plano vertical, determinado por três traves e uma linha no gramado. Mas é assim mesmo: o povo parece gostar mais até de circo do que de pão.
O ser humano parece mesmo não ter uma boa noção de prioridades e valores. Não houve época em que as pessoas vendiam casa, gado, e provavelmente até a mulher para investirem o dinheiro na compra de uma flor doente?
“A vida é um sopro” – dizia o já centenário Oscar Niemeyer. (Niemeyer morreu perto de completar 105 anos.) Mas há muito mais tempo os textos cristãos registraram: “Tudo é vaidade sob o Sol.” Vaidade, cobiça. Os homens correm atrás de sombras, empenham-se em fazer passar uma bola por um vão vertical.
Pequenos e grandes perseguem as mesmas fantasias; mas os grandes, os poderosos, que têm nas mãos o coelho e a cartola, fazem prestidigitações de modo a que os pequenos ajudem os poderosos a realizar os próprios sonhos: o escravo é colocado a trabalhar alegremente pelo senhor.
Você, adorador do Pato Amarelo; você, que participou da sinfonia das panelas, sob a regência da Rede Globo; você, bolsuíno; você, analfascista: todos vocês fazem exatamente esse trabalho de sustentar nos ombros uma ordem socioeconômica injusta, desumana, covarde; insustentável.
Esse sistema, como se viu, começou a ser desenhado há 500 anos. Desde então, vem sendo remendado, recebendo maquiagens. Mas a natureza nefasta do monstro – que é uma glamourização, uma justificação institucionalizada dos instintos mais selvagens do homem – não pode ser disfarçada. O Capitalismo é a institucionalização da Lei da Selva, e ponto final. Assim como a Publicidade – particularmente nessas permissivas terras tropicais – é a institucionalização da Mentira.
E a Mentira trabalha a serviço da Mentira. Movida pela cobiça, a turba acredita nas mentiras, segue um enganador mapa do tesouro.
Mas, assim como tudo é vaidade, tudo tem seu tempo. Para continuar citando a Bíblia: “Ao pó voltarás.” E, para dar um selo de erudição ao parágrafo, posso citar Heráclito, caprichando na transliteração: “Panta rhei” – tudo flui.
O atual sistema passará; já passou. A Mentira o mantém aparentemente vivo. O Capitalismo é mais do que uma tulipa doente, como a Semper Augustus: é uma flor podre.



3 comentários:

Júlio Campolina disse...

Texto exelente meu inteligentíssimo amigo Nelson!
Ilustra exatamente o vil desenho doutrinado para a sociedade, que não consegui se verificar, como eterna massa de manobra!!!
Bora pra quinta!!!

Alecsandra Paz disse...

Excelente texto!

Aníbal Bragança disse...

Muito bom, Nelson. Parabéns. Você conseguiu sintetizar um processo terrível que a humanidade atravessa, com tantos zumbis sustentando poucos nas suas "grandezas".