quarta-feira, 25 de julho de 2018

Triagem de Almas


Nelson M. Mendes
[Adaptação de comentário no Orkut em 2007.]

O juiz começa mais um dia de trabalho e examina a ficha do primeiro da fila:
- Hum... você roubava merenda do coleguinha na escola. Nada grave. Pode ir para o Céu.
Vem o outro, e ele repete a operação:
- Você vivia se metendo em brigas, dava porrada... vai passar uma longa temporada no Purgatório.
E outro:
- Você prejudicou milhares de pessoas com fraudes na Previdência. Direto para o Inferno.
Aí chega Nelson Jobim. O juiz olha para a cara dele e sente um mal-estar que nem ACM, recentemente encaminhado para o Inferno, havia provocado. Lê sua ficha e, embora no CTAD (Centro de Triagem de Almas Desencarnadas) não se coma nada além de luz, fica com vontade de vomitar. Olha bem para a cara do facínora, que lhe sorria o mais cínico dos sorrisos, e diz:
- Pois muito bem, aqui está que você mentiu, fez tráfico de influência, deixou-se dominar pela vaidade, fez do Supremo Tribunal uma caixa de ressonância das vozes dos poderosos.
- Mas isso não é grave. Afinal, a jurisprudência...
- Quieto! Aqui o juiz sou eu e a LEI funciona. Esses crimes valeriam um Purgatório bem pesado e longo...
- Sim, claro: e depois o Céu. Eu aceito.
- Só que tem uma outra coisa aqui: você fraudou a Constituição, introduzindo sorrateiramente um inciso no texto já aprovado! E para favorecer os banqueiros!
- Perdão, Senhor, espero que não mereça o Inferno por causa disso...
- Não, de modo algum: você vai voltar para a Terra e encarnar como um camponês explorado em regime de trabalho escravo; depois, como um miserável a viver na periferia de uma grande cidade, tendo que passar dias numa fila para ter um simples atendimento médico; e assim por diante, até entender o que significa privilegiar, já na Carta Magna de um país, os interesses de uma minoria, em detrimento dos interesses da imensa maioria do povo.

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