terça-feira, 23 de setembro de 2014

O problema do radicalismo liberal de Marina

André Biancarelli: “Choque e espanto” de Marina ameaça o mercado interno
publicado em 18 de setembro de 2014 às 16:31
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O economista André Biancarelli, entrevistado por Luiz Carlos Azenha para o site Viomundo, comenta declarações dos economistas Eduardo Giannetti e Alexandre Rands sobre a Unicamp, o governo Dilma e o programa de Marina, de quem são colaboradores. Diz que alguns dogmas neoliberais estão mais do que nunca em xeque, desde a crise de 2008, e que no entanto as propostas econômicas de Marina requentam ideias dos anos 90, estão inteiramente alinhadas com o sistema financeiro e trariam graves perdas, tanto no plano social quanto econômico. 


Luiz Carlos Azenha - André, o que você achou da manifestação de pessoas da equipe econômica da Marina em relação à Unicamp?

André Biancarelli  - Aquele episódio do Eduardo Giannetti, e aí se soma ao Alexandre Rands,  reflete um posicionamento  um tanto exagerado; o Instituto de Economia da Unicamp foi taxado de fechado, parado no tempo, irrelevante. Mas evidentemente que ele tem importância, e não só essa,  de influente na política econômica do governo; ele tem uma influência acadêmica. O Instituto de Economia da Unicamp não é uma coisa única, não é um bloco, tem divergênias e tem debates internos. É claro que o pensamento que predomina em Campinas é mais crítico, de natureza heterodoxa; esses dois economistas, e vários outros, têm um alinhamento mais liberal, mais ortodoxo nas questões econômicas.

LCA - O Alexandre Rands disse que existem alguns consensos na teoria econômica, que estão em todas as universidades americanas, 98% das europeias, 95% das asiáticas e 97% das brasileiras. É verdade isso, existe um consenso na teoria econômica assim tão devastador – para a imagem da Unicamp?

André - Eu acho curiosa essa mania de economista de cifras exatas em tudo. Existe uma linha predominante no debate acadêmico internacional... no Brasil ele também é predominante, mas de maneira nenhuma é éssa quase absoluta dominância. Essa tentativa de enquadrar a Unicamp como um gueto absolutamente isolado é um exagero; inclusive porque o Instituto de Economia da Unicamp tem uma linha predominante [mas] não é um bloco fechado, em que todo mundo concorda com tudo.

LCA - Ah, ele também disse que só uma universidade não tem articulação internacional – a de Campinas – que ela é “endógena”. O que ele quis dizer com isso?

André - O Instituto de Economia da Unicamp tem suas artitulações internacionais, que vêm crescendo. Provavelmente, o que esse economista está entendendo é que, se não forem algumas universidades americanas que ele considera as melhores, isso significa isolamento internacional.

LCA - Ele também diz que os economistas de Campinas não consideram o desenvolvimento da teoria econômica desde a década de 60; que a Dilma pensa com a cabeça de Campinas, que é uma ilha que parou no tempo.

André - É curioso isso, porque há, desde a crise de 2008, um profundo questionamento de várias ideias que eram consideradas consensuais como essa;  há profundo questionamento interno – em Harvard, em vários outros lugares muito influentes – de alguns dogmas da teoria econômica financeira internacional. Isso é um discurso... desconhecimento... e tentativa de agradar um determinado público, que no caso é financeiro, para ganhar prestígio; eu só entendo dessa maneira.

LCA - Ele diz que a Dilma trata o empresariado como uma prostituta: quer estar com ele, mas depois denigre sua imagem. Ele diz isso logo depois de dizer que ela pensa com a cabeça de Campinas.

André - Eu diria o seguinte... eu acho bastante de mau gosto a metáfora. O que tem aí é uma crítica de conteúdo a particulamente a política do BNDES que é comandada por um professor aposentado da casa, que é o Luciano Coutinho – de apoio às empresas; isso faz parte, sim, de uma concepção que não é só de Campinas; o Luciano Coutinho é presidente do BNDES mas é assessorado por diretores que não são todos de Campinas. Aliás, no governo Dilma tem dois ministros da área econômica que são professores de outro departamento.  É curioso... porque ao mesmo tempo em que se critica que o governo ajuda as empresas demais, pelo BNDES, critica-se que o governo maltrata os empresários. A crítica é um pouco contraditória. Se você acha que as empresas têm que se virar sozinhas, sem nenhum tipo de apoio, não faz sentido o empresário ficar reclamando que o governo as trata mal... Não é liberal? Então a empresa que se vire.

LCA - Por que ajudar as empresas?

André - A ideia é a de que [no] capitalismo,  desde o começo do século passado, final do século anterior [19],  a industrialização, para ter peso, não se faz com pequenas e médias empresas. Elas são importantes  mas a consolidação de uma economia desenvolvida não pode prescindir de grandes grupos nacionais. Não existe nenhuma experiência histórica no mundo que tenha sido feita sem o apoio do Estado, sem o apoio tecnológico, financeiro, e por aí vai. Isso envolve um banco de desenvolvimento, sem dúvida nenhuma. A defesa de uma “livre concorrência” nesse plano empresarial significa evidentemente que o Brasil não vai ter grupos nacionais, que o mercado brasileiro vai ser mais ainda dominado por empresas estrangeiras. A livre concorrência é um dogma da teoria econômica que não encontra nenhum tipo de experiência prática desde que a Inglaterra passou pela primeira Revolução Industrial, quando foi alguma coisa mais liberal, mesmo.

LCA - Um ponto da plataforma econômica da Marina diz que pretende submeter todos os setores da economia brasileira a se desenvolver por conta de competição internacional. Tem que abrir para que haja mais competição. Essa competição é igual ou desigual?

André - É completamente desigual. O mundo é profundamente regulado, esses acordos multilaterais e bilaterais de comércio são tentativas mais até do que de abrir o comércio, de disciplinar o comércio e ter acesso preferencial. Qual é a nova roupagem do discurso da abertura unilateral – unilateral porque sem negociar nada, como se a concorrência fosse boa por si? Vai despertar as empresas, elas vão deixar de ser protegidas, etc; exatamente o mesmo discurso do início dos anos 90. Mas tem um elemento novo, que são as tais cadeias produtivas globais. O discurso liberal diz que o Brasil está fora dessas cadeias – e é verdade: a gente tem uma participação muito residual em alguns nichos. Qual é a solução para isso? Vamos abrir, vamos tirar as barreiras... não tem nada que indique que as empresas virão para cá porque a gente pode importar mais do que pode agora. Isso conduz a posição  de mero fornecedor de mão de obra barata, e na maioria dos casos só de mercado consumidor. O que está em jogo é a disputa pelo mercado brasileiro, que é grande e é importante. 

LCA - Você já falou em recuperar a indústria brasileira, porque há uma taxa altíssima de desindustrialização. Isso já não é por conta do pensamento dos economistas de Campinas – deixa eu fazer o advogado do diabo?

André - O que existe é um processo de ameaça e de corrosão dos setores produtivos brasileiros. Existem várias razões para isso, a principal delas é a concorrência chinesa, contra a qual é absurdamente difícil competir; mas, se eu tivesse que elencar uma segunda razão, é a política macroeconômica – particularmente a posição da taxa de juros e da taxa de câmbio, principalmente, que facilita importações; e aí as empresas brasileiras vão se acomodando nessas cadeias globais como importadoras e às vezes só colocam etiquetas aqui dentro do Brasil. O caminho natural de uma abertura e, particularmente, de um câmbio apreciado [moeda nacional muito valorizada, o que facilita importações] é a desindustrialização; nem um liberal diria que isso é um resultado do excesso de intervenção estatal – pelo contrário: é o excesso de liberdade de comércio.

LCA - Você falou da China, e a Marina também fala em rever a relação com a China. É por isso?

André - O que eu sei é que o programa da Marina enxerga a diplomacia, de um lado, como uma coisa só econômica, o que está longe de ser; e de outro, enxerga o grupo BRICS, que tem uma importância econômica, estratégica, fundamental, pelo viés dos direitos humanos... Eu não tenho certeza se é a isso que ela está se referindo: o Brasil vai diminuir a intensidade de suas relações com a China por conta de desrespeito aos direitos humanos, e por aí vai. É uma visão no mínimo ingênua das relações internacionais.

LCA - Você acha que ao fazer essas críticas o Rands desconhece ou não quer considerar, por exemplo: os Estados Unidos são um país que têm um Estado absolutamente intervencionista, para os seus interesses... é um país onde o dinheiro público salva a General Motors, onde o subsídio para a indústria agrícola é gigantesco... você acha que ele desconhece isso?...

André - O que eu digo é que o programa da Marina  no capítulo econômico é de uma ousadia liberal que nunca tinha sido colocada no papel em campanha eleitoral no Brasil. Ele é bastante ousado –  ousado no mau sentido.

No capítulo econômico, tem a questão da independência do Banco Central  que está gerando muita discussão O principal lado dessa discussão nem é tanto [se] vai aumentar ou diminuir a taxa de juros,  mas é a questão de se instaurar um poder paralelo na República, e você ter uma política econômica supostamente comandada por critérios técnicos, quando a gente sabe que isso não existe, existem interesses, existe discussão política; então, significa que uma visão política e um grupo de interesses vai prevalecer.

Tem uma discussão  de instituir um Conselho de Responsabilidade Fiscal [constituído] por  economistas e especialistas de fora do governo – não eleitos; e não sujeitos à influência do governo eleito. Isso seria o equivalente  a uma política fiscal independente. Se o bom trato do dinheiro público é um valor em si, que deve ser preservado, há determinadas conjunturas em que o Estado tem que fazer déficit, tem que aumentar a dívida, mesmo, para recuperar a economia, como foi o caso em 2008. Esse Conselho de Responsabilidade Fiscal poderia impedir uma reação anticíclica do gasto público e do Orçamento como foi feito em 2009 – que foi importante.

A coisa do crédito direcionado, do papel do banco público eu também acho bastante complicada... Eu considero que não é um exagero dizer que o programa habitacional, o programa de financiamento rural estariam fortemente comprometidos sem o direcionamento do crédito público

Mas o que chama mais a atenção, para mim, é que o capitalismo brasileiro sempre precisou, por conta das suas dificuldades de financiamento, dessas formas forçadas de captura de poupança financeira. E as pessoas que estão pleiteando o comando do Brasil [pretendem] eliminar o crédito direcionado... Isso está dando problema – ainda bem, porque não dá para ser tão liberal assim no plano da política econômica. O mundo é muito mais sujeito a dificuldades.

LCA - Qual seria a consequência, para o Banco do Brasil, a Caixa e o BNDES – eles iriam diminuir de tamanho em relação aos bancos privados?

André - Uma coisa é estar dito num programa que os repasses ao BNDES irão diminuir. A justificativa para isso na linguagem do programa e do mercado financeiro é abrir espaço para o setor privado – coisa que o BNDES também procura fazer. Mas o principal é a questão do direcionamento do crédito: [no] Brasil, seja banco público seja banco privado, existe uma “exigibilidade”: 20% dos depósitos de poupança têm que ir obrigatoriamente para financiamento habitacional – pela Caixa ou por um banco privado. Está dito, com todas as letras [no programa de Marina] que eles pretendem terminar [com a exigibilidade de que 20% ou mais dos depósitos de poupança sejam canalizados para investimento habitacional]. O sistema de crédito rural e crédito habitacional no Brasil correm riscos sérios. Porque isso só existe – essa intervenção do Estado no mercado de crédito – porque esse é um setor que a sociedade algum dia considerou fudamental ser protegido da lógica de mercado. Se você acaba com isso, a lógica de mercado impera; aí, ninguém garante – e não é difícil imaginar o que iria acontecer – que a gente iria ter crédito nas condições necessárias para financiar um programa habitacional, por exemplo. Particularmente na dimensão financeira eu fiquei bastante impressionado com o radicalismo financeiro do programa da Marina.

LCA - Por outro lado, Roberto Setúbal, presidente do Itaú, fez uma reclamação : o BNDES, com as taxas que pratica, não nos deixa  participar de obras de infraestrutura. É uma crítica dentro da linha que a Marina provavelmente adotaria. Qual a consequência disso aqui no Brasil? Você acha que o spread ficaria maior, em função da ausência do BNDES?

André - O BNDES tem um papel bastante específico, que é o investimento no longo prazo. O BNDES não concorre com os bancos privados no crédito ao consumo, no crédito de capital de giro. Se ele [Setúbal] falou em relação à infraestrutura, a questão é a seguinte: o BNDES foi criado no Brasil – e vários lugares do mundo invejam o Brasil por ter um banco desse tipo – justamente porque o setor privado não consegue, nunca conseguiu, na história do Brasil, mobilizar recursos de longo prazo; porque envolve assumir riscos que só uma instituição pública... isso é parte do debate financeiro internacional hoje, é um tema de fronteira: a revisão do papel dos bancos públicos nas economias capitalistas. A crítica às vezes ao BNDES no Brasil  é uma crítica dos anos 90; porque a crise, e a capacidade de reação à crise de 2009 provou que quem tinha banco público conseguiu se recuperar melhor, porque existe um agente financeiro do Estado que está disposto a assumir riscos que o setor privado não assume, pela [sua] natureza.

LCA - Considerou-se inclusive, nos Estados Unidos, da criação de um BNDES...

André - É muito complicado um partido assumir, de maneira tão linear assim uma agenda que é de um setor da economia. A indústria corre riscos... Tem toda uma institucionalidade de apoio às indústrias... Em resumo o que eu acho dessa reclamação de que o BNDES atrapalha o mercado de crédito privado: se não fosse o BNDES, não tinha crédito de longo prazo no Brasil.

LCA - Eu mesmo, que não sou economista, percebi, ao ler a entrevista de Roberto Setúbal, que a prioridade seria para o setor financeiro, colocando em risco a indústria, que muitas vezes, num projeto de longo prazo, é financiada por taxas mais baixas do BNDES. Ou estou errado?

André - É isso mesmo. E projetos de financiamento de infraestrutura – uma usina hidrelétrica, uma estrada, um aeroporto, sei lá – são engenharias financeiras muito complexas. Se não tiver nenhum tipo de garantia ou participação de um agente público, isso não sai; não é uma questão de ter preconceito contra financiamento privado. É necessário existir um agente que está disposto – e é o papel dele – a correr riscos maiores do que o setor privado.

LCA - Você vai fazer uma obra de grande interesse social, num lugar distante do Brasil, [que] não vai dar retorno nenhum... Voce não acha que esse tipo de obra corre risco, com essa visão liberal?

André - Com certeza. Tá na essência, no caso dos bancos públicos, tá na Constituição não só o critério de rentabilidade, mas também o critério de interesse social. Por que o crédito rural, por exemplo, precisa de uma proteção? Porque o setor rural é uma atividade muito sujeita a riscos – quebra de safras, etc. Se há mau uso do dinheiro público, se há excessos de intervenção do BNDES, essa é uma questão de grau; o que o programa está propondo, com todas as letras,  é eliminar a interferência estatal no setor financeiro. Isso na verdade é muito sectário, é muito liberal.

LCA - Assim como Fernando Henrique Cardoso queria matar o Getúlio Vargas, você acha que agora querem matar o Getúlio e o Celso Furtado?

André - A entrevista desse economista tem um pouco dessa dimensão; porque não é só uma questão de criticar a intervenção estatal que ele considera exagerada na economia brasileira hoje: é criticar as bases do pensamento disso. É muito estranho... por exemplo: o Gustavo Franco jamais diria uma frase dessas sobre Celso Furtado. É uma questão de conhecimento e erudição sobre o pensamento econômico brasileiro. Ou um economista terrivelmente intervencionista, desenvolvimentista jamais falaria que o Simonsen,por exemplo, ou Eugênio Gudin, ou Roberto Campos não têm importância nenhuma na história do pensamento brasileiro. Nenhum liberal...não é uma questão só de ser cuidadoso, é de conhecer, mesmo – desprezaria o Celso Furtado.

LCA - Nós estamos num quadro internacional muito preocupante, economias importantes com bastante dificuldade... Você acha que  não é preciso mesmo – mais uma vez fazendo o papel de advogado do diabo – um choque de ousadia na política econômica, diante do que vem por aí? Ou o choque que eles estão propondo é no sentido inverso: estão importando a crise?

André - A estrutura produtiva brasileira é em geral muito pouco competitiva; e se a gente quiser ser competitivo com base no câmbio e na redução dos salários, aí é que a gente não tem chance nenhuma mesmo; porque teria que colocar um câmbio lá... 5, 4, para competir com a China, e o salário teria que cair muito. Isso nem é fácil nem é desejável fazer. Qual tem que ser a diretriz? O Brasil tem que preservar e relançar o que foi importante para o crescimento nos últimos anos – o mercado interno. O mercado interno que foi movido a crédito – daí o papel dos bancos públicos foi importante – e foi movido a distribuição de renda; e a salário, e a programa de transferência, e a emprego. Acabar com isso é tirar a possibilidade de crescimento da economia brasileira numa conjuntura em que não está fácil para crescer puxado pelas exportações; e se você quiser tirar a importância do mercado interno pensando no mercado externo, não só você vai matar a possibilidade de crescimento, como você não vai colocar nada no lugar. A gente está passando por um período de crescimento baixo da economia internacional, prolongado.

LCA - O que está em disputa nessa eleição é o mercado interno brasileiro?

André - Tem um pouco essa crença de que se a gente abrir, isso vai provocar um choque de competitividade e produtividade na indústria brasileira, que ela vai competir internacionalmente. Uma coisa furada. O que está em disputa – eu acho que a questão central da disputa econômica, que agora pautou o debate na campanha -  é o papel do Estado na economia. O programa da Marina radicalizou pelo lado liberal. Isso força o governo a explicitar sua opção, que não é essa. Tem um lado bom, de ter colocado uma alternativa surpreendentemente tão liberal assim. O governo mostra as suas concepções.

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