O risco dos castelos teóricos do Ministério Público em investigações
complexas
[Texto editado por NMM. O autor fala dos malabarismos teóricos, à margem
da Constituição e da lógica, que resultaram na condenação de Genoino e norteiam
a Operação Lava a Jato.]
Texto original:
__________
Was nicht passt, wird passend gemacht
(O que não cabe, ajeita-se para caber)
– Dito popular alemão
(O que não cabe, ajeita-se para caber)
– Dito popular alemão
É absolutamente
legítimo, numa tentativa mais exata de explicar fatos complexos, isto é, fatos
que não são apreensíveis intuitivamente em toda a sua extensão, que se busque a
respeito deles construir um modelo teórico. Sugerem-se uns postulados,
constroem-se hipóteses sobre suas causas e seus efeitos, que, uma vez testadas,
se transformam em assertivas teóricas supostamente consistentes, ou seja,
isentas de contradições entre si. No seu conjunto, essas assertivas formam uma
teoria.
Teorias são por
natureza transitórias, e, uma vez falseadas, seriam substituídas por novas
teorias, assim provocando o avanço da ciência. Essa dinâmica pressupõe, é
claro, cientistas honestos.
Paul Feyerabend sugere
que cientistas não são santos: promovem puxadinhos de novas hipóteses por
testar, sempre no esforço, não de desistir da teoria, mas de camuflar suas
inconsistências. Se necessário, até por meio de falácias ocultas.
O agir de
investigadores criminais, quando lidam com ilícitos de maior complexidade, parece
não ser muito diferente. A polícia se serve muito de organogramas e fluxogramas.
O ministério público, sem deixar de fazer uso desses instrumentos, vai além,
porque tem que elaborar uma teoria que sustente a acusação.
Esse tipo de
técnica foi largamente usado na denúncia da APn 470-DF, conhecida como "Mensalão”.
Os procuradores partiram, a priori, da existência de uma organização criminosa,
que carreava recursos para distribuí-los a partidos e parlamentares da base de
sustentação de governo, para remunerar seu apoio em votações de projetos de lei,
para amortecer dívidas de campanha.
Os recursos, no
caso, eram definidos como públicos, supostamente advindos de bonificações da
Visanet ao Banco do Brasil e de sobrepreços em contratos de publicidade, tudo
disfarçado, também supostamente, como ativos de contratos de financiamento
entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Banco Rural, que, ao ver dos
acusadores, seriam simulados. Para realizar todo esse complexo intento, os
atores envolvidos se organizariam em núcleos com diferentes atribuições.
A experiência do
uso do modelo teórico foi tão bem recebida por uma mídia comercial, ávida por
uma versão que comprometesse todo governo do PT, que virou uma coqueluche nas
rodas de procuradores da República. E logo se realizou, já na gestão de Rodrigo
Janot como Procurador-Geral, curso de “Mensalão” na Escola Superior do
Ministério Público da União, para os colegas aprenderem a montar seus castelos
teóricos como rotina acusatória.
O problema de teorias investigativas é que, se estáticas, incidem
sobre grave violação do princípio da presunção de inocência.
Toda suposição
prévia sobre o acontecimento (hipótese por demonstrar) é, assim, provisória e o
Ministério Público, se constatar que sua hipótese era falsa, deverá rejeitá-la,
para defender a inocência do réu.
No entanto, longe
de terem a disposição de rever suas hipóteses, eles insistem até o fim na sua
tese inicial. Assim, o construto mental inicial, mesmo que não plenamente
provado, é apresentado como um fato definitivo.
As provas que vão
chegando ao processo são empurradas, piladas, socadas para dentro das
categorias pré-concebidas. Não interessam as demonstrações de inocência
provável do investigado/acusado, porque são antiestéticas. Sacrifica-se, com
arrogância moralista, essa inocência pelo amor ao castelo teórico montado.
Foi assim que José Genoíno
entrou na APn 470: apesar de nada haver contra ele a não ser duas assinaturas
em contratos que foi obrigado, como presidente do Partido dos Trabalhadores, a
avalizar, foi socado no “núcleo político” para, ali, se desenhar uma quadrilha
e chegar a José Dirceu. Todos sabiam da fragilidade da prova contra Genoíno, a
ponto de uma magistrada tê-la expresso, mas votando pela condenação desse réu
“porque a doutrina lhe permitia”.
Esses castelos
teóricos são de uma perversão desumana intolerável. Pouco interessa que José
Genoíno sempre morou na pequena casa geminada na divisa de São Paulo e Osasco,
área de classe média baixa, e que nunca adotou hábitos extravagantes.
A ninguém
interessou, naqueles dias, o tanto que Genoíno colaborara, na Constituinte de
1987-1988, com o lobby do Ministério Público para criar um órgão forte e
eficiente. Ninguém se lembrou que era uma pessoa festejada por todos os
procuradores-gerais, inclusive aquele que pediu sua prisão, sabendo-o inocente.
O trabalho de se ter montado o “esquema” do “Mensalão” era mais importante, até
porque a imprensa já o havia disseminado e o relator no STF já havia
publicamente destratado os colegas que pudessem estar em dúvida a respeito.
Piores ainda são os
castelos construídos por “task forces”, forças tarefas, criadas por Polícia e
Ministério Público, com todo o estardalhaço e defendidas com unhas e dentes
pelo juiz, pelo Conselho Nacional do Ministério Público que a premia e, claro,
pela mídia interessada no desgaste desse ou daquele ator político alvo das
operações. É que a montagem de uma força tarefa é feita com tanto rapapé que
ela fica sob permanente pressão de apresentar resultados. Ninguém cria força
tarefa para arquivar um inquérito.
Esse estardalhaço,
por si só, fere mortalmente a presunção de inocência e vai consolidando na
opinião pública a certeza do acerto da teoria inicial sobre o envolvimento dos
atores escolhidos nos fatos supostamente ocorridos. O castelo teórico montado
em força tarefa tem frequentemente como fundamento delações premiadas direcionadas
a alvos previamente escolhidos pelos investigadores e pelo juiz para dar
contornos de solidez ao modelo teórico concebido sobre os fatos em
investigação.
Torna-se, pois,
esse castelo, inexpugnável. Troca-se a ciência na investigação pela ideologia
doutrinária. Passam-se a adotar até doutrinas estrangeiras fora de seu contexto
e completamente deturpadas de seu significado original, como o instituto do
domínio do fato (“Tatherrschaft”), concebido por Claus Roxin.
As forças tarefas
revelam, no entanto, outro problema sério, afora a deficiência dos castelos
teóricos.. É que são seus atores extraordinariamente empoderados no sistema
constitucional brasileiro.
Diferentemente de
outros modelos, no Brasil, a Polícia, o Ministério Público e o juiz não sofrem
maior supervisão sobre a substância de seu trabalho. Na Europa continental, a
polícia é supervisionada pelo Ministério do Interior; o Ministério Público,
sujeito à supervisão concreta do Ministério da Justiça; o juiz, por sua vez,
está sujeito à autoridade disciplinar do presidente do tribunal, escolhido pelo
Ministro da Justiça. Já entre nós, cada um desses atores bate com a mão no
peito e se gaba de sua independência funcional.
Não percebem,
porém, nossos personagens públicos do processo penal, que sua independência é
adequadamente calibrada na Constituição, na lei e em regulamentos. O juiz não
tem liberdade de decidir extra petita; o Ministério Público tem independência que
é um “princípio institucional”, ou seja,
não tem independência balizada pela lide já construída pelas partes.
Por isso, a
independência funcional como princípio institucional encontra seus limites nos
outros princípios institucionais.
A polícia, por
outro lado, não tem independência funcional nenhuma. Ocorre que se consolidou o
costume de se respeitar o trabalho individual de cada delegado.
No entanto, ninguém
nega que, no Brasil, principalmente no plano federal, a Polícia detém um poder
significativo de pressão que dirige contra o Legislativo, onde dispõe de
bancada própria, e contra o Executivo: é mais fácil o Ministro da Justiça cair
por conta de um conflito com o diretor-geral da Polícia Federal, do que o
contrário.
O processo penal,
para resguardar os direitos do investigado/acusado, tem que se organizar de
outra forma, criando um sistema de “checks and balances” entre os três órgãos
públicos envolvidos na persecução penal. Basicamente, se a Polícia, na
investigação, comete algum abuso, este pode ser prontamente corrigido pelo Ministério
Público; se o Ministério Público se houver além dos limites legais, recorre-se
ao juiz, e, se o juiz praticar ilegalidade, tem a segunda instância para
corrigi-lo. Cada um no seu quadrado.
Por essa razão, não
há previsão constitucional de investigação criminal pelo Ministério Público,
para que as atribuições não se misturem. Ainda assim, o Supremo Tribunal
Federal tem admitido excepcionalmente essa investigação, quando motivos
extraordinários o recomendem. O que o acórdão deixou de enfrentar é que, se
essa investigação é excepcional, deve ser motivada e a motivação submetida
previamente ao juiz, que reconhecerá, ou não, a hipótese de excepcionalidade.
Depois de
autorizada a investigação, ela deve seguir o rito do inquérito policial, com
remessa, a cada 30 dias, dos autos para o juiz, para que ele supervisione a
atuação dentro do sistema de “checks and balances”. Isso pressupõe que o
juiz não seja parceiro do Ministério Público, combinando com este “o jogo”, sob
pena de colocar em sério risco as garantias fundamentais do
investigado/acusado.
Forças tarefas que
envolvem trabalho conjunto de Polícia com Ministério Público na montagem do
castelo teórico e na sua solidificação, sob a suspeita imiscuição do juiz em
todas as etapas, são, por isso, inconstitucionais. Porque, se os três atores
públicos se mancomunam, ao invés de se controlarem sucessivamente, o
jurisdicionado fica sem ter a quem recorrer contra eventuais abusos
articulados. Isso viola o princípio do amplo acesso à justiça (nenhuma lesão de
direito poderá ser subtraída da apreciação do judiciário) e inviabiliza a
garantia do devido processo legal. Forças tarefas podem ser legitimamente
constituídas entre órgãos da mesma administração: Polícia e Previdência Social
ou Polícia e Receita Federal, mas jamais em atuação conjunta com órgão
parajurisdicional ou jurisdicional, pois quebra a dinâmica do controle
sucessivo.
O que se percebe,
hoje, na força tarefa da operação Lava a Jato é precisamente isso: Polícia, Ministério
Público e juiz como parceiros de uma mesma empreitada, protegendo-se
reciprocamente, tudo em nome da necessidade de rigor no combate à corrupção.
Expõem-se castelos teóricos para o público que não são em absoluto conferíveis
em suas premissas, para chegar a conclusões antecipadamente postuladas, por
exemplo, de que Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente, era o chefe de uma
organização criminosa instalada em seus governos.
Nenhuma prova
sólida é apresentada, mas apenas suposições baseadas em duvidosas declarações
de terceiros, muitos, verdadeiras testemunhas sem credibilidade, todas socadas
nos “escaninhos” teóricos prévios. E, como dita o teorema de Clavius (Lex
Clavius), na lógica silogística, ex falso sequitur quodlibet: do
falso pode-se deduzir qualquer coisa. Se as premissas são falsas, a conclusão
pode ser falsa ou verdadeira, isto é, ela será indecisível (afinal, se todos
chineses falam português e Michel Temer é chinês, Michel Temer fala
português…).
Mas fazem-se
coletivas de imprensa em salas de conferências de luxo, alugadas com dinheiro
público, para apresentação de vistosos gráficos de Powerpoint de impressionante
fragilidade, sempre em prol de uma teoria prévia, que desconhece a dignidade
humana e a presunção de inocência do investigado exposto, por darem-se como
definitivos os pressupostos hipotéticos dessa teoria montada.
Para encerrar, é
importante advertir que não se deve desconsiderar que o uso desse método de
procurar explicar fatos complexos por uma série de hipóteses a serem testadas
para formarem uma consistente teoria do crime atribuído ao investigado/acusado
é um instrumento válido e legítimo, desde que, na busca da melhor verdade, se
tenha flexibilidade no falseamento ou na refutação de uma ou outra hipótese e,
com isso, permitir o reconhecimento da inocência de um ou outro implicado.
Importa, isto sim,
os investigadores vestirem as sandálias da humildade e reconhecerem suas
próprias limitações. O método não pode servir de “fait accompli”, fato
consumado, anulando o esforço da defesa. Por essa razão, os três poderosos
atores público têm que ficar, cada um, em seu quadrado, agindo discretamente
para evitar expectativas públicas por esse ou aquele modelo hipotético e para
tornar real a flexibilidade do falseamento teórico ou a superação da teoria
posta, por outra, com fundamentos diversos, compondo novo paradigma. Só assim
se garante ao jurisdicionado um “fair trial”.
Eugênio José Guilherme de Aragão: Doutor em direito pela
Ruhr-Universität de Bochum (Alemanha), mestre (LL.M.) em direito internacional
dos direitos humanos pela University of Essex (Reino Unido), foi Ministro de
Estado da Justiça do governo Dilma e exerce, hoje, os cargos de
Subprocurador-Geral da República no Ministério Público Federal e de Professor
Adjunto na Universidade de Brasília.
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