segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O Risco dos Castelos Teóricos do MP

O risco dos castelos teóricos do Ministério Público em investigações complexas
[Texto editado por NMM. O autor fala dos malabarismos teóricos, à margem da Constituição e da lógica, que resultaram na condenação de Genoino e norteiam a Operação Lava a Jato.]
Texto original:
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Was nicht passt, wird passend gemacht 
(O que não cabe, ajeita-se para caber)
– Dito popular alemão

É absolutamente legítimo, numa tentativa mais exata de explicar fatos complexos, isto é, fatos que não são apreensíveis intuitivamente em toda a sua extensão, que se busque a respeito deles construir um modelo teórico. Sugerem-se uns postulados, constroem-se hipóteses sobre suas causas e seus efeitos, que, uma vez testadas, se transformam em assertivas teóricas supostamente consistentes, ou seja, isentas de contradições entre si. No seu conjunto, essas assertivas formam uma teoria.
Teorias são por natureza transitórias, e, uma vez falseadas, seriam substituídas por novas teorias, assim provocando o avanço da ciência. Essa dinâmica pressupõe, é claro, cientistas honestos.
Paul Feyerabend sugere que cientistas não são santos: promovem puxadinhos de novas hipóteses por testar, sempre no esforço, não de desistir da teoria, mas de camuflar suas inconsistências. Se necessário, até por meio de falácias ocultas.
O agir de investigadores criminais, quando lidam com ilícitos de maior complexidade, parece não ser muito diferente. A polícia se serve muito de organogramas e fluxogramas. O ministério público, sem deixar de fazer uso desses instrumentos, vai além, porque tem que elaborar uma teoria que sustente a acusação.
Esse tipo de técnica foi largamente usado na denúncia da APn 470-DF, conhecida como "Mensalão”. Os procuradores partiram, a priori, da existência de uma organização criminosa, que carreava recursos para distribuí-los a partidos e parlamentares da base de sustentação de governo, para remunerar seu apoio em votações de projetos de lei, para amortecer dívidas de campanha.
Os recursos, no caso, eram definidos como públicos, supostamente advindos de bonificações da Visanet ao Banco do Brasil e de sobrepreços em contratos de publicidade, tudo disfarçado, também supostamente, como ativos de contratos de financiamento entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Banco Rural, que, ao ver dos acusadores, seriam simulados. Para realizar todo esse complexo intento, os atores envolvidos se organizariam em núcleos com diferentes atribuições.
A experiência do uso do modelo teórico foi tão bem recebida por uma mídia comercial, ávida por uma versão que comprometesse todo governo do PT, que virou uma coqueluche nas rodas de procuradores da República. E logo se realizou, já na gestão de Rodrigo Janot como Procurador-Geral, curso de “Mensalão” na Escola Superior do Ministério Público da União, para os colegas aprenderem a montar seus castelos teóricos como rotina acusatória.
O problema  de teorias investigativas é que, se estáticas, incidem sobre grave violação do princípio da presunção de inocência.
Toda suposição prévia sobre o acontecimento (hipótese por demonstrar) é, assim, provisória e o Ministério Público, se constatar que sua hipótese era falsa, deverá rejeitá-la, para defender a inocência do réu.
No entanto, longe de terem a disposição de rever suas hipóteses, eles insistem até o fim na sua tese inicial. Assim, o construto mental inicial, mesmo que não plenamente provado, é apresentado como um fato definitivo.
As provas que vão chegando ao processo são empurradas, piladas, socadas para dentro das categorias pré-concebidas. Não interessam as demonstrações de inocência provável do investigado/acusado, porque são antiestéticas. Sacrifica-se, com arrogância moralista, essa inocência pelo amor ao castelo teórico montado.
Foi assim que José Genoíno entrou na APn 470: apesar de nada haver contra ele a não ser duas assinaturas em contratos que foi obrigado, como presidente do Partido dos Trabalhadores, a avalizar, foi socado no “núcleo político” para, ali, se desenhar uma quadrilha e chegar a José Dirceu. Todos sabiam da fragilidade da prova contra Genoíno, a ponto de uma magistrada tê-la expresso, mas votando pela condenação desse réu “porque a doutrina lhe permitia”.

Esses castelos teóricos são de uma perversão desumana intolerável. Pouco interessa que José Genoíno sempre morou na pequena casa geminada na divisa de São Paulo e Osasco, área de classe média baixa, e que nunca adotou hábitos extravagantes.
A ninguém interessou, naqueles dias, o tanto que Genoíno colaborara, na Constituinte de 1987-1988, com o lobby do Ministério Público para criar um órgão forte e eficiente. Ninguém se lembrou que era uma pessoa festejada por todos os procuradores-gerais, inclusive aquele que pediu sua prisão, sabendo-o inocente. O trabalho de se ter montado o “esquema” do “Mensalão” era mais importante, até porque a imprensa já o havia disseminado e o relator no STF já havia publicamente destratado os colegas que pudessem estar em dúvida a respeito.
Piores ainda são os castelos construídos por “task forces”, forças tarefas, criadas por Polícia e Ministério Público, com todo o estardalhaço e defendidas com unhas e dentes pelo juiz, pelo Conselho Nacional do Ministério Público que a premia e, claro, pela mídia interessada no desgaste desse ou daquele ator político alvo das operações. É que a montagem de uma força tarefa é feita com tanto rapapé que ela fica sob permanente pressão de apresentar resultados. Ninguém cria força tarefa para arquivar um inquérito.
Esse estardalhaço, por si só, fere mortalmente a presunção de inocência e vai consolidando na opinião pública a certeza do acerto da teoria inicial sobre o envolvimento dos atores escolhidos nos fatos supostamente ocorridos. O castelo teórico montado em força tarefa tem frequentemente como fundamento delações premiadas direcionadas a alvos previamente escolhidos pelos investigadores e pelo juiz para dar contornos de solidez ao modelo teórico concebido sobre os fatos em investigação.
Torna-se, pois, esse castelo, inexpugnável. Troca-se a ciência na investigação pela ideologia doutrinária. Passam-se a adotar até doutrinas estrangeiras fora de seu contexto e completamente deturpadas de seu significado original, como o instituto do domínio do fato (“Tatherrschaft”), concebido por Claus Roxin.
As forças tarefas revelam, no entanto, outro problema sério, afora a deficiência dos castelos teóricos.. É que são seus atores extraordinariamente empoderados no sistema constitucional brasileiro.
Diferentemente de outros modelos, no Brasil, a Polícia, o Ministério Público e o juiz não sofrem maior supervisão sobre a substância de seu trabalho. Na Europa continental, a polícia é supervisionada pelo Ministério do Interior; o Ministério Público, sujeito à supervisão concreta do Ministério da Justiça; o juiz, por sua vez, está sujeito à autoridade disciplinar do presidente do tribunal, escolhido pelo Ministro da Justiça. Já entre nós, cada um desses atores bate com a mão no peito e se gaba de sua independência funcional.
Não percebem, porém, nossos personagens públicos do processo penal, que sua independência é adequadamente calibrada na Constituição, na lei e em regulamentos. O juiz não tem liberdade de decidir extra petita; o Ministério Público tem independência que  é um “princípio institucional”, ou seja, não tem independência balizada pela lide já construída pelas partes.
Por isso, a independência funcional como princípio institucional encontra seus limites nos outros princípios institucionais.
A polícia, por outro lado, não tem independência funcional nenhuma. Ocorre que se consolidou o costume de se respeitar o trabalho individual de cada delegado.
No entanto, ninguém nega que, no Brasil, principalmente no plano federal, a Polícia detém um poder significativo de pressão que dirige contra o Legislativo, onde dispõe de bancada própria, e contra o Executivo: é mais fácil o Ministro da Justiça cair por conta de um conflito com o diretor-geral da Polícia Federal, do que o contrário.
O processo penal, para resguardar os direitos do investigado/acusado, tem que se organizar de outra forma, criando um sistema de “checks and balances” entre os três órgãos públicos envolvidos na persecução penal. Basicamente, se a Polícia, na investigação, comete algum abuso, este pode ser prontamente corrigido pelo Ministério Público; se o Ministério Público se houver além dos limites legais, recorre-se ao juiz, e, se o juiz praticar ilegalidade, tem a segunda instância para corrigi-lo. Cada um no seu quadrado.
Por essa razão, não há previsão constitucional de investigação criminal pelo Ministério Público, para que as atribuições não se misturem. Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal tem admitido excepcionalmente essa investigação, quando motivos extraordinários o recomendem. O que o acórdão deixou de enfrentar é que, se essa investigação é excepcional, deve ser motivada e a motivação submetida previamente ao juiz, que reconhecerá, ou não, a hipótese de excepcionalidade.
Depois de autorizada a investigação, ela deve seguir o rito do inquérito policial, com remessa, a cada 30 dias, dos autos para o juiz, para que ele supervisione a atuação dentro do sistema de “checks and balances”. Isso pressupõe que o juiz não seja parceiro do Ministério Público, combinando com este “o jogo”, sob pena de colocar em sério risco as garantias fundamentais do investigado/acusado.
Forças tarefas que envolvem trabalho conjunto de Polícia com Ministério Público na montagem do castelo teórico e na sua solidificação, sob a suspeita imiscuição do juiz em todas as etapas, são, por isso, inconstitucionais. Porque, se os três atores públicos se mancomunam, ao invés de se controlarem sucessivamente, o jurisdicionado fica sem ter a quem recorrer contra eventuais abusos articulados. Isso viola o princípio do amplo acesso à justiça (nenhuma lesão de direito poderá ser subtraída da apreciação do judiciário) e inviabiliza a garantia do devido processo legal. Forças tarefas podem ser legitimamente constituídas entre órgãos da mesma administração: Polícia e Previdência Social ou Polícia e Receita Federal, mas jamais em atuação conjunta com órgão parajurisdicional ou jurisdicional, pois quebra a dinâmica do controle sucessivo.
O que se percebe, hoje, na força tarefa da operação Lava a Jato é precisamente isso: Polícia, Ministério Público e juiz como parceiros de uma mesma empreitada, protegendo-se reciprocamente, tudo em nome da necessidade de rigor no combate à corrupção. Expõem-se castelos teóricos para o público que não são em absoluto conferíveis em suas premissas, para chegar a conclusões antecipadamente postuladas, por exemplo, de que Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente, era o chefe de uma organização criminosa instalada em seus governos.
Nenhuma prova sólida é apresentada, mas apenas suposições baseadas em duvidosas declarações de terceiros, muitos, verdadeiras testemunhas sem credibilidade, todas socadas nos “escaninhos” teóricos prévios. E, como dita o teorema de Clavius (Lex Clavius), na lógica silogística, ex falso sequitur quodlibet: do falso pode-se deduzir qualquer coisa. Se as premissas são falsas, a conclusão pode ser falsa ou verdadeira, isto é, ela será indecisível (afinal, se todos chineses falam português e Michel Temer é chinês, Michel Temer fala português…).
Mas fazem-se coletivas de imprensa em salas de conferências de luxo, alugadas com dinheiro público, para apresentação de vistosos gráficos de Powerpoint de impressionante fragilidade, sempre em prol de uma teoria prévia, que desconhece a dignidade humana e a presunção de inocência do investigado exposto, por darem-se como definitivos os pressupostos hipotéticos dessa teoria montada.
Para encerrar, é importante advertir que não se deve desconsiderar que o uso desse método de procurar explicar fatos complexos por uma série de hipóteses a serem testadas para formarem uma consistente teoria do crime atribuído ao investigado/acusado é um instrumento válido e legítimo, desde que, na busca da melhor verdade, se tenha flexibilidade no falseamento ou na refutação de uma ou outra hipótese e, com isso, permitir o reconhecimento da inocência de um ou outro implicado.
Importa, isto sim, os investigadores vestirem as sandálias da humildade e reconhecerem suas próprias limitações. O método não pode servir de “fait accompli”, fato consumado, anulando o esforço da defesa. Por essa razão, os três poderosos atores público têm que ficar, cada um, em seu quadrado, agindo discretamente para evitar expectativas públicas por esse ou aquele modelo hipotético e para tornar real a flexibilidade do falseamento teórico ou a superação da teoria posta, por outra, com fundamentos diversos, compondo novo paradigma. Só assim se garante ao jurisdicionado um “fair trial”.

Eugênio José Guilherme de Aragão: Doutor em direito pela Ruhr-Universität de Bochum (Alemanha), mestre (LL.M.) em direito internacional dos direitos humanos pela University of Essex (Reino Unido), foi Ministro de Estado da Justiça do governo Dilma e exerce, hoje, os cargos de Subprocurador-Geral da República no Ministério Público Federal e de Professor Adjunto na Universidade de Brasília.

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