sábado, 26 de agosto de 2017

A Herança Escravagista, a Classe Média e o Poder Econômico





ELITE PASSOU A PERNA NA CLASSE MÉDIA PARA SE APROPRIAR DO PAÍS

 Texto original:

Texto editado/NMM


Em seu novo livro, A elite do atraso – da escravidão à Lava Jato, o sociólogo Jessé de Souza discute o golpe contra Dilma e mostra como a escravidão moldou nossas relações sociais nos últimos três séculos; para Jessé, “nossa elite montou uma relação de convencimento com a classe média para saquear a riqueza de todas as classes ao máximo”.

Em entrevista ao caderno Extra Classe, do jornal Zero Hora, discute os conceitos abordados no seu novo livro, analisa a conjuntura política, o golpe, e compara a realidade brasileira com a de outros países.

Extra Classe – Qual a relação do contexto atual com as origens da sociedade brasileira que o senhor aborda no seu livro?

Jessé de Souza – A imagem do Brasil que temos hoje, que nos é repassada nas escolas, em livros, jornais e outros meios, é uma imagem falsa. Ela afirma que viemos de Portugal e que, por conta disto, somos patrimonialistas, temos uma tendência à desonestidade e a corrupção.

EC – É sempre colocada a relação entre o patrimonialismo e o clientelismo existentes e a ‘herança portuguesa’. É um equívoco?

Souza
 – Exatamente. Somos moldados por instituições. E a instituição mais importante que temos no Brasil é a escravidão. Então como fica esta história do ‘viemos de Portugal’ para explicar determinadas questões, se não havia escravidão lá? Essa explicação determina que nosso mal é a corrupção e que ela está na política e no Estado. E, assim, garante invisibilidade para a real corrupção, que nos dias de hoje é a montada pelo mercado, pelos oligopólios e atravessadores. Isto faz com que a base real do poder fique invisível.

EC – Qual é essa base real do poder?

Souza
 –Se fizermos uma analogia entre esta corrupção que está tão na moda hoje em dia e o narcotráfico, os políticos desempenham o papel dos ‘aviõezinhos’. Eles não são os chefes, eles ficam é com as sobras. Quem realmente assalta a população são os oligopólios que impõem preços e os atravessadores financeiros que impõem a taxa de juros mais alta do mundo, embutida em tudo o que compramos. O nosso dinheiro, o de todas as classes, vai para essa pequena elite financeira. A construção real é esta.

EC –A base sobre a qual o país se estabeleceu como tal é a escravidão, é isso?

Souza
 – Sim, exatamente. A transmissão cultural não se dá biologicamente. No caso de uma sociedade na qual a escravidão tem papel determinante, uma parte desta sociedade considera que os escravos não são gente. Como nunca vimos a escravidão como nossa fonte, nossa real questão, como consideramos que ‘viemos de Portugal’, não refletimos efetivamente sobre essa questão. E o passado sobre o qual não há reflexão está condenado a se repetir de outras formas. No Brasil, a forma foi a do ódio aos pobres. Somos um Estado no qual existem políticas formais desse ódio aos pobres. A matança dos pobres, as chacinas, verdadeiros absurdos, uma parte expressiva da classe média aplaude. O que isso mostra? Um ódio típico de regimes escravocratas.

EC – Qual a relação entre esta origem escravocrata e a indignação contra a corrupção e os escândalos da política?

Souza
 –No ano passado, foi feito um golpe por conta de uma indignação contra a corrupção. Hoje a corrupção está muito maior do que em 2016, e não vejo ninguém bater panela e vestir camisa amarela. Então, é só a corrupção ligada a um partido. O tema da corrupção foi um mero pretexto. O que estava indignando os setores de classe média? As reformas, por sinal muito lights, que o PT estava fazendo. Elas estavam relacionadas à diminuição da distância entre as classes. As pessoas se incomodarem com a diminuição desta distância é algo escravocrata entre nós.

EC – Este ódio que o senhor atribui à classe média não é disseminado também entre pobres e ricos?

Souza
 – No começo do século 20, após a Abolição, uma parte da população abandonada pela sociedade é explorada pela classe média como mão de obra barata para tração animal. Essa ralé de novos escravos é constituída e mantida sob o ódio, como se fosse culpa dela. Os pobres não são instigados a ter opinião própria. Foi construído entre nós um mecanismo no qual os ricos não possuem só os meios de produção material, mas também os meios de produção simbólica: a informação e o conhecimento.

EC – Não é confortável atribuir a responsabilidade exclusivamente às elites?

Souza
 – Nossa elite é tão saqueadora, abusiva e rapineira como a elite de uma sociedade escravocrata. O plano da nossa elite é saquear a riqueza de todas as classes ao máximo a cada ano. É uma elite do saque. Não é como a japonesa, a francesa ou a alemã. Porque as elites, em todo o lugar, ficam, é claro, com a parte melhor do bolo. Mas elas têm planos de longo prazo, até porque esses planos são importantes para que elas se mantenham comendo a melhor parte do bolo. A nossa não. A nossa quer o saque imediato. E essa elite montou uma relação de convencimento com a classe média. Para os pobres a gente passa o pau, manda a polícia. A classe média a gente convence. E assim se moldou uma intelectualidade que diz besteiras como a de que viemos dos portugueses, que trata de uma herança ibérica maldita, de corruptos, e de uma autoestima de vira-lata… É uma loucura repetida por grandes intelectuais: Sérgio Buarque, Raimundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, Roberto DaMatta. Esse pessoal todo desenvolveu essa linguagem e ela não fica só nos livros. Ela é repetida na sociedade, nas escolas e, principalmente, na mídia.

EC – Mas, atualmente, não existem muito mais mecanismos que possam barrar esta espécie de retroalimentação de um sistema?

Souza
 –Isso é repassado em canais de rádio, televisão e outros meios para a população. Então, o que é passado para a população como um todo é essa leitura interessada em definir que a corrupção é dos políticos e do Estado, e que o mercado é um santo, que pode ser definido com um conceito de paradisíaco, um lugar no qual só existe gente boa. E as pessoas acreditam nisso. A sociedade não é contraposta a ideias divergentes. Você já viu um programa na Rede Globo que apresente opiniões distintas? Eu nunca vi.

EC – O senhor trata também da ascensão da ‘nova classe média’ nos governos petistas e aponta equívocos no processo. Essa ascensão acirrou ainda mais os ânimos de todas as partes?

Souza
 – Isso piorou. Porque foi um marketing pouco inteligente da parte do governo. O que houve: foram criados mecanismos extremamente importantes do aumento do poder de compra, com 70% de aumento real do salário mínimo, 10 milhões de empregos formais, acesso à educação, aumento de alunos negros em salas de aulas. Agora, era preciso construir uma narrativa para essas ações. Era preciso dizer a essas pessoas: ‘olha, conseguimos isso agora, e mais adiante teremos a batalha da educação, a batalha de construir uma matriz econômica para que as pessoas possam ter um emprego melhor’. Não houve nada disso, ou seja, não se construiu uma narrativa. Os seres humanos precisam de uma interpretação sobre o que estão fazendo. E então, depois, houve quem se surpreendesse com o fato de o povo não sair às ruas para defender Dilma Rousseff. Ora, você não explicou ao povo a sua defesa! Foi um erro.

EC – Dizer que milhões de pessoas haviam chegado à classe média também foi um erro?

Souza
 – Sim, foi um erro. O acordado entre a classe média e a elite pressupõe que a elite fique com o capital econômico e a classe média fique com os bons empregos, a supervisão, o controle e a legitimação do sistema: advogados, economistas, juízes e etc. A classe média tem acesso privilegiado a capital cultural, extremamente importante porque depois permitirá o acesso aos empregos com salários importantes, reconhecimento e prestígio. Por conta disso, a classe média se apega a esses privilégios e os repassa a seus filhos. Ou seja, é um esquema de reprodução da dominação. Também não houve uma narrativa explicitando esta luta, informando os passos das melhorias e dizendo que isso demanda tempo. Foi um trabalho muito malfeito.

EC – Uma das maiores críticas aos governos petistas é de que deixaram intocados privilégios e concentração de renda das elites. O senhor discorda?

Souza
 – Não se tocou nas elites por uma razão muito óbvia hoje. Porque, se fosse assim, o presidente Lula não conseguiria sequer assumir a presidência. Essa elite econômica, os grandes bancos, os grandes atravessadores financeiros, os grandes oligopólios, esse pessoal tem o controle, esse pessoal manda em tudo. Nas grandes cadeias de TV podem difamar, podem mandar alguém para o céu ou para o inferno. Podem comprar o Parlamento. Mas o que faltou não foi um acordo inicial. Foi, com o tempo passando, não se ter pensado modos de criação de anteparos para que o povo também tivesse uma educação política melhor. Teria sido muito importante uma televisão pública. Não uma TV estatal. Uma TV pública, onde pessoas com suas posições pudessem expor seu pensamento. Não o que a Globo e a Bandeirantes fazem. Elas colocam cinco ou seis pessoas com a mesma opinião, criam um circo, uma palhaçada de pessoas passando a bola uma para a outra.

EC – A sociedade brasileira é dissimulada? O senhor diria que a homogeneização não é um objetivo de fato da sociedade brasileira?

Souza
 – Exatamente. Os problemas históricos vêm de alguns processos de aprendizado. Estive muito tempo na Alemanha, um país com uma grande mancha histórica, o nazismo. Em decorrência disto, a sociedade moderna alemã foi moldada contra o nazismo. Isto é estudado em todas as escolas, saem documentários em todos os lugares. Vamos comparar: a nossa escravidão, o tema é romantizado em novelas e tal. Ora, deixamos de chamar favelas de favelas e passamos a chamar de comunidades. Não enfrentamos as questões efetivas. O dinheiro invade as esferas e impõe visões de mundo relacionadas a sua própria reprodução. É uma realidade que se assemelha bastante aos Estados Unidos, um país muito rico, mas que possui uma desigualdade e uma violência muito semelhantes às nossas.

EC – O senhor considera a desigualdade dos Estados Unidos semelhante à brasileira?

Souza
 – Nos Estados Unidos você admite que existem pessoas que tem, que devem ter, uma vida muito pior do que a sua, como os negros, os latinos, os mais pobres. Os Estados Unidos aceitam isso. É algo que ocorre também por conta de um passado escravocrata. Longe de ser o melhor país da terra, como os liberais brasileiros pensam, os Estados Unidos são um país muito complicado: a desindustrialização, a captura do capital financeiro da sociedade inteira, o tipo de reação, a linguagem do ódio, a linguagem não refletida. Estados Unidos e Brasil são muito semelhantes neste aspecto. O que não há são os aspectos da socialdemocracia europeia, onde há uma homogeneização de direitos à saúde e à educação muito mais generalizada do que em países como Estados Unidos e Brasil. Além disso, ninguém faz uma corrupção sistêmica e mais profissional do que os americanos.


EC – A partir de toda essa genealogia que o senhor recupera, é possível vislumbrar uma sociedade mais igualitária?

Souza
 –Estou um pouco otimista. A parte fascista da classe média, que é assim de berço, não vai mudar, porque este é o discurso que legitima sua vida e seu ódio. Agora, que o golpe foi um esquema montado, uma mentira para a qual contribuíram as corporações jurídico-policiais, e no qual também entraram os grandes canais de comunicação, isso é flagrante. Esse pessoal está condenado a repetir a mentira. O que não percebem é que esses interesses precisam ser legitimados e que essa legitimação hoje é impossível. Como o Lula é condenado sem provas, enquanto permanecem soltas pessoas que efetivamente cometeram crimes documentados e mostrados em todas as redes? É uma injustiça que qualquer pessoa percebe. Ouço isso nas esquinas, nas ruas, na padaria… A operação Lava Jato foi o emissário desta mentira. Agora há o refluxo dela, e espero que consigamos tirar as lições disso e refazer as coisas de um modo melhor. Esse tipo de coisa não pode acontecer em um país democrático. Então, acho que vamos aprender. Sou otimista e acredito que as eleições de 2018 serão muito diferentes das eleições municipais de 2016, que foram manipuladas pela mídia e pela Lava Jato.

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