A lei não é para todos
Como a
Lava Jato reforça no país uma ideia perigosa: a de que prisão é justiça
Texto original:
Texto editado / NMM
A Operação Lava a Jato presta um grande serviço ao Brasil ao revelar a relação de
corrupção entre o público e o privado; e um grande desserviço ao reforçar uma
das ideias mais perigosas: a de que prisão é sinônimo de justiça.
O fato de a grande
“purgação” nacional se dar por crimes contra o patrimônio e não por crimes
contra a vida reforça uma deformação: a de que a vida humana vale pouco, o que
importa é o patrimônio. Essa deformação é constitutiva do Brasil e, com a Lava
Jato, se tornou ainda mais cimentada.
Prisão como sinônimo de
justiça é ideologia que cresceu e se ampliou com programas
policiais/sensacionalistas de TV. Com a Lava a Jato, essa ideologia foi ainda
mais reforçada: os que nunca eram presos, os ricos, os poderosos, os
políticos... foram alcançados.
Os operadores da Lava
Jato compreenderam bem o anseio popular, produzindo imagens de empresários e políticos
algemados e humilhados. Foram imagens produzidas para o gozo da população. E
esta é uma escolha política.
A Lava a Jato tem o
efeito de produzir uma ideia de que, agora, a justiça é para todos. Esta ideia,
porém, é comprovadamente falsa.
Com
mais de 650 mil presos, temos a terceira maior população carcerária do mundo,
composta por pessoas negras, pobres, com pouca escolaridade e homens
jovens, o que significa que está se encarcerando a juventude do Brasil. Quem mais morre
assassinado no Brasil são as pessoas presas. A política de encarceramento dos
jovens pobres e negros e com pouca escolaridade se revela também uma política
de extermínio. E assim o país perde parte de sua juventude e de sua força de
trabalho.
No Brasil, a maioria dos
presos praticou crimes contra o patrimônio e relacionados a drogas.
As superlotadas e
perigosas prisões brasileiras estão abarrotadas de pessoas sem antecedentes
criminais, que não deveriam estar lá.
Na prática, o
“usuário” é o branco de classe média e alta, escolarizado – e o “traficante” é
o negro e pobre com pouca escolaridade. Os grandes traficantes de drogas
raramente são alcançados.
A política de
“guerra às drogas” é um desastre: genocida, cara e ineficiente.
Rafael
Braga foi preso por portar desinfetante Pinho Sol e água sanitária da marca
Barra. A Polícia Militar o acusou de portar material explosivo. Depois de dois
anos na prisão, em janeiro do ano passado Rafael estava cumprindo pena em
regime aberto, quando foi novamente preso. Os PMs afirmaram que ele
portava 0,6 grama de maconha, 9,3 gramas de cocaína e um morteiro. Rafael diz
que o material foi plantado. Ainda assim, foi condenado a 11 anos e três meses de prisão. O Instituto
de Defensores de Direitos Humanos tentou reverter essa decisão, mas os
desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio mantiveram Rafael preso.
Como comparação: em
julho, o desembargador José Ale Ahmad Neto deu habeas corpus a Breno Borges,
filho da presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul, Tânia
Garcia Freitas. Breno havia sido preso em flagrante, com 129,9 quilos de
maconha e munições para armas de calibre 7,62 mm e 9 mm. Depois de dois meses
na prisão, foi transferido para uma clínica para “tratamento contra o
transtorno de personalidade borderline”.
A desigualdade
entre Rafael e Breno começou na base. É racial e é social.
Não, a lei não é
para todos.
Quase
40% das pessoas presas hoje no Brasil estão lá sem jamais terem sido julgadas.
Há vários presos da Lava
a Jato que tiveram prisão domiciliar decretada por razões de saúde. No último
30 de agosto, a desembargadora Katya Maria de Paula Menezes Monnerat negou o
mesmo direito a Rafael Braga, que precisa tratar a tuberculose. Os presos da Lava a Jato
têm o direito legal de ter sua saúde levada em consideração pelo sistema
judiciário; o que aponto é a quantidade de presos negros e pobres que adoecem na
prisão e com frequência morrem antes de serem libertados.
Não, a lei não é para
todos no Brasil.
Será lançado o filme Polícia Federal - A Lei é Para Todos, perigoso título por todas as razões e porque a Lava a Jato reforçou a
deformação de confundir prisão com justiça. E também a deformação de valorizar
mais o patrimônio do que a vida. Me parece perigoso principalmente porque
reforça a ideia de que agora há igualdade na aplicação da lei. Deveria haver,
mas não há.
Na plateia do
pré-lançamento do filme em Curitiba, o juiz Sergio Moro, o procurador DeltanDallagnol
e outros protagonistas faltaram com a ética. Como funcionários públicos, com as
responsabilidades que têm, devem respeito ao público.
O filme Lula, o filho do Brasil, fez
uma peça de propaganda ruim. É bastante provável que o filme da Lava a Jato
tenha a pretensão de influenciar o momento e as eleições, como o de Lula também
tinha.
Um documentário que
mostra a política de encarceramento nos Estados Unidos, A 13a Emenda, pode nos ajudar a recolocar o
tema da desigualdade onde ele deve estar e impedir as sucessivas tentativas de
mascará-lo.
O Brasil já é um país-condomínio e um país de cadáveres
insepultos, porque morreram sem justiça, às vezes sem nome. Quem berra “tem que
prender”, “tem que matar” talvez pense que a solução seja botar metade do país
na cadeia. Mas, cuidado: talvez você acredite que está numa metade e, quando
perceber, o despacharam para a outra.
Eliane Brum é escritora,
repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna
Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina
Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/
Facebook: @brumelianebrum
2 comentários:
A situação tá bastante complicada.
Eu, por exemplo, não consigo mais acreditar em coisas que leio (verdadeiras ou não).
Só consigo acreditar no que sinto.
E, pra piorar... a gente quase nunca entende direito alguns tipos de sentimentos.
A parte de que eu mais gostei:
"E assim o país perde parte de sua juventude e de sua força de trabalho".
Este "parte" só serve para isso mesmo: trabalhar duro e ser maltratada e mal remunerada!
Karl Marx "está rolando no túmulo"!
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