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Entrevista com o sociólogo Jessé Souza
O sociólogo Jessé Souza escreveu livros como A Ralé Brasileira (2009), A Tolice da Inteligência Brasileira (2015), A Radiografia do Golpe (2016) e A Elite do Atraso(2017). Está lançando A Classe Média no Espelho (novembro de 2018). A entrevista capta suas reflexões sobre o momento brasileiro.
Em tempos de pós-verdade, fake news e “disputa de narrativas”, qual foi o peso da confusão entre verdade e mentira na ascensão de Bolsonaro?
A elite econômica expropria a maior parte da população a
partir de uma mentira, uma visão distorcida da sociedade. É como dizer: o mundo é assim, ponto. E uma das
mentiras é “querer é poder”: se você fracassa, a culpa é só sua – e não de um
sistema injusto e explorador. Se você não compreende as causas de sua miséria
econômica no capitalismo, você está condenado a atribuir seu fracasso pessoal a
você mesmo ou, como foi feito, a políticos corruptos.
A única forma de combater a mentira social é com a prática da verdade, a
arma dos frágeis. E as pessoas são historicamente acostumadas a ouvir a
mentira, pois a verdade muitas vezes pode ser bastante incômoda.
Como a ideia de que o presidente eleito é
antissistema e anticorrupção acabou vingando?
Desde que o Brasil é Brasil, e principalmente a partir de
2013, a elite econômica conseguiu consolidar a ideia de que o empobrecimento da
população teria sido causado apenas pela corrupção política, o que é uma
mentira.
A imprensa e a Lava Jato criminalizaram a Petrobras,
deixando-a pronta para vendê-la a preço de banana. A Lava a Jato prendeu meia
dúzia e deixou invisível o saque real trilionário de uma elite proprietária e
uma alta classe média. O foco na corrupção política invisibilizou os juros
extorsivos embutidos nos preços, a estarrecedora exploração do rentismo e a
corrupção legalizada dos donos do mercado. A boca de fumo da corrupção está no
Banco Central, que assalta legalizadamente a população. Mas as classes
exploradas economicamente acreditaram na balela: ficamos mais pobres por conta
do roubo de políticos. É óbvio que a corrupção política é recriminável, mas não
foi ela que deixou a população mais pobre. Esta é a grande questão que ficou
fora do quadro. E era o que importava nas eleições.
A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas
eleições. Tanto Haddad quanto Ciro Gomes elogiaram a Lava Jato, o bode expiatório
da corrupção política. Dentro da própria esquerda, ninguém problematizou o
rentismo, ninguém questionou: nós todos pagamos juros que vão para o bolso de
quem? Esse assalto econômico não é visto como corrupção. O principal dispositivo
do poder é se tornar invisível. E o poder econômico é ainda mais invisível.
Qual é a sua definição de classe média?
Classe social não é definida pela renda. Renda é um
resultado, considerando a vida adulta. O privilégio da elite econômica é
econômico, a propriedade. O privilégio da classe média,
que corresponde a 20% da população brasileira, é principalmente o acesso a
capital cultural. Isso explica, por exemplo, a raiva de parte da classe média
ao ver pobre entrando na universidade, que era seu “bunker” que garantiria
salários melhores, mas também reconhecimento e prestígio.
Você diferencia “alta”
(equivalente aos segmentos superiores da classe A) e “massa” da classe média
(as chamadas classes A e B). Seguindo esse paralelo, onde estaria a dita classe
C?
[A classe C] foi uma bobagem da propaganda do PT. No
Brasil, temos quatro grandes classes: uma ínfima elite econômica proprietária,
uma classe média de 20%, uma classe trabalhadora majoritariamente precária e
uma classe marginalizada que está fora do mercado competitivo. O PT ajudou os
marginalizados subirem à classe dos trabalhadores, o que é histórico e
extremamente importante. Por miopia política, isso foi interpretado por
marketing malfeito como “chegar à classe média”, o que também é uma mentira. E
é preciso saber a verdade: seria preciso montar um projeto político de longo
prazo e dizer “um dia” vamos chegar a uma sociedade de classe média real. Dizer
que renda média é classe média é uma idiotice. Renda média de um país pobre
equivale à renda da classe trabalhadora, que é precária.
Se há uma vocação vira-lata da alta classe
média, “que considera melhor tudo o que vem de fora”, segundo sua expressão no
livro, os alertas de diversos veículos da imprensa internacional, como The
Economist, The New York Times e Le Monde, não deveriam ter pesado nas eleições?
Classe não é definida por critérios econômicos. A classe
média nasce com o capitalismo e começa a ficar
realmente importante com o capitalismo industrial. E se cria uma alta classe
média, que representa interesses da elite: o CEO de um banco, por exemplo, não
é um banqueiro. O primeiro é alta classe média, o segundo é elite.
Mas o CEO tem a ilusão de se considerar parte da elite e,
portanto, defende interesses de seus patrões. E assim molda uma distinção
diante das outras classes, a partir do alto consumo de bens importados, por
exemplo. Ele quer se sentir um pouco europeu, um pouco americano, dentro de seu
próprio país. Só que a alta classe média é muito conservadora e faz qualquer
negócio para manter seus privilégios. Ela não tem sensibilidade em relação ao
restante da sociedade, portando-se como uma elite estranha ao próprio país.
Há ainda divisões dentro da alta classe média: uma fração que
se importa com um mercado interno pujante; e uma fração predominante do
agronegócio e mercado financeiro, voltada para o mercado externo, que fica rica
independentemente se o país vai bem ou vai mal. Temos, afinal, uma elite de
herança escravocrata que pensa a curto prazo: quero o meu agora, não me importa
projeto de futuro. Isso amesquinha o país como um todo.
Antes era o escravo; agora a maior parte da população brasileira faz
trabalho semiqualificado ou desqualificado. E é
excluída das benesses do mundo moderno. O que antes era ódio ao escravo, agora
é ódio ao pobre. E parte da classe média tem muito medo de descer à condição de
pobre. Afinal, classe não é só um cálculo econômico, mas um cálculo moral de
distinção social.
No livro, você projetou que muitos se
voltariam “ao voto de protesto desesperado e irracional” de apoio a Bolsonaro.
Passadas as eleições, pensa a vitória como “voto de protesto”? Ou de uma busca
genuína por mudança?
O que está acontecendo hoje faz parte de um processo de
luta de classes desde 1930. A elite montou o domínio simbólico, moldando a
visão de mundo da classe média. Para a alta classe média, esse discurso é
racional e pautado pelo interesse econômico: estou ganhando mais. Mas, para a
massa da classe média, é irracional: para pensar que está ganhando algo, uma
recompensa moral, a massa da classe média protestou e se portou como “ah, sou
moralmente superior do que as classes populares, estou escandalizada porque combato
a corrupção política”. Foi explorada.
Mas a ideia de que o empobrecimento ou o
risco de empobrecimento estaria ligado organicamente à corrupção…
Corrupção política. Desculpe interromper, mas veja que,
sem querer, você equalizou corrupção e corrupção política.
Sim, corrupção política. Você diria que a
construção desse discurso escapou ao controle de quem o construiu – parte da
imprensa, como indica no livro? Se a população brasileira fosse tão
“manipulável”, como compreender críticas tresloucadas e o bordão “o povo não é
bobo, abaixo a Rede Globo”, capturado por militantes de direita a partir de
2013?
Nossa imprensa é venal, desde o início comprada pelo
mercado. Nunca tivemos uma imprensa confrontando o poder de forma plural.
A imprensa atacou o governo, pois a presidenta, um pouco
estabanadamente, atacou o juro, o lucro dessa elite, a partir de 2012. Isso foi
usado contra o governo eleito e que era tudo menos corrupto – a presidenta não
roubou um lápis que seja. Mas o ataque midiático se voltou a todos os consensos
morais de uma democracia: não se pode expurgar a presunção de inocência,
banalizar vazamentos ilegais, banalizar desrespeito de direitos fundamentais.
Isso é a base de uma democracia.
A imprensa ajudou a fazer terra arrasada disso e, depois,
veio a eleição de Bolsonaro como uma espécie de vingança das classes médias e
parte das classes populares contra esse estado retratado como corrupto. Se você
ataca a democracia como um todo, obviamente você ataca a liberdade de
expressão. Tecnicamente, a imprensa toda foi muito burra. Entenda-se: burrice é
pensar a curto prazo, seja para o bem seja para o mal; inteligência é pensar a
longo prazo, seja para o bem seja para o mal. Ela pisoteou a democracia, e
agora vai ter uma vida muito difícil. Parte da imprensa e setores da alta
classe média deram um tiro no pé. Se isso terminará num banho de sangue, numa tribalização
da sociedade ou numa tomada de consciência, ninguém sabe dizer. Mas que será
problemático, será.
Nos últimos tempos, o caráter fascista ou
não das ideias representadas por Bolsonaro foi muito discutido. Você teme que a
expressão “fascismo” se desgaste tal qual “populismo”?
Não. O principal mecanismo do fascismo é a desumanização,
o não reconhecimento do outro. Obviamente há elementos fascistas nas ideias do
presidente eleito: apologia da tortura, assassinato de adversário político
etc. Historicamente foi assim: o fascismo pega a raiva e o ressentimento da
classe média e do povo e joga num bode expiatório socialmente aceitável. Logo,
estamos num contexto de neofascismo, junto a uma dominação do capitalismo
financeiro: na economia, invisibiliza, deixa opacos elementos econômicos; na
política, provoca desmobilização popular.
Nos Estados Unidos de Donald Trump e no Brasil de
Bolsonaro, o capitalismo financeiro quebra e destrói relações sociais e vida
associativa, provocando desorientação e isolamento do indivíduo. E, novamente,
é dito a ele que o fracasso é culpa dele – e não de um sistema injusto. É uma
estrutura fascista, e que vive do mesmo tipo de desrespeito e desumanização que
fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o outro, por pensar diferente,
merece morrer. E a classe média, que sempre odiou o pobre, agora está se
sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse ódio. No fim, o ódio é
exatamente o que o fascismo produz.
Você usou muito a palavra “golpe” para
tratar do impeachment de Dilma Rousseff. Pensa que a palavra foi desgastada?
Não. Foi um golpe de novo tipo, articulado por uma
situação econômica. A causa de tudo
foi a tentativa de se apropriar do orçamento público e do mercado interno via
juros. Foi um golpe parlamentar, mas qual é a independência que esse parlamento
tem? Um parlamento de baixíssimo nível, eleito com dinheiro de bancos e grandes
corporações. A presidenta tinha feito um enorme esforço para diminuir os juros
e usado os bancos públicos para isso. De uma hora para outra, empresas deixaram
de investir, e a imprensa inteira passou a atacá-la.
Mas, veja, a elite se apropria do que é público mediante
parcerias público-privadas. Entretanto, foi ensinada a imbecilidade de que o Brasil
é corrupto por causa da herança de Portugal, uma mentira legitimada com
prestígio científico nas universidades.
Dias antes do segundo turno, universidades se tornaram alvo de diversas ações de fiscalização. Dias depois do segundo
turno, investidas do Escola Sem Partido avançaram com denúncias contra docentes
“doutrinadores”. Ainda há pensamento crítico e resistência nesses espaços?
Como você mantém uma população inteira precarizada? Você
pega a escola. O privilégio positivo específico da classe média é este:
estímulo para estudo. Você é aparelhado psicológica e moralmente: espera bons
salários e prestígio. O pobre já é tratado como um perdedor, num abandono
secular e cumulativo. Depois, você vê a classe média culpando a classe pobre, dizendo
que ela é preguiçosa e indolente – e que o mérito do seu sucesso é só seu.
Assim, a sociedade brasileira sacramentou dois caminhos: um, da felicidade;
outro, do fracasso.
Quais são os dois pilares do desenvolvimento de um país? Indústria e educação.
Só que a educação está toda montada dentro de um contexto elitista. É Paulo
Freire, pensamento crítico e educação libertadora para a classe média; e trevas
para a classe trabalhadora: duas educações, duas classes, dois tipos de
indivíduo.
Você declarou, certa vez, que o “que provoca
efetiva dor de cotovelo nos meus detratores é o fato de ter conseguido expor
questões complexas de modo simples”. Para quem você escreve?
Não quero falar para seis pessoas. Nenhum povo pode ser senhor
do seu próprio destino sem conhecimento. E conhecimento deve ser compreensível.
Não é por falta de conhecimento prévio e formação acadêmica que a pessoa
não vai entender o livro. É por falta de coragem: aprender é um ato de coragem.
A ciência pode ser libertadora; o conhecimento, empoderador. Imagina se o povo
brasileiro compreende que está sendo enganado?
No campo da linguagem, destacaram-se
autores de direita como Olavo de Carvalho, tido inclusive como intelectual
vencedor dessa eleição. Como ele conseguiu arregimentar tantos adeptos?
A sociedade brasileira está em
uma esquina.
Algumas pessoas estão começando a compreender o tamanho da fera que está a um
metro de nós. E, agora, ou a gente reformula esse comportamento, ou nós todos,
como país, vamos perder. Esta questão está muito presente agora. Principalmente
entre a esquerda colonizada por uma linguagem que só beneficiou a direita.
Você chegou a ser chamado de
‘Olavo de Carvalho da esquerda’. O que pensa da comparação?
A Elite do atraso teve
muita repercussão. Retornos de pessoas simples me comoveram muito. Efetivamente,
penso que pude fazer, pela primeira vez, uma interpretação crítica da sociedade
brasileira de fio a pavio. [O que propus no livro] compromete toda uma
tradição de pensamento, de direita e de esquerda. O núcleo dessa tradição, esse
liberalismo chique, aceita a ideia de corrupção política. O novo livro, A
classe média no espelho, é
uma continuidade. Trago uma visão mais sofisticada e crítica do que a tradição
intelectual brasileira. Estudei todas as classes anos a fio, dediquei uma vida
inteira a isso. Logo, interpreto esse tipo de
interpelação como inveja.
Por fim, professor, como você se vê diante
do espelho?
No fundo, minha atividade é intelectual. E o intelectual,
para criticar e inclusive para se autocriticar, precisa conhecer. Eu também achava
que meu público se limitava a uma dezena de pessoas que poderia compreender o
que eu estava dizendo. É isso, afinal, que as classes procuram: se distinguir
uns dos outros. Isso move o ser humano tanto quanto dinheiro.
E me questionei: numa sociedade perversa como a nossa, que
peso a massa da classe média tem sobre a pobreza dos pobres?
Foi uma epifania quando compreendi que alguns, pensando
que estavam à esquerda, estavam montando de uma forma ideológica o poder de
meia dúzia de proprietários. A partir da crítica da minha própria posição, tentei
a começar uma autocrítica e uma crítica da própria sociedade que tinha me
marcado essa visão de mundo.
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