Neoliberalismo, distopias e Bolsonaro presidente
09 Novembro 2018
Texto original:
“A função do Direito
é procurar a Verdade.” “Escrever é procurar a Verdade.”
O autor dessas
frases é o criador deste blog – não por acaso chamado Satyagraha, termo hindi que significa “apreço pela verdade”. Mesmo
naqueles remotos tempos da juventude, entretanto, ele tinha consciência de que
tratava-se de pensamentos mais idealistas
do que realistas. Certamente, num
mundo ideaI, um mundo platônico, a Justiça e a escrita
estarão a serviço da Verdade; mas os fatos, no mundo e no Brasil, mostram que
ambas têm trabalhado contra a
Verdade, contra o povo, a serviço do poder econômico.
Esse tem sido um dos
temas recorrentes neste blog: a mentira. É o que está na base de textos como O ódio a Lula e a fábrica de zumbis, O Brasil, o Diabo e os detalhes, Os efeitos da radioatividade midiática, Manual de autoajuda do iludido político,
Manual II, Manual III e A tulipa podre.
Mas o blogueiro
bissexto é apenas um “escriba eternamente aprendiz e filósofo amador” – como se
definiu quando lhe pediram um perfil sintético. Portanto, é interessante quando
constata que o discurso que vem há anos fazendo no deserto das redes sociais,
na contramão da doutrinação midiática, é resumido no texto de professora
calçada em títulos acadêmicos e amparada por pensadores de diversas disciplinas.
A seguir, o artigo
editado de Leda Paulani.
Nelson
M. Mendes
Leda Paulani
é formada em Economia pela FEA-USP e em Comunicação Social pela ECA-USP. Possui
Doutorado em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da
Universidade de São Paulo - IPE/USP (1992). É livre-docente junto ao
Departamento de Economia da FEA-USP (2004). É professora do Departamento de
Economia e da Pós-graduação em Economia da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade da Universidade de São Paulo - FEA/USP desde 1988 e professora
titular na mesma unidade desde 2007.
_______
A eleição de Jair Bolsonaro para
a presidência da república do Brasil deixa
o mundo estarrecido. Mesmo para um nome da extrema-direita, como a
francesa Marie Le Pen,
ele causa repulsa: “suas declarações são inaceitáveis”, ela diz. Só Trump parece
relevar tudo isso e louva, pelo Twitter, a conversa alvissareira que teve, em
30 de outubro, com o presidente eleito.
Cabe uma
reflexão profunda para que se possa identificar as causas desse terremoto anticivilizatório, que
será discutido e estudado por décadas a fio.
Um
fenômeno dessa magnitude
não pode ser explicado mobilizando-se apenas variáveis relativas às questões
sociais e políticas internas ao país. Além disso, o mundo é hoje cada vez mais
integrado, seja por conta da forma que foi tomando o processo de acumulação de
capital desde o início dos anos 1980, seja pelo desenvolvimento das tecnologias
de informação e comunicação. Nosso primeiro olhar vai, portanto, para o cenário
externo.
Depois de mais
de três décadas de ascensão das políticas
neoliberais mundo afora, o neoliberalismo parece
ter chegado num ponto de saturação e sem ter entregue aquilo que prometera. No
início dos anos 1980, alegavam que a estrutura institucional do pós-segunda guerra mundial –
com controles, regras – era deletéria para o desenvolvimento, e que a
liberalização financeira traria melhores tempos para todos os países,
potenciando o crescimento. O mesmo se dizia da generalização da abertura comercial.
Mas o resultado foi
o aumento da desigualdade,
o crescimento muito lento e o desemprego.
Tudo piorou com a crise financeira
internacional de 2008-09. O voto antissistema é uma consequência imediata
dessa situação. É por aí que devem ser explicados Trump, o Brexit britânico
e a ascensão de partidos e
políticos de extrema direita em todo o planeta, e agora também no Brasil –
que já estava nesse caminho desde o injustificável
impeachment da presidenta Dilma em 2016 e o início do governo Temer).
Por
que o sentimento antissistema parece antes contribuir para o aprofundamento do
modelo que é o responsável pela situação ruim? Por quê?
A
resposta a essa pergunta passa por filósofos, pesquisadores de costumes, antropólogos
urbanos, sociólogos. Na quadra histórica que se inicia ao final dos anos 1970,
não foram apenas as máximas e as políticas
neoliberais que ganharam proeminência: a vitória
ideológica foi também retumbante.
A insistente pregação neoliberal, there is no alternative, foi instituindo,
no ideário sobretudo daqueles mais
negativamente afetados pela ascensão das políticas neoliberais,
os valores da concorrência, do cada um por si, do self made man, do mérito
próprio. A cooperação, a solidariedade, a importância do coletivo foram
atirados nos desvãos da história junto com o muro de Berlim. Como lembra Nancy Fraser,
mesmo as chamadas pautas identitárias (mulheres, LGBTQs, minorias raciais)
foram inteiramente capturadas pelo espírito the winner takes all. Não é de espantar que a
reação às mazelas do mundo
neoliberal, aprofundadas pela crise de 2008-2009, se virem
“contra” o sistema na direção errada e acabem por fortalecê-lo, arrastando para
os mesmos desvãos da história a própria democracia.
No
caso da vitória de Bolsonaro somaram-se
alguns elementos domésticos. Entre 2003 e meados de 2016 o Brasil foi governado
pelo PT.
A economia brasileira, apesar de continuar submetida a uma política econômica neoliberal, conseguiu
resultados positivos impulsionados pela boa fase da economia mundial pré-crise
e pelo efeito multiplicador dos massivos programas de renda compensatória, associados à elevação do valor real do salário
mínimo. Esses governos também brecaram as privatizações e, a partir de 2006,
deram forte impulso aos investimentos públicos. No mesmo sentido, a política
externa “ativa e altiva” do país ao longo desse período recusou a ALCA, fortaleceu os BRICS e o Mercosul e retirou o
país do costumeiro alinhamento direto com os interesses dos países
centrais, EUA em
destaque.
Apesar
do sucesso, sem que os interesses dos muito ricos tivessem sido afetados, as
elites do país nunca aceitaram o PT e
sua maior liderança, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O sentimento de
“perda” de poder foi magnificado por conta das políticas públicas dos governos
do PT,
que colocaram os mais pobres em espaços antes exclusivos das elites: os
aeroportos, as universidades, os shoppings mais chiques.
Assim, desde
pelo menos 2005, iniciou-se, com a inestimável colaboração da grande mídia, uma
implacável campanha de difamação e demonização do Partido dos Trabalhadores e
de suas principais lideranças. O sistema judiciário do país foi empreendendo uma “operação de limpeza”
seletiva, que passou a “julgar” e punir apenas os políticos e partidos de
esquerda, sobretudo do PT,
enquanto os demais políticos e partidos continuavam a ser tratados com a
habitual camaradagem. É nesse sentido que se devem entender o “Mensalão”, o infundado impeachment da presidenta Dilma,
a operação Lava-Jato,
a juridicamente insustentável prisão de Lula, e seu impedimento de concorrer às
eleições – sendo o candidato com quase o dobro das intenções de voto de Bolsonaro no início do
processo eleitoral (e isto mesmo com a determinação, duas vezes enviada ao
governo brasileiro pelo Comitê
de Direitos Humanos da ONU, de que se garantisse a Lula o exercício de
todos os seus direitos políticos).
Nas
últimas semanas do segundo turno, um dos argumentos que mais se ouvia era que
o PT era
o partido mais corrupto do país. Mesmo argumentando que o PT, por qualquer critério
que se escolha (políticos cassados, processados etc.) está sempre em 9º ou 10º
lugar, aparecendo na frente dele a maior parte dos partidos de direita e aqueles
que estão hoje no comando do país, sob o governo Temer, os eleitores continuavam
desconfiados, preferindo continuar a crer na imagem do partido em que foram
sendo doutrinados a acreditar por mais de uma década.
A
crise econômica internacional, que atinge o Brasil a partir de
2011, ajudou a engrossar as críticas ao PT e a seus governos. Os movimentos de
maio de 2013 foram rapidamente capturados pela direita, com o auxílio sempre
determinante da grande mídia. A quarta vitória consecutiva do PT nas eleições
presidenciais de 2014, que ainda assim acontece, detonou a operação conjugada
do judiciário, grande mídia, empresariado e partidos de direita para usurpar o
poder delegado a Dilma
Rousseff pelo voto de mais de 54 milhões de brasileiros e
pôr em marcha uma agenda fortemente neoliberal, que havia sido rechaçada nas
urnas (privatizações, entrega do patrimônio natural do país, cortes nos
direitos dos trabalhadores).
Os interesses do grande
capital internacional também tiveram papel determinante. É hoje de conhecimento
público o fato de magistrados brasileiros, como Sérgio Moro, terem
sido treinados nos Estados
Unidos com os instrumentos do chamado lawfare. Uma das primeiras medidas de
Temer foi a alteração de algumas regras do regime de
exploração do pré-sal, buscando dar maior espaço para as grandes petroleiras
mundiais.
Finalmente não
se pode deixar de mencionar a relação despolitizada da população beneficiada
pelas políticas implantadas pelos governos do PT com essas mesmas
políticas e programas, por culpa do próprio partido. Combinada com a
irrefreável ascensão das igrejas pentecostais e sua teologia da prosperidade,
essa despolitização foi decisiva para a aceitação totalmente acrítica do
tsunami de fake news advindo
da campanha de Bolsonaro contra
o candidato do PT no
segundo turno, propagadas por milhares de robôs, cujos
links apresentavam como local de origem os EUA.
A dez dias da
realização do segundo turno, a divulgação pela imprensa do financiamento desse
ataque digital por dinheiro de caixa 2 proveniente de empresas, o que é crime
eleitoral, deu alguma esperança de que o fascismo seria derrotado, mas esse desfecho feliz não
aconteceu. O juiz Sergio Moro,
que disse que a corrupção destinada a caixa 2 de campanha eleitoral é ainda
mais perniciosa do que a corrupção destinada ao enriquecimento pessoal porque
constitui um ataque direto à democracia,
acaba de aceitar o convite de Bolsonaro para
ser o seu ministro da justiça. Não é preciso dizer mais.
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