quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Lulismo X Bolsonarismo


Do falso bem-estar social lulista ao individualismo predatório bolsonarista.

Entrevista especial com Ricardo Cavalcanti-Schiel

Por: Patricia Facchin | 06 Novembro 2018




No texto anterior do blog – “A luz, a sombra e o Brasil” – eu faço uma reflexão filosófica sobre a conjuntura brasileira, a respeito da qual tinha feito, no texto “As origens do nazismo tropical”, reflexões sociopolíticas mais rascantes. Minha ideia, no último ensaio, era a de que nada é exatamente o “fim do mundo”, e de que nada é exatamente o começo de uma “nova era”. Pois eis que encontro entrevista de Ricardo Cavalcanti-Schiel, cientista social, mestre e doutor em Antropologia, em que ele defende que há mais semelhanças entre a governança petista e o bolsonarismo do que supõe nosso vão reducionismo. Vale muito a pena ler a entrevista, que eu apresento editada, para facilitar a sua digestão.

NMM




Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais deste ano?

Ricardo Cavalcanti-Schiel -  No geral, o presidencialismo de coalizão  deve continuar, a troca conspícua e venal de favores continua garantida, e a monarquia judicial conservadora ainda está longe de estar sob ameaça. Muda-se apenas um certo tom do estilo de governança. Estou falando de um regime de persistente acanhamento da cidadania. Para a grande maioria da população brasileira, em termos de direitos, já de antes de 1988 para hoje as mudanças foram notavelmente circunscritas.

Gestão petista

A narrativa de que os governos federais do PT possam ter representado um interlúdio nesse cenário de acanhamento persistente da cidadania é fantasiosa. A experiência petista de governança apenas deu uma tintura superficial aos fenômenos conformados pela velha e sempiterna lógica do privilégio.

Todo o período dos governos petistas foi marcado pelo desinvestimento simbólico do espaço público e pelo ideal de saída dele pelos cidadãos: fazer um plano de saúde privado, colocar os filhos numa escola particular, conseguir um financiamento para o diploma universitário, ganhar uma quota universitária, comprar um carro para poluir mais o mundo, inflar a bolha imobiliária em um espaço urbano vandalizado, ao invés de irem a parques, bibliotecas, espaços de convivência coletiva, lúdica e cultural... etc etc.

 

Bolsonarismo

Os valores do bolsonarismo são apenas o paroxismo disso tudo. A vitória de Bolsonaro é tanto filha imediata das redes digitais quanto filha mediata da maximização do individualismo liberal, que o lulismo promoveu obsessivamente.

O que muda agora com o bolsonarismo é a intenção deliberada de promover o Estado do mal-estar social, em nome do individualismo predatório.

bolsonarismo  já existia antes, com José Serra e outros cardeais do PSDB. Ele é a conjunção do velho autoritarismo senhorial com o moralismo tacanho do patriarcado, com os delírios selvagens dos libertarians do MBL, com a teologia da prosperidade das seitas pentecostais, e com a subserviência geopolítica aos velhos patrões do norte. A eleição de Bolsonaro insinua uma mudança de grau, mas não de natureza, no quadro geral das relações sociais no Brasil.

IHU On-Line - Bolsonaro disse que “vai buscar, seguindo o exemplo do patrono do Exército brasileiro, Duque de Caxias, pacificar o nosso Brasil (...)”. Como avalia esse tipo de declaração e a referência a Duque de Caxias?

Ricardo Cavalcanti-Schiel -  Bolsonaro não funciona sem muletas semióticas que operam como ícones sumariamente mi(s)tificados. Bolsonaro  habita o mundo das farsas, que têm com os mitos uma relação parasitária.

O primarismo do Bolsonaro aqui é o de querer decalcar, para a sociedade civil, o clichê militar (e farsante) de Caxias como “o pacificador". Duque de Caxias  impôs a ordem imperial a ferro e fogo. Assim, “pacificação” no sentido de Bolsonaro significa negação do conflito, tutela.

As instituições militares brasileiras, ao se considerarem a salvaguarda da “soberania nacional”, se creem dotadas da prerrogativa, se necessário, da tutela dessa mesma sociedade. Só que essa tutela significa a pura e simples subserviência, única linguagem que, no fim das contas, um autoritário fala e entende. Essa é a linguagem de Bolsonaro.

Quando alguém do meio militar fizer uma evocação capital e sincera a Rondon, e não a Caxias, pode-se suspeitar que se trata de alguém interessado no povo brasileiro, e não na sua tutela.

IHU On-Line - Em artigo recente o senhor afirmou que o “projeto de Bolsonaro, no fim das contas, curiosamente, é mais universalista que o do PT”. Quais são as características que indicam esse caráter universalista do projeto ou do discurso de Bolsonaro?

Ricardo Cavalcanti-Schiel - O universalismo de Bolsonaro é o de uma nação abstrata regida por critério que Crawford Brough Macpherson chamou de “individualismo possessivo”, e que produz o que também Macpherson chamou de “sociedade possessiva de mercado”. É  um universalismo que volta lá para trás, para então regurgitar o neoliberalismo hardcore.

O poder de agregação dos discursos universalistas é sempre maior que a agenda particularista das políticas de identidades. A eleição de Trump deveria ser vista como uma boa lição. A potência do lema “Make America Great Again” não está tanto no “great, está no “America”, naquilo que abarca a todos como communitas. Sem ela, nada (nessa perspectiva) mereceria ser “great”.

O próprio PT só se mostrou viável politicamente, lá nos anos 80, quando abandonou seu antigo lema “trabalhador vota em trabalhador” (uma espécie de particularismo classista), para começar então a falar dos problemas do Brasil.

IHU On-Line - O que significa dizer que o projeto de Bolsonaro é universalista, mas não é cidadão; como o senhor o classifica?

Ricardo Cavalcanti-Schiel - Não é cidadão porque se fundamenta na velha e ibérica lógica do privilégio. Norberto Bobbio [propõe que,] numa situação em que todos são livres a priori, uns terão a liberdade de se sobrepor aos direitos de outros, e se torna impossível qualquer igualdade, qualquer equanimidade. Já se a igualdade é dada como antecedente, todos podem ser igualmente livres, como consequente. A cidadania e o direito se assentam, por princípio, sobre a ponderação do todo, e não sobre a primazia de alguns.

Como fórmula liberal distributivista (a do John Rawls), mas igualmente “possessivista”, as políticas de identidade também se assentam sobre a primazia de alguns. Não vai ser esse o caminho para equacionar a cidadania.

IHU On-Line - O que deve caracterizar o que o senhor chama de “projeto de regulação social ultraliberal” do governo Bolsonaro?

Ricardo Cavalcanti-Schiel - Vai se caracterizar por  individualismo possessivo, em conjunção com a lógica do privilégio. Em termos práticos, vai se assentar sobre uma considerável devastação dos bens públicos (meio ambiente, reservas naturais, bens da União ― Terras Indígenas, por exemplo ―, Sistema Único de Saúde, empresas estratégicas...) ou, em última instância, do próprio espaço público. O Brasil, com toda certeza, vai sair menor como país depois de Bolsonaro. Menor em termos de complexidade econômica, de capacidade científica, de condições de soberania, de presença como player geopolítico... Tende a virar uma fazendona, sob a chibata de coronéis selvagens... e capatazes ainda mais selvagens. Vai ser um teste de força para a nossa complexidade social. A barbárie bolsonarista é a simplificação reducionista. Dado o grau de autoritarismo das figuras centrais do próximo governo (de Bolsonaro a Moro, de Malafaia a Onyx Lorenzoni), ou a complexidade social acaba com eles ou eles acabam com a complexidade social. Sinceramente, ainda aposto na primeira alternativa. Mas os danos serão tremendos. O governo Bolsonaro não deve se caracterizar pela construção de nada. Assim como o governo Collor, é bem possível que ele entre para a história pela destruição que vai produzir. Para construir é preciso gerir a complexidade. Isso é o antípoda da agenda anunciada pelo bolsonarismo.

IHU On-Line - O que o senhor chama de “componente militar da lógica política do eleito Bolsonaro”?

Ricardo Cavalcanti-Schiel - Muitas pessoas tendem a assumir como “militar” algo que parece uma substância homogênea. É muito comum ouvir até que “os militares” estarão no poder com Bolsonaro.

Os altos comandos das Forças Armadas são constituídos por uma certa variedade de linhagens (éticas, ideológicas, doutrinárias). Bolsonaro pode gozar até de uma grande simpatia entre os militares de “linha-dura”, e essa é só uma das linhagens militares. A assim chamada Abertura Política só foi possível porque Geisel conseguiu afastar o general Sílvio Frota . Exigiu certo trabalho imobilizar a linha-dura. Quatro anos depois eles ainda estavam colocando bombas, as mesmas que inspiraram um aloprado Bolsonaro cinco anos depois do Riocentro.

Bolsonaro pode se sentir extremamente seduzido pelo controle do poder militar. Isso não quer dizer que ele vá ter controle sobre as Forças Armadas como instituição. Seria simplório. As Forças Armadas zelam por ser “uma coisa à parte”, e sabem que não é prudente cometer desatinos, exceto, claro, os da linha-dura, que se caracterizam pela indigência intelectual, pelo simplismo das apostilas ideológicas.

E tudo isso vai depender das relações que o futuro governo vai construir com outras instâncias institucionais, como o STF, por exemplo, que, a meu ver, vai ser o primeiro “inimigo a ser batido” por Bolsonaro,  que já avisou que quer mexer no STF. Um soldado, um cabo e um jipe podem até ser suficientes. Resta saber se os generais vão entregar um soldado, um cabo e um jipe.

IHU On-Line - Em artigo recente o senhor afirmou que o discurso petista nas eleições deste ano caiu no vazio. O que é possível esperar do discurso petista daqui para frente? O pronunciamento de Haddad após o resultado das eleições indica como possivelmente será o discurso petista?

Ricardo Cavalcanti-Schiel - O PT  não tem mais diversidade interna... é muito fácil fazer loas à “diversidade” meramente guetificadora ― que é o discurso neoliberal sobre a diversidade. O PT está ilhado e parece ter adotado como princípio de existência sequer pensar na possibilidade de uma autocrítica. Tenho a impressão de que a população percebe que o PT se enclausurou nas suas verdades e não quer mais falar com ninguém.

Sinceramente, creio que só há possibilidade de pensamento político crítico e criativo, pela esquerda, fora do PT. E digo isso como alguém que militou no PT por bastante tempo, que sofreu sindicância, punições e investigações nas Forças Armadas por ter feito essa opção. Mas nada compensa existencialmente mais que o esforço permanente por manter alguma lucidez.
 _____

Nenhum comentário: