Do falso bem-estar social lulista ao individualismo
predatório bolsonarista.
Entrevista especial com
Ricardo Cavalcanti-Schiel
Por: Patricia Facchin | 06 Novembro 2018
No texto
anterior do blog – “A luz, a sombra e o Brasil” – eu faço uma reflexão
filosófica sobre a conjuntura brasileira, a respeito da qual tinha feito, no
texto “As origens do nazismo tropical”, reflexões sociopolíticas mais rascantes. Minha ideia, no último ensaio, era a
de que nada é exatamente o “fim do mundo”, e de que nada é exatamente o começo
de uma “nova era”. Pois eis que encontro entrevista de Ricardo Cavalcanti-Schiel, cientista
social, mestre e doutor em Antropologia, em que ele defende que há mais
semelhanças entre a governança petista e o bolsonarismo do que supõe nosso vão
reducionismo. Vale muito a pena ler a entrevista, que eu apresento editada,
para facilitar a sua digestão.
NMM
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line - Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais deste ano?
Ricardo
Cavalcanti-Schiel - No geral, o presidencialismo de coalizão
deve continuar, a troca conspícua e venal de favores continua garantida, e
a monarquia
judicial conservadora ainda está longe de estar sob ameaça. Muda-se
apenas um certo tom do estilo de governança. Estou falando de um regime de
persistente acanhamento da cidadania. Para a grande maioria da população brasileira,
em termos de direitos, já de antes de 1988 para hoje as mudanças foram
notavelmente circunscritas.
Gestão petista
A
narrativa de que os governos federais do PT possam ter representado um
interlúdio nesse cenário de acanhamento persistente da cidadania é fantasiosa. A experiência petista de governança apenas
deu uma tintura superficial aos fenômenos conformados pela velha e sempiterna lógica
do privilégio.
Todo o
período dos governos
petistas foi marcado pelo desinvestimento simbólico
do espaço público e
pelo ideal de saída dele pelos cidadãos: fazer um plano de saúde privado,
colocar os filhos numa escola particular, conseguir um financiamento para o
diploma universitário, ganhar uma quota universitária, comprar um carro para
poluir mais o mundo, inflar a bolha imobiliária em um espaço urbano vandalizado,
ao invés de irem a parques, bibliotecas, espaços de convivência coletiva,
lúdica e cultural... etc etc.
Bolsonarismo
Os
valores do bolsonarismo são
apenas o paroxismo disso tudo. A vitória
de Bolsonaro é tanto filha imediata das redes digitais
quanto filha mediata da maximização
do individualismo liberal, que o lulismo promoveu
obsessivamente.
O que
muda agora com o bolsonarismo é
a intenção deliberada de promover o Estado do mal-estar social, em nome do individualismo predatório.
O bolsonarismo já
existia antes, com José
Serra e outros cardeais do PSDB. Ele é a
conjunção do velho
autoritarismo senhorial com o moralismo tacanho do
patriarcado, com os delírios selvagens dos libertarians do
MBL, com
a teologia da prosperidade das
seitas pentecostais, e com a subserviência
geopolítica aos velhos patrões do norte. A eleição
de Bolsonaro insinua
uma mudança de grau, mas não de natureza, no quadro geral das relações sociais no Brasil.
IHU
On-Line - Bolsonaro disse que “vai buscar, seguindo o exemplo do patrono do
Exército brasileiro, Duque de Caxias, pacificar o nosso Brasil (...)”. Como
avalia esse tipo de declaração e a referência a Duque de Caxias?
Ricardo
Cavalcanti-Schiel - Bolsonaro não
funciona sem muletas semióticas que operam como ícones sumariamente
mi(s)tificados. Bolsonaro
habita o mundo das farsas, que têm com os mitos uma relação parasitária.
O
primarismo do Bolsonaro aqui
é o de querer decalcar, para a sociedade civil, o clichê militar (e farsante)
de Caxias como
“o pacificador". Duque de
Caxias impôs a ordem imperial a ferro e fogo. Assim,
“pacificação” no sentido de Bolsonaro significa
negação do conflito, tutela.
As instituições militares brasileiras,
ao se considerarem a salvaguarda da “soberania
nacional”, se creem dotadas da prerrogativa, se necessário, da
tutela dessa mesma sociedade. Só que essa tutela significa a pura e simples
subserviência, única linguagem que, no fim das contas, um autoritário fala e
entende. Essa é a linguagem de Bolsonaro.
Quando
alguém do meio militar fizer uma evocação
capital e sincera a Rondon,
e não a Caxias,
pode-se suspeitar que se trata de alguém interessado no povo brasileiro, e não
na sua tutela.
IHU
On-Line - Em artigo recente o
senhor afirmou que o “projeto de Bolsonaro, no fim das contas, curiosamente, é
mais universalista que o do PT”. Quais são as características que indicam esse
caráter universalista do projeto ou do discurso de Bolsonaro?
Ricardo
Cavalcanti-Schiel - O universalismo de Bolsonaro é o
de uma nação abstrata regida por critério que Crawford Brough Macpherson chamou
de “individualismo
possessivo”, e que produz o que também Macpherson chamou de “sociedade possessiva de mercado”.
É um universalismo que volta lá para
trás, para então regurgitar o neoliberalismo hardcore.
O poder de agregação dos discursos universalistas é sempre maior que a agenda particularista das políticas de identidades. A eleição de Trump deveria ser vista como uma boa lição. A potência do lema “Make America Great Again” não está tanto no “great, está no “America”, naquilo que abarca a todos como communitas. Sem ela, nada (nessa perspectiva) mereceria ser “great”.
O
próprio PT só
se mostrou viável politicamente, lá nos anos 80, quando abandonou seu antigo
lema “trabalhador vota em trabalhador” (uma espécie de particularismo
classista), para começar então a falar dos problemas do Brasil.
IHU
On-Line - O que significa dizer que o projeto de Bolsonaro é universalista, mas
não é cidadão; como o senhor o classifica?
Ricardo
Cavalcanti-Schiel - Não é cidadão porque se fundamenta na
velha e ibérica lógica
do privilégio. Norberto Bobbio [propõe
que,] numa situação em que todos são livres a priori, uns terão a liberdade de
se sobrepor aos direitos de outros, e se torna impossível qualquer igualdade,
qualquer equanimidade. Já se a igualdade é dada como antecedente, todos podem
ser igualmente livres, como consequente. A cidadania e o direito se
assentam, por princípio, sobre a ponderação do todo, e não sobre a primazia de
alguns.
Como fórmula liberal distributivista (a
do John Rawls), mas
igualmente “possessivista”, as políticas de identidade também se assentam sobre
a primazia de alguns. Não vai ser esse o caminho para equacionar a cidadania.
IHU
On-Line - O que deve caracterizar o que o senhor chama de “projeto de regulação
social ultraliberal” do governo Bolsonaro?
Ricardo
Cavalcanti-Schiel - Vai se caracterizar por individualismo possessivo,
em conjunção com a lógica do privilégio. Em termos práticos, vai se assentar
sobre uma considerável devastação
dos bens públicos (meio ambiente,
reservas naturais, bens da União ― Terras Indígenas, por
exemplo ―, Sistema
Único de Saúde, empresas estratégicas...) ou, em última
instância, do próprio espaço público. O Brasil, com toda certeza, vai sair menor
como país depois de Bolsonaro. Menor
em termos de complexidade econômica, de capacidade científica, de condições de
soberania, de presença como player geopolítico... Tende a virar uma fazendona, sob a chibata
de coronéis selvagens... e capatazes ainda mais selvagens. Vai ser um teste de
força para a nossa complexidade social. A barbárie bolsonarista é
a simplificação reducionista. Dado o grau de autoritarismo das
figuras centrais do próximo governo (de Bolsonaro a Moro,
de Malafaia a Onyx Lorenzoni), ou a
complexidade social acaba com eles ou eles acabam com a complexidade social.
Sinceramente, ainda aposto na primeira alternativa. Mas os danos serão
tremendos. O governo
Bolsonaro não deve se caracterizar pela construção de
nada. Assim como o governo
Collor, é bem possível que ele entre para a história pela
destruição que vai produzir. Para construir é preciso gerir a complexidade.
Isso é o antípoda da agenda anunciada pelo bolsonarismo.
IHU
On-Line - O que o senhor chama de “componente militar da lógica política do
eleito Bolsonaro”?
Ricardo
Cavalcanti-Schiel - Muitas pessoas tendem a assumir como
“militar”
algo que parece uma substância homogênea. É muito comum ouvir até que “os militares”
estarão no poder com Bolsonaro.
Os
altos comandos das Forças
Armadas são constituídos por uma certa variedade de
linhagens (éticas, ideológicas, doutrinárias). Bolsonaro pode
gozar até de uma grande simpatia entre os militares de “linha-dura”, e essa é
só uma das linhagens militares. A assim chamada Abertura Política só
foi possível porque Geisel conseguiu
afastar o general Sílvio
Frota . Exigiu certo trabalho imobilizar a linha-dura.
Quatro anos depois eles ainda estavam colocando bombas, as mesmas que
inspiraram um aloprado Bolsonaro cinco
anos depois do Riocentro.
Bolsonaro pode
se sentir extremamente seduzido pelo controle do poder militar. Isso não quer
dizer que ele vá ter controle sobre as Forças Armadas como instituição.
Seria simplório. As Forças Armadas zelam por ser “uma coisa à parte”, e
sabem que não é prudente cometer desatinos, exceto, claro, os da linha-dura,
que se caracterizam pela indigência intelectual, pelo simplismo das apostilas
ideológicas.
E tudo
isso vai depender das relações que o futuro governo vai construir com outras
instâncias institucionais, como o STF, por
exemplo, que, a meu ver, vai ser o primeiro “inimigo a ser batido” por Bolsonaro, que já avisou que quer mexer no STF. Um soldado,
um cabo e um jipe podem até ser suficientes. Resta saber se os generais vão
entregar um soldado, um cabo e um jipe.
IHU
On-Line - Em artigo recente o
senhor afirmou que o discurso petista nas eleições deste ano caiu no vazio. O
que é possível esperar do discurso petista daqui para frente? O pronunciamento
de Haddad após o resultado das eleições indica como possivelmente será o
discurso petista?
Ricardo
Cavalcanti-Schiel - O PT não tem mais
diversidade interna... é muito fácil fazer loas à “diversidade” meramente
guetificadora ― que é o discurso
neoliberal sobre a diversidade. O PT está ilhado e
parece ter adotado como princípio de existência sequer pensar na possibilidade
de uma autocrítica. Tenho a impressão de que a população percebe que o PT se
enclausurou nas suas verdades e não quer mais falar com ninguém.
Sinceramente,
creio que só há possibilidade de pensamento
político crítico e criativo, pela esquerda, fora
do PT.
E digo isso como alguém que militou no PT por bastante tempo, que sofreu
sindicância, punições e investigações nas Forças Armadas por ter feito essa opção.
Mas nada compensa existencialmente mais que o esforço permanente por manter
alguma lucidez.
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