quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

O cons[c]erto planetário


Nelson M. Mendes



Em 2002 eu fiz uma pós-graduação na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), na área de Educação Ambiental. Quando se aproximava o fim das aulas, os alunos foram convidados a fazer um texto falando de sua experiência acadêmica. O meu texto – “Um rio que passa” – foi o escolhido para ser incluído na última página do folheto que tratava dos assuntos do curso, que fazia parte do PDBG (Programa de Despoluição da Baía de Guanabara).
Depois de citar Paulinho da Viola e Heráclito, eu escrevi:
Como diria Nelson Rodrigues, um marciano que aqui chegasse e fosse visitar a UERJ, haveria de anotar em seu caderninho: “Os terráqueos estão conscientes de seu papel no concerto planetário. Eles sabem que é necessário rever práticas de vida e hábitos de consumo, mudar o paradigma do desenvolvimento a todo custo, do crescimento infinito num planeta finito, substituir a competição pela cooperação. Eles sabem também que nada disso pode ser obtido do dia para a noite, e atribuem grande importância à educação nesse processo de preservação ambiental. É como se parafraseassem o grande Pitágoras: ‘Educai as crianças e não será preciso recuperar o planeta’.”
O meu texto tinha sido escolhido. Mas algum revisor implicou com a expressão “conCerto planetário”. Era óbvio que eu havia cometido um deslize ortográfico. Então o revisor resolveu fazer um “conSerto ortográfico”, e no informativo consta que “os terráqueos estão conscientes de seu papel no conserto planetário”.
O conserto cabia, dado o contexto. Eu falava de mudar hábitos, paradigmas, propostas econômicas; ou seja: de consertar o planeta. Mas eu tinha em mente muito mais do que isso.
O homem não está aqui para tornar o planeta “bonitinho”. Devemos preservá-lo, é claro, como palco de um drama de que o homem é, sim, o protagonista. A aventura humana vai muito além do que supõem os pensadores acadêmicos.
“Do pó vieste e ao pó retornarás.” (Gênesis 3.19) Dessa mensagem se apropriam de modo oblíquo muitos que consideram o homem um mero acidente da natureza, um “animal que deu certo”. Compreensível. Depois de séculos de dogmatismo, de superstições, a ciência pareceu oferecer ao homem a possibilidade de encontrar todas as explicações e respostas. No final do século XIX, essa postura – essa crença – cristalizou-se na forma de uma escola filosófica, com nome e tudo: o Positivismo.
As “superstições materialistas”, como disse alguém, já foram questionadas pela própria ciência. Depois de Einstein, tudo ficou realmente muito relativo. Mas o cachimbo materialista deixou tortas muitas bocas.
A pós-graduação na UERJ foi uma experiência interessantíssima. Havia excelentes professores, alguns com projeção internacional. Mas a atmosfera era a acadêmica. Para a quase totalidade de alunos e professores, o homem é mesmo um acidente no planeta – talvez até uma espécie de doença. Havia até uma forma academicamente chique de falar da interferência humana no planeta: “influência antrópica”.
Quando o revisor deu com a expressão concerto planetário, ele, ancorado nesse “neopositivismo”, entendeu que eu quisera falar de conserto: reparar os erros humanos, neutralizar a “influência antrópica”.
Entretanto, eu olhava para as estrelas. Eu tinha em mente a seguinte acepção do termo, segundo o dicionário Aurélio: “harmonia, acordo”.  Que a “música das esferas” se refletisse  no “concerto planetário”.
O Concerto de Brandemburgo nº 3, de Bach, exprime o que sinto. O alegro final, particularmente, é a representação da espiral evolutiva do “fenômeno humano” (T. de Chardin) no retorno à Fonte.
O homem não é um acidente. E tem conserto. O conserto é o concerto.



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