Nelson M. Mendes
O título é uma concessão ao princípio da redundância, aquela lei identificada pelos semiólogos segundo a qual o óbvio tem que
ser dito e redito; porque Dharma é,
por definição, “pessoal e intransferível”: cada um tem o seu. (Sempre a lei!)
O assunto me vem pelas vozes de Gal Costa e Tom Jobim,
registradas em vídeo gravado em Los Angeles e que posso hoje desfrutar no Youtube.
Tom Jobim foi um dos mestres da música de todos os tempos. A
não ser que o meteoro venha antes, ele continuará a ser ouvido daqui a 200
anos. Seu frequente parceiro, o também imenso Chico Buarque, dizia que Tom lhe
encomendava letras para músicas porque tinha “preguiça” de escrever, já que,
ainda segundo Chico, era um excelente letrista. De fato, Tom era também exímio
no manejo das palavras. “Águas de Março”, por exemplo, é um poema musical e
literário.
Mas Tom era um homem com todas as óbvias e necessárias
limitações de um homem. A música e a poesia não o levavam muito acima dessas
limitações. Talento não garante sabedoria.
No entanto, ele fez o que lhe cabia fazer. Ele tinha que
expressar sonhos e paixões daquele modo inigualável; tinha que deixar
obras-primas inesquecíveis; tinha que ser uma das vozes de sua geração e até de
gerações subsequentes. Era esse o seu Dharma.
Quando pomos os olhos sobre a vida de grandes artistas,
frequentemente recuamos, assustados com o que vemos de conflito, desespero,
violência, indignidade. Uma certa vertente romântica
(ou talvez cínica) do pensamento contemporâneo parece acreditar que “isso é que
é bom”: que a vida de todo artista que se preze tem de ser conflituosa,
angustiada. Artista carola, certinho,
não presta.
É bem verdade que um artista assumidamente iconoclasta e com
vida tumultuada é melhor que um fariseu, cuja vida seja exatamente o oposto do
seu edificante discurso. Mas a apologia do desvio, da permissividade, do vale-tudo parece ser ainda uma herança
pendularmente excessiva do enfrentamento, talvez a partir de nomes como Freud e
Oscar Wilde, de secular repressão religiosa. Nos anos 60 do século XX, essa
atitude seria resumida na frase famosa: “É proibido proibir.”
Num sentido filosoficamente bem mais profundo do que supõem
os contestadores de 1968, é, de fato, proibido proibir. Não se pode proibir a
criança de sonhar e brincar; não se pode proibir o empresário de correr atrás
de realizações; não se pode proibir o artista de fazer de suas paixões e
dúvidas a matéria-prima com que confeccionará obras cuja excelência o deixará
famoso e vaidoso. A criança, o empresário e o artista cumprem seu Dharma.
Vamos tentar descrever com palavras nossas o que dizem os
sábios e as religiões. Falemos francamente, sem anacrônicos e risíveis pudores
materialistas.
Quando Deus resolveu começar tudo isso, Ele estava falando
sério. Ele não queria brincar de fazer
Universo. A ideia de que Deus deveria ter criado um Universo perfeito,
asséptico, pura luz, sem mácula e sem mal, está no imaginário de sonhadores, na
“fantasia dos infelizes”, como canta Chico Buarque; isso é o Dharma desses sonhadores e infelizes. Assim
como escarnecer da ideia de Deus por conta dessa imperfeição do Universo faz parte do Dharma de muitos outros.
Huberto Rohden explica que a palavra Universo significa “o Uno vertido”, o Um desdobrado na Pluralidade.
Nas minhas especulações adolescentes, eu escrevi: “Por que o plural? Creio que
nessa pergunta poderia resumir toda a minha inquietação.” Confesso que ainda não decifrei esse enigma;
mas suponho ter, hoje, mais condições de esboçar uma resposta, a partir de
leituras e de um subterrâneo amadurecimento espiritual.
O Um verteu-se. Do nosso limitado ponto de vista (“somos
minhocas investigando o que há além do jardim” – costumava escrever nas redes
sociais), tudo o que podemos supor é que tal processo não teve propriamente um “começo”
e não terá proprimente um “fim”; ou que tudo é cíclico – para resgatarmos ideia
muito cara à chamada “filosofia oriental” (como se a verdadeira Filosofia não
fosse uma só, como se Platão, Pitágoras e o próprio Jesus não tivessem bebido
na mesma Fonte). Os próprios cientistas especulam que pode estar havendo neste
momento vários Big Bangs, correspondentes à criação de vários universos...
Mas Deus (o Um, a Energia Fundamental, a Vontade Suprema, Origem
e Destino de todas as coisas) não estava de brincadeira. Ele queria, ao
manifestar-Se em mundos sucessivamente mais densos, até chegar ao mundo material
que conhecemos, que o Espírito atravessasse
a Matéria, experimentando na carne todos os prazeres e dores.
Eis onde nos encontramos. Annie Besant, a grande teósofa, diz
que o significado de Dharma é rico e
complexo. Mas podemos, por aproximação, traduzir o velho termo sânscrito como “Dever”,
“Missão”, “Propósito”. O Dharma é o
que exprime o que cada centelha emanada do Um tem de fazer a cada momento no
grande drama cósmico.
Quando eu registrei certos pensamentos, há pouco menos de um
ano, eu estava – sem que o termo transitasse pela mente – falando de Dharma:
“Deus
escreve certo por linhas tortas.” O velho adágio exprime apenas uma meia-verdade;
porque as linhas são tortas apenas da limitada perspectiva humana. Do ponto de
vista do Absoluto, é claro que são certíssimas. Tudo – o “erro”, o “mal”, o
“desvio”, o “pecado” – está nos planos divinos. Ramana Maharshi se refere a
isso em muitos diálogos com inquietos discípulos e pesquisadores – Paul
Brunton, por exemplo – que desejavam saber “por que” Deus “permitia” que o
chamado “mal” se manifestasse tão soberanamente no mundo e no universo humano.
A
ideia é a de
que Deus se manifesta na matéria (ou "desce" à matéria) com objetivos
insondáveis. O conflito, a resistência, o “mal” fazem parte do esquema. O
inerte mineral cumpre seu papel; o vegetal cumpre seu papel; o animal cumpre
seu papel; os invisíveis seres da natureza cumprem seu papel; o pior criminoso
cumpre seu papel; o ignorante cumpre seu papel; o trabalhador braçal cumpre seu
papel; o homem de negócios cumpre seu papel; o intelectual cumpre seu papel; o militar cumpre seu papel; o religioso cumpre seu papel; o esportista cumpre seu papel; o estudante cumpre seu papel.
Assim como o cientista, o poeta, o músico, o artista e – claro – o sábio.
A diferença é que o sábio vê tudo isso – percebe tudo isso. O que também faz parte do esquema; porque esse é o papel do sábio.
A diferença é que o sábio vê tudo isso – percebe tudo isso. O que também faz parte do esquema; porque esse é o papel do sábio.
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