quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

"É a lama, é a lama"

Nelson M. Mendes

Nota preliminar: o título é um verso da linda e conhecidíssima composição “Águas de março”, de Tom Jobim. Que o maestro me perdoe a apropriação espúria, porém pertinente.





O incêndio no CT do Flamengo deve ter deixado muita gente feliz. Afinal, nada como um incêndio para “apagar” da mídia a repercussão da tragédia que foi o criminoso tsunami de lama promovido pela privatizada Vale em Brumadinho, MG.

Nos anos 50/60 do século XX, o termo tsunami não era popular. Mas falava-se muito em “mar de lama”. Escreveu Rodrigo Vianna em 2014, a propósito da disputa eleitoral entre Dilma e Aécio:
Carlos Lacerda fazia oposição violenta contra Getúlio Vargas e o trabalhismo. Bancado pelos EUA, tinha apoio de uma classe média furiosa com os direitos trabalhistas, com a criação da Petrobrás e com a entrada em cena da “ralé” (que passava a definir eleições – votando em Vargas ou nos candidatos apoiados por ele).
Qual era o discurso de Lacerda? Vargas seria um “corrupto”, um “bandido comandando uma quadrilha”.
Isso lembra alguma coisa a vocês?
Em 1954, a imprensa passou a falar em “Mar de Lama” no governo.
No debate da Band, qual foi a grande “sacada” de Aécio? Dizer que o Brasil vive um “Mar de Lama”.
O “Mar de Lama” de Aécio foi parar na capa do Estadão. O combalido diário paulistano deve ter achado que voltaram os bons tempos: uma manchete com cheiro de anos 50.

A verdade é que o grande incêndio é o que arde nas consciências indignadas com o lamacento tsunami de mentiras midiáticas que há décadas soterra os sonhos do Brasil, um país que poderia ter “um destino próprio”, como dizia o bravo e idealista Brizola. Há um breve histórico desse processo no Manual de autoajuda do iludido político II.

Isso já foi explicado em vários textos: a lavagem cerebral midiática suscita na classe média (e emergentes) o medo do “Comunismo”(um sistema que, stricto sensu, jamais existiu no mundo), atrás do qual está o medo de partilhar, que por sua vez tem sua raiz no que chamei de “egoísmo basal”.

Uma das táticas midiáticas para manipular esse egoísmo basal é associar qualquer liderança vagamente progressista ao “Comunismo” e a um “mar de lama”. Um pouco de Lógica e Psicologia: o egoísta não quer nem partilhar, nem que governantes alcancem ilicitamente a riqueza que ele próprio no fundo buscaria inclusive por meios ilícitos, se tivesse a chance.

No ensaio O lawfare que fere Lula,  escrevi:
O Delegado José Castilho, que foi boicotado na investigação do Escândalo Banestado ao chegar perto da cúpula do governo FHC e do poder econômico, declarou: “Me é difícil conciliar o sono à noite, só de pensar nas crianças abandonadas. Por trás de tudo isso está a corrupção.” Inocência do delegado. A corrupção não é o grande problema. O principal problema brasileiro é a desigualdade. Para mantê-la, os poderosos iludem as massas, inclusive com a quimera da corrupção. Prestidigitação é isso. Enquanto o mágico chama a atenção do público para detalhes sem importância, um elefante se materializa no fundo do palco.

O elefante escondido nos bastidores é o Poder Econômico Transnacional. Você não o vê porque ele é mantido oculto pela mídia, cuja função, segundo o saudoso Millôr Fernandes, é “ocultar a notícia”. Pensadores como Humberto Eco e Noam Chomsky estudaram o fenômeno: a mídia, um dos braços mais ativos desse poder transnacional, entretém e confunde o público com frivolidades, falsos problemas e falsos vilões. Tudo para que os verdadeiros crimes e criminosos continuem ocultos.

E o procedimento funciona, por alguns motivos: primeiro, porque a mídia acena com aqueles fantasmas que, como explicado, se nutrem do nosso “egoísmo basal”; segundo, porque no Brasil, em razão de um descaso pela Educação que, segundo Darcy Ribeiro, é uma estratégia das elites, há milhões e milhões de “analfabetos funcionais” – pessoas incapazes de verdadeiramente entenderem o que leem; ou seja: mentes prontas para serem docilmente envenenadas pelo “mar de lama” midiático – este, sim, de lama altamente tóxica.

Vejamos o caso do rompimento das barragens (no plural!) da Vale. Escreveu Alceu Castilho sobre o caso Mariana, de 2015:
Por trás da lama da Samarco [controlada pela Vale] afirma-se o jornalismo subserviente, a serviço do mercado. A tragédia já começa a ser soterrada pelos jornais. Mas por que, então, a imprensa, acostumada a fustigar o governo federal, não fiscaliza com mais atenção a Vale, símbolo da privatização a preço de banana? Simplesmente porque não tem o saudável hábito de fiscalizar corporações.

A respeito do caso Brumadinho, em 2019, o sociólogo e agrônomo Raimundo Gomes da Cruz é curto e grosso:
É mais um ato de irresponsabilidade da empresa Vale. Este modelo capitalista não interessa à sociedade, apenas aos executivos e acionistas. Aqui na região de Carajás nós questionamos a exploração mineral desde a década de 1980. Este país precisa colocar suas riquezas em beneficio da sociedade. Porque a Vale representa interesses imperialistas, sendo ela privada ou estatal. Este é um governo a serviço dos imperialistas, principalmente a vertente norte-americana.

Ailton Krenak, em entrevista indignada sobre o evento de Mariana,  que matou o rio Doce (Watu, para a etnia Krenak) em 2015, se refere à motivação básica desse comportamento socialmente irresponsável e ambientalmente predatório:   
Essa mentalidade estúpida, desse capitalismo que só pensa na exaustão dos recursos da natureza, com a justificativa de que estão fazendo o desenvolvimento. Nós somos ajuntamentos nada relevantes para esses caras. Somos colônias avassaladas. Esses caras fazem o que querem com os nossos territórios, nosso litoral, nossa floresta.

Mas o Elefante Oculto acha pouco. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário (incluindo o “desdobramento” conhecido como MP) tratam de fazer a vontade do guloso paquiderme – muito mais por interesses pecuniários pessoais que por motivação cívica ou convicções ideológicas. (Sempre o “egoísmo basal”!)  E milhões de brasileiros foram doutrinados pela mídia (o “quarto poder”) a achar que é bom, sim, que o elefante destrua nossa horta e nosso jardim.

O caso das “doações-privatizações” (expressão de Helio Fernandes) é emblemático. E o caso da “doação” da antiga Vale do Rio Doce, mais emblemático ainda.

O sociólogo Ivo Lebauspin, em entrevista de 2007, declarou:
A Vale do Rio Doce, em 1997, era a maior mineradora mundial de minério de ferro. Tudo isso construído com dinheiro público. Pois bem, ela foi privatizada em 1997 por R$ 3,3 bilhões – que é menos do que ela obtinha por ano em 1995 e é menos do que ela lucra hoje em apenas três meses.
Um dos dois principais motivos alegados para a privatização das empresas estatais era o pagamento da dívida pública. As empresas foram vendidas, mas a dívida aumentou exponencialmente entre 1995 e 2002.
Aquela privatização foi uma fraude, um engodo.
Os neoliberais argumentam que o Estado cresceu demais, é preciso reduzir os gastos públicos, privatizar as empresas estatais. No entanto, em todos os países onde o Neoliberalismo foi implementado, a arrecadação tributária, ao invés de diminuir, aumentou.
O Estado extrai mais impostos dos cidadãos não para melhorar os serviços públicos, mas para pagar a dívida e seus juros.

Sim, o Elefante não consome apenas minério, madeira, água, gente; como símbolo da hipertrofia cancerosa do Capitalismo, o paquiderme é voraz consumidor de dinheiro. E frenético evacuador de mentiras.

No texto A tulipa podre, eu disse que a propaganda é a arma do negócio. Como publicitário, posso afirmar que a propaganda é uma forma institucionalizada de mentir.

A mentira básica defecada pelo nefasto elefante chama-se “livre mercado”. Estudiosos garantem que o “Liberalismo” jamais foi de fato aplicado na relação entre países. Ao longo da História, as potências da vez tratavam de exercer sobre as demais nações um domínio cultural, econômico, militar. Um dos instrumentos de dominação era exatamente a propaganda, para convencer os dominados de que eles deveriam ser liberais, aceitar a dominação; enquanto isso, as potências hegemônicas, quando apresentavam alguma fragilidade em qualquer setor, cercavam-se de barreiras protecionistas.

Um outro segmento da mesma merda é a valorização mítica dos chamados “investimentos privados”. Os estudiosos garantem que não há exemplo na História de país que tenha se desenvolvido sem a ajuda, sem o investimento do Estado. Aqui mesmo no Brasil – a “Casa da Mãe Joana” do Capitalismo Transnacional: a depender do investimento privado, não teria havido a Petrobras, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale do Rio Doce. Tragicamente, só a Petrobras não foi ainda integralmente “doada-privatizada”.

O exemplo mais completo da atuação da “mão visível do Estado” (em contraposição à fictícia “mão invisível do Mercado”) foi o New Deal, programa com que o presidente Franklin Roosevelt salvou o Capitalismo de sua irresponsabilidade autofágica. Isso não é opinião, é história. A “crise financeira internacional” de 2008, mais um surto da incurável doença autoimune do Capitalismo, também não é opinião; e mais uma vez foi o Estado a salvação – desviando dinheiro público (trilhões de dólares e euros) para socorrer banqueiros e especuladores.

Na abertura deste ensaio, apresentei a “pizza” do Orçamento Federal superposta à imagem da lama de Brumadinho – que provavelmente matou cerca de 300 pessoas. A “pizza” é relativa ao ano de 2016; o acesso a gráficos mais recentes nos foi negado por mensagens como “você não tem permissão (...)”. Mas a divisão de fatias é basicamente a mesma há décadas: quase metade é destinada a pagar juros e amortizações da “dívida”.

Dirão os honestos de plantão que dívida tem de ser paga. Sim, quando a dívida é real, e foi contraída por iniciativa do devedor. A dívida brasileira foi praticamente imposta por credores que, no momento áureo dos petrodólares, não tinham onde enfiar dinheiro; e enfiaram na goela de países do 3º Mundo, exatamente como a comida é enfiada na goela do ganso em que se deseja provocar a hipertrofia do fígado, para produzir o patê de foie gras. Esse procedimento, de resto, era e é um dos meios pelos quais países fortes submetem os países pobres, como explicado por Celso Furtado, Adriano Benayon e até por John Perkins, autor do inacreditável livro Confissões de um Assassino Econômico.  

A dívida brasileira (“interna” e “externa” reunidas num “baião de dois”), conforme Helio Fernandes e outros veteranos jornalistas cansaram de dizer, jamais foi de fato auditada. Aquilo é um poço sem fundo de fraudes e mentiras.

Parafraseando o arquetípico personagem Sheldon, da série The Big Bang Theory, eu perguntaria: Em que universo é “legal”, “natural”, reservar metade do orçamento de um país para engordar banqueiros?

Mas, para todos os efeitos, a “dívida” é legal. E muitos governantes estrangeiros “sugeriram” que ela fosse paga com nossas riquezas – matas, águas, minérios. Ou seja: trocar coisas de valor incalculável por “papel pintado”, como diz Helio Fernandes.

Com a devida licença de Sérgio Porto, o “festival de mentiras que atola o país” é imensurável. A produção coprológica do Elefante equivale aos tsunamis de lama produzidos pela Vale em 2015 e 2019. (Especialistas dizem que muitos poderão ainda acontecer.) E a capacidade coprofágica do público – uma legião de zumbis gerados pela lavagem cerebral midiática que ocorre há décadas – é também gigantesca.

É por causa dessa lavagem cerebral – que “casa” perfeitamente com o “egoísmo basal”, particularmente da classe média – que muitos fingem que acreditam em certos absurdos defecados pelo Elefante e embrulhados por congressistas, juízes, jornalistas.

Por exemplo: “acreditam” que, no país da construção de Brasília, das obras faraônicas do Regime Militar e do caso Banestado (quando 124 bilhões de dólares voaram para o exterior), o Mensalão foi “o maior escândalo da história da República”. Ou que o filho de Lula era dono de uma fazenda suntuosa, de uma Ferrari de ouro, da Friboi. Ou ainda que as ridículas pirotecnias de Moro, Dallagnol e companhia (figuras às quais a História reserva o mais indigno dos lugares, o dos desonestos e traidores) fazem algum sentido.

No já citado ensaio O lawfare que fere Lula (escrito a partir da leitura de mais de 70 artigos de juristas, historiadores, sociólogos, jornalistas, e com base também em autores como Darcy Ribeiro e Barbosa Lima Sobrinho), eu registro que até Reinaldo Azevedo, criador do termo “petralha” e desafeto de Lula, teve de reconhecer que Lula era vítima de lawfare – que significa exatamente perseguição política por meios jurídicos.

De fato, 122 juristas escreveram um livro – Comentários a uma Sentença Anunciada  - o Processo Lula – denunciando que a lei foi destroçada no afã de condenar o ex-presidente.

Euclides Mance, filósofo, professor de Lógica e Filosofia do Método Científico, escreveu o livro Falácias de Moro: Análise Lógica da Sentença Condenatória de Luiz Inácio Lula da Silva. E recebeu o apoio público de 30 doutores em Filosofia, Lógica, Matemática.

E por que essa perseguição?

O sociólogo Ivo Lebauspin, na mesma entrevista de 2007 cujo link foi acima apresentado, esclarece que Lula não pretendia molestar o Elefante Oculto:
Desde a primeira carta de intenções do Governo Lula ao FMI, em fevereiro de 2003, o governo se compromete a privatizar os quatro bancos estaduais que ainda eram públicos e a realizar a Reforma da Previdência do setor público, que nada mais é do que a privatização de parte da previdência, através dos fundos de pensão. O Governo Lula manteve os leilões anuais das áreas de exploração do petróleo – introduzidos pelo Governo FHC -, que transfere parte destas áreas nacionais para empresas multinacionais.

Sustentam alguns analistas bem-informados que o próprio Lula teria sido criação do “bruxo” Golbery para dividir as esquerdas, então representadas pela figura mítica de Leonel Brizola – este, sim, odiado pelas elites brasileiras e potências estrangeiras.

Ainda assim, Lula passou a ser perseguido desde que despontou como líder sindical, particularmente pela Globo (a principal sucursal da Fábrica de Zumbis) e pela revista Veja, que chegou a publicar, quando Lula passou a ser cogitado como canditato à presidência, que haveria, caso ele viesse a ser eleito, invasões de propriedades, êxodo de empresários e todo tipo de distúrbio. Lula foi pintado como um potencial Gengis Khan “vermelho”.

Essa perseguição midiática a Lula se tornou um case histórico, que já rendeu trabalhos acadêmicos.

A verdade é que o Elefante Oculto, particularmente quando servido pelo Estado norte-americano, quer que tudo saia exatamente segundo seus objetivos. Como relata John Perkins nas suas Confissões (link mais acima), o primeiro passo é a oferta de propina aos líderes dos países subdesenvolvidos; o segundo passo é o envio dos “assassinos econômicos”, a fim de sabotar economias no sentido dos interesses estrangeiros; o terceiro é a eliminação, explícita ou em suspeitíssimos acidentes, dos líderes recalcitrantes; finalmente, se tudo falhar, providencia-se uma invasão militar.

É óbvio que, no Brasil, o Elefante geralmente não precisa ir além da primeira fase.


Mas Getúlio Vargas foi levado ao suicídio; Jango foi deposto por um golpe plutomilitar; Lula foi mantido longe da presidência através de implacável cerco midiático, até que escreveu a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, prometendo não chatear o Elefante, e finalmente foi eleito; Dilma seria derrubada através de instrumento mais sofisticado, o golpe jurídico-parlamentar-midiático.

Finalmente, para glória do Elefante, o zumbi descerebrado elegeu “a mais perfeita tradução” (perdão, Caetano!) da estupidez, do preconceito, da insensibilidade, do reacionarismo. Tudo por causa do medo do “Comunismo” – medo que, como vimos, enraíza-se no “egoísmo basal”.

O tsunami de lama midiática produz tsunamis de lama real e soterra o futuro.



“É a lama, é a lama.”

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