Enquanto começo
a elaborar esta introdução, não sei ainda que título darei à matéria do El País, que apresento editada no blog.
Satyagraha, o nome do
blog, significa, como explicado no perfil, “apreço pela verdade”. Isso é tudo
o que não existe na mídia. Em textos anteriores falo disso à exaustão. Mas eis
que surge um caso em que a mentira é provada, desmascarada! Se houvesse um
prêmio Nobel de Jornalismo, Juan Moreno, o que revelou a verdade, ganharia
fácil.
E quanto ao
nome do artigo? “O apóstolo da mentira”? “A encarnação das fake news”?
Outros títulos
me sobrevoam a mente; mas acredito que o último diz bastante do que se trata.
Nelson M.
Mendes
O escândalo da 'Der Spiegel’:
parem as máquinas, é tudo mentira
Claas Relotius,
jornalista-estrela do semanário alemão, era um vigarista.
Texto original, acessado em 23/02/2019:
Texto editado / NMM:
Ninguém acreditou nele. Mas hoje
todos na Alemanha acreditam
em Juan Moreno. Para desmascarar um profissional da mentira massificada, Moreno
teve que viver um calvário.
Brigou para convencer seus chefes
de que Claas Relotius, de 33 anos, estrela do jornalismo alemão, inventava as histórias que publicava.
Sua vitória é a desgraça da Der Spiegel.
É difícil compreender como a prestigiosa revista foi capaz de levar ao topo um
repórter que inventava pautas e dizia ter entrevistado
gente que nunca viu e visitado lugares onde nunca pisou; como ninguém percebeu
que mais de meia centena de reportagens eram perfeitas demais, eram uma fraude.
“Não sou nenhum herói, nem o grande
defensor da verdade. Não tinha alternativa.. Eu sabia que algo não estava bem, mas não
acreditavam em mim.” O cotidiano da família de Moreno foi pelos ares no começo
de novembro passado, por causa da elaboração de uma reportagem intitulada A Fronteira de Jaeger. O
repórter estava no México, quando recebeu um telefonema da revista
avisando que ele escreveria uma reportagem com Relotius.
Moreno não conhecia Relotius, mas
uma vez tinha lido um texto dele sobre um assessor fiscal cubano que o deixara
com a pulga atrás da orelha. O trabalho foi feito. Moreno recebeu o texto
preliminar e detectou detalhes que não batiam. Escreveu ao departamento de
checagem e documentação, onde trabalham
60 pessoas. Não lhe deram atenção.
Depois, Relotius lhe enviou um novo
rascunho no qual aparecia uma cena na qual um miliciano disparava contra algo que
se movia. Essa passagem não aparecia na primeira
versão. “É impossível que um bom jornalista presencie uma cena semelhante e não
a inclua desde o primeiro momento”, pensou.
A partir daí, Moreno começou uma
desesperada luta pela verdade.
As incoerências cresciam, e Moreno
escreveu ao editor de Sociedade da revista, que encomendara a reportagem. “Não
me deram bola.” Depois, Moreno recebeu um telefonema de Relotius. Estava a par
de suas indagações. “Juan, você tem coisas para me dizer”, disparou. Moreno lhe
fez algumas perguntas, sem revelar suas descobertas, e decidiu deixá-lo falar.
“Percebi que estava mentindo e que havia um problema muito grave.”
A reportagem A fronteira de Jaeger acabou se revelando a ponta de um
iceberg. Ao todo, Relotius escreveu 60 reportagens para a Der Spiegel,
além de outras publicações alemãs, que agora mergulham em seus arquivos em busca
da verdade. Anunciou
o diretor de redação Steffen Klusmann pouco depois da
revelação do escândalo: “Como editores da Der Spiegel, temos que
reconhecer que falhamos de forma considerável. Relotius conseguiu burlar e
anular todos os mecanismos de garantia da qualidade da empresa (…).” No fim de
janeiro, a revista publicou um primeiro avanço das comprovações, cujo resultado
é horripilante.
Mas, naquelas desesperadas semanas de
novembro, a Der Spiegel começou a suspeitar que era Moreno que estava
escondendo algo. Afinal de contas, Relotius era da casa e havia
recebido quatro vezes o grande prêmio alemão de jornalismo, a última vez em
2018, além de ser eleito jornalista do ano pela CNN. Além disso, “todo mundo na Der
Spiegel gostava dele.” Estava a ponto de ser promovido.
Relotius trazia pautas. Dizia ter acesso a fontes que não falavam
com ninguém mais. Suas reportagens eram bem escritas.
Moreno, por sua vez, é um repórter freelancer, filho de um espanhol que emigrou para a Alemanha.
Em parte por isso, quando Moreno questionou o trabalho de Relotius,
“deram a entender que eu tinha me atrevido a me meter com Deus. Eu estava
convencido de que perderia meu emprego e que ninguém iria querer me contratar
com antecedentes assim.” Aí começou a verdadeira batalha.
Moreno passou cinco semanas dedicado a desmontar as histórias de
Relotius. Aproveitou uma viagem de trabalho aos Estados Unidos para realizar
uma missão secreta. Procurou Foley. Mostrou-lhe uma foto de Relotius. Nunca o vira na
vida. Fez o mesmo com Chris Maloof, outro suposto entrevistado. Tampouco.
Continuavam sem acreditar nele.
Moreno ampliou a investigação e recorreu aos arquivos.
Quanto mais investigava, pior tudo cheirava.
Em 3 de dezembro, um e-mail à revista da
assessora de imprensa do grupo de vigilantes que Relotius
supostamente acompanhara no Arizona questionava como era possível que ele tivesse
escrito um artigo sobre eles sem nem sequer passar por lá.
Mas 10 dias mais tarde chegou a prova definitiva.
Os principais chefes da publicação se reuniram acompanhados de um
técnico de informática. Comprovaram
que Relotius havia manipulado o e-mail e que nunca tinha estado com a milícia
do Arizona. Na madrugada anterior, uma das chefas do impostor o confrontou após
descobrir outra invenção, desta vez no Facebook. Relotius desmoronou e
confessou. Pegou suas coisas e foi embora.
Em 22 de dezembro, a Der Spiegel publicou um número especial
com uma capa vermelha e grandes letras brancas nas quais se lê: “Diga o que é”.
São palavras do fundador da revista, Rudolf Augstein, as mesmas que ocupam um
lugar destacado na redação de Hamburgo e que Relotius traiu até seu amargo
final. Aquela edição dedicava 23 páginas ao assunto. A revista admitia que os
alarmes deveriam ter soado em numerosas ocasiões anteriores.
A publicação criou uma comissão de inquérito. Profissionais
analisarão “como Claas Relotius pôde falsificar histórias, inventar
protagonistas, enganar os colegas e burlar os sistemas de controle de
qualidade, e que mudanças devem ser adotadas na organização”, segundo o e-mail
de uma porta-voz da publicação.
A organização Reporter Fórum
informou que Relotius pediu desculpas e devolveu seus quatro grandes prêmios Reporter.
Enquanto isso, soube-se que Relotius havia pedido dinheiro aos
leitores que se interessaram pelas vítimas descritas em suas reportagens. Através de seus
advogados, ele reconheceu ter arrecadado dinheiro dos
leitores, mas assegurou que o doou a causas humanitárias. Seus advogados
relataram que seu cliente admitiu “ter apresentado fatos falsos e que em
hipótese alguma quis “dar munição aos que agora, com turvas intenções
políticas, apontam sua reportagem como uma prova da existência das
chamadas fake news”. O escritório desses advogados em Hamburgo disse ao EL
PAÍS que Relotius e sua equipe de defesa não pretendem dar mais explicações por
enquanto.
A esta altura, as verdades se confundem com as mentiras. Mas a
extrema direita alemã esfrega as mãos diante de um caso que considera ser a
prova definitiva de que a mídia tradicional é praticamente uma fábrica de fake
news. O embaixador dos
EUA em Berlim, Richard Grenell, o homem forte de Donald Trump na Europa, aproveitou para lançar uma campanha contra a Der
Spiegel. Acusa a revista de “antiamericana”, conturbando ainda mais a já
desgastada relação entre Washington e Berlim.
A acusação de Grenell se baseia numa
das invenções mais alucinantes de Relotius. Em um texto intitulado “Numa
pequena cidade”, ele descreve uma localidade de Minnesota que seria exemplo de
um reduto eleitoral de Trump. Michelle Anderson e Jake Krohn, dois moradores de
Fergus Falls, enumeram em um artigo as invenções de Relotius. O vexame foi
tamanho que a Der Spiegel decidiu
enviar seu correspondente em Washington à cidade para reescrever a reportagem e
pedir perdão.
O Spiegelgate desatou um debate
global sobre as fake news e a compulsão por tornar as histórias atraentes,
mesmo que sob o risco de sacrificar a verdade. Alguns gurus do jornalismo
alertam ultimamente sobre o risco de forçar as histórias para torná-las cada
vez mais atraentes, como se a realidade não bastasse.
Juan
Moreno se diz impactado por descobrir o poder que a persuasão pode chegar a
ter, mesmo entre jornalistas veteranos. Moreno admite que chegou a acreditar
que ninguém seria capaz de cometer tamanha fraude, “no fundo eu considerava que
há certas normas que todos cumprimos.”
A Der
Spiegel confronta agora uma profunda remodelação. Relotius guarda
silêncio. E Moreno voltou à vida de repórter freelancer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário