quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Domingo de sítio


Nelson M. Mendes

O título causa estranhamento. Por que não “domingo no sítio”? Não haverá suspense, a resposta é: porque o Brasil, a América Latina, – o planeta Terra vive em estado de sítio; e porque essa crônica diz respeito a um domingo de música, poesia, civismo e esperança num belíssimo sítio, com o sugestivo nome Viramundo, em Muriqui - Pendotiba, Niterói RJ.
Agnes Moço vem de uma família que respira música. Gerações têm recebido educação musical sob batuta da família. Eis que Agnes organiza o espetáculo “Recuerdos” e põe para cantar boa parte de seus alunos de seu curso de musicalização. Crianças bem miúdas; pré-adolescentes; adolescentes; jovens em botão; alguns adultos: todos fazem soar suas vozes educadas. A própria Agnes não se limita a reger: canta, dança, representa.
E Agnes começa o espetáculo fazendo um chamamento a que todos estejam conscientes de sua condição de brasileiros e sul-americanos. Uma nota política inesperada, mas extremamente bem-vinda.
Porque mais uma vez vemos vidas e valores sob ameaça. Democracia e Fascismo cruzam armas na América Latina; no mundo.
Sejamos didáticos: o Capitalismo, sistema econômico prevalente no mundo, já fez 500 anos; mesmo a sua indumentária artificialmente concebida no século 20 – o Neoliberalismo – não consegue esconder o corpo decadente. 
O Fascismo foi inventado para dar sobrevida ao moribundo. O leitor duvida? Pois saiba que Hitler e Mussolini foram financiados por grandes e conhecidíssimas corporações, que existem até hoje... O Neoliberalismo começou com Mussolini (sim, eu sei que o leitor está surpreso, porque foi levado a crer na associação mentirosa entre Democracia e Neoliberalismo...), e depois veio  a ser experimentado na América do Sul: no Chile do sanguinário ditador Pinochet. (O leitor agora está entendendo?)
Hoje o Chile sofre os efeitos do veneno neoliberal, que foi inoculado nas “veias abertas da América Latina” – título de conhecido livro de Eduardo Galeano. O povo está nas ruas. Na Argentina, o representante neoliberal foi escorraçado nas urnas.
Mas o cabo de guerra é tenso. No Brasil, o povo, doutrinado pela mídia, que trabalha a serviço do poder econômico, elegeu o fascista da vez, encarregado de manter o sistema e até aumentar a desigualdade socioeconômica. Mas o eleito é tão desqualificado, intelectual e moralmente, que não está conseguindo agradar nem aos seus mentores: deve cair.
A América Latina vai despertando da farsa neoliberal. O mundo, entre marchas e contramarchas, vai despertando. Ao mesmo tempo, o mundo conscientiza-se da impossibilidade de crescimento  infinito num planeta finito – promessa do predatório Capitalismo. O planeta não suportaria. O planeta pede nova atitude – política, econômica e ambientalmente. O planeta pede menos Trumps e mais Gretas.
O espetáculo “Recuerdos” começa com uma canção sul-americana. Sob abóbada formada por venerandas árvores, o ar é plenificado por “vozes de América”. Agnes dissera, em sua apresentação, que tinha orgulho de ser sul-americana; e agora sua fala parecia potencializada naquele mantra encantador. Era impossível não se emocionar.
Mas haveria ainda canções populares, folclóricas, infantis e lindos clássicos da MPB, como “Sabiá”. Na retaguarda, o auxílio suntuoso de convidados como Mauro Costa JR...
Como se dizia em tempos idos, o domingo estava soberbo. O tempo, que andara dúbio e chuvoso, firmou. Como o assunto é música, vá lá uma construção sinestésica: o céu retinia de azul. A luz nas matas era puro Batista da Costa. Aquele cenário feito de verdes seria propício para um encontro de fadas e deuses mitológicos.
E quem disse que não estavam presentes deuses e fadas? Muitos ali estavam, vestindo roupas de tecido e carne, cumprindo seu papel de verter vida em canto.
Por fim, o espetáculo volta à tecla inicial: na sequência de uma canção tradicional dos índios Guaranis, um texto do arranjador Felipe Radicetti fala tudo o que tem de ser dito nesses tempos em que o Fascismo mais uma vez se apresenta para salvar o sistema zumbi.
Mas a escolha é uma só: entre o sistema e o planeta. É isso o que nos lembra Greta.

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