terça-feira, 7 de janeiro de 2020

A utopia ecoespiritual




Nelson M. Mendes

Nós não sabemos muito bem o que estamos fazendo nesse planeta azul. A Bíblia diz que isso aqui é um “vale de lágrimas”; Platão diz que fazer reformas na lei e nos regimes é como desferir “golpes nas cabeças de uma hidra” – que, como sabemos, renascem continuamente; a felicidade no plano terrestre, segundo muitos mestres, é uma quimera inalcançável; Eduardo Galeano afirma que buscar a utopia é como caminhar na direção do horizonte, que segue se afastando.

No entanto, caminhar é preciso. Sonhar é preciso. Reformar é preciso. Buscar a utopia é preciso.

O momento é o de buscar a utopia ecoespiritual.

Haverá os conservadores de esquerda que objetarão: “Como assim, utopia ecoespiritual? E a luta de classes? E a conquista dos meios de produção? E o povo no poder?” Bem, o Capitalismo é um cadáver insepulto; mas, como dito no Manifesto da Onça, “não adianta requentar os belos sonhos socialistas”. Essa utopia gorou.

Deus escreve certo por linhas que nos parecem tortas. A humanidade vem cumprindo ciclos civilizatórios há incontáveis milênios. Na apresentação de um espetáculo audiovisual para turistas no Egito, o narrador orgulhoso cita um provérbio árabe: “O homem teme o tempo, mas o tempo teme as pirâmides.” Mal sabem historiadores e arqueólogos o quão verdadeiro pode ser o provérbio... Fora do estreitíssimo âmbito do conhecimento acadêmico, admite-se que o drama humano sobre este orbe começou há muito mais tempo do que se supõe...

Temos razões para acreditar que estamos num momento crucial de um desses ciclos civilizatórios. Já aprendemos as lições do escravagismo, da tirania, do colonialismo, do imperialismo, da discriminação, da fome, da guerra; e estamos rapidamente aprendendo as lições da mentira e da devastação ambiental.

É por isso que o momento é o da utopia ecoespiritual.

Quando Kátia Alves Duarte começou a pensar numa organização para, modestamente, em âmbito local (como recomenda, pelo que nos informa o Google, o sociólogo alemão Ulrich Beck), enfeixar uma série de discussões e ações sobre uma questão fundamental – a preservação do planeta e da própria humanidade – , ela tinha em mente esse tipo de utopia.  E aí, do casamento do idealismo com a empatia, nasceu a Ponto Org.

Este escriba aprendiz estava lá. Eu me lembro de que o próprio nome da associação saiu de um brainstorm em que mais de vinte nomes foram ventilados. Venceu Ponto Org por muitos motivos: o apelo informático; a referência ao termo orgânico e suas muitas acepções; a referência, por extensão, a tudo o que seja natural e alternativo.

Uma flor não rompe o asfalto facilmente: já o disse Drummond.

A Ponto Org, simbolicamente, nasceu numa casa, à sombra opressiva dos prédios da cidade. Mas a casa logo se tornaria um refúgio para quantos quisessem reservar uma horinha do dia para sonhar com a utopia.

O encontro aos sábados se tornou sagrado para muitos. A rotina era comprar produtos orgânicos vindos da fazenda do ator Marcos Palmeira, e tomar um café da manhã natural e coletivo na grande mesa, onde ocorriam os bate-papos ecofilosóficos.

A exemplo do que acontece em poucos locais, como praias e estádios, a interação entre classes e profissões era total: ali estavam a juíza, o promotor, o estudante, o professor, a médica, o artista, o filósofo amador.

O Sarau Literário, conduzido pelo poeta e professor João Ayres, e realizado todo primeiro sábado do mês, seria outro momento especial da agenda Ponto Org: João simplesmente chegava ao espaço (decorado segundo a temática do reaproveitamento e da reciclagem) com um prosaico carrinho de feira abarrotado de livros, que eram distribuídos sobre o mesão. Muitas pessoas levavam de casa seus próprios livros e até seus próprios poemas. Até mesmo este escriba, que passara toda a juventude sem ousar cometer poemas, foi influenciado pelo clima e desandou a poetar.

Saciada a fome de letras, era hora da sobremesa musical. Muita gente boa tocou no local. Alguns, com regularidade, como o singular e adorável grupo Palha de Milho. Mas eu me lembro particularmente de uma noite em que Dino Rangel, Mazinho Ventura e Márcio Bahia fizeram instigante jam session tropical... Entusiasmado, tanto pela música quanto pela cerveja (sim, havia comes e bebes), perguntei a Kátia: “Você tem ideia do que está acontecendo aqui?”

O sonho com a utopia ecoespiritual estaria expresso no próprio nome que Kátia Alves criou para o evento comemorativo da Semana do Meio-Ambiente: “Recicle Seus Valores”. Todo mês de junho, a Ponto Org recebia convidados que faziam palestras e todo tipo de performances. Uma quadra da rua era ocupada por uma espécie de feira-livre, com oficinas, apresentações teatrais, oferta de terapias alternativas, etc. Era o Natal – talvez o carnaval – da Ponto Org.

Mas a flor não viceja facilmente no asfalto. Foi preciso procurar a proteção do campo, num bairro apropriadamente chamado Engenho do Mato.

Numa pitoresca gleba com gramados, árvores e até um pequeno lago, a flor foi replantada. Mensalmente,  o evento “Nosso Quintal é Seu Quintal” atraía para o sítio os sonhadores da utopia. Crianças e adultos divertiam-se, aprendiam e confraternizavam.

Hoje não se vê flor. Mas, no útero da terra, prepara-se a florada futura.


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