Nelson M. Mendes
No entanto, caminhar é
preciso. Sonhar é preciso. Reformar é preciso. Buscar a utopia é preciso.
O momento é o de buscar a utopia
ecoespiritual.
Haverá os conservadores de
esquerda que objetarão: “Como assim, – utopia ecoespiritual? E a luta de
classes? E a conquista dos meios de produção? E o povo no poder?” Bem, o
Capitalismo é um cadáver insepulto; mas, como dito no Manifesto da Onça,
“não adianta requentar os belos sonhos socialistas”. Essa utopia gorou.
Deus escreve certo por linhas
que nos parecem tortas. A humanidade vem cumprindo ciclos civilizatórios há
incontáveis milênios. Na apresentação de um espetáculo audiovisual para turistas
no Egito, o narrador orgulhoso cita um provérbio árabe: “O homem teme o tempo,
mas o tempo teme as pirâmides.” Mal sabem historiadores e arqueólogos o quão
verdadeiro pode ser o provérbio... Fora do estreitíssimo âmbito do conhecimento
acadêmico, admite-se que o drama humano sobre este orbe começou há muito mais
tempo do que se supõe...
Temos razões para acreditar
que estamos num momento crucial de um desses ciclos civilizatórios. Já
aprendemos as lições do escravagismo, da tirania, do colonialismo, do
imperialismo, da discriminação, da fome, da guerra; e estamos rapidamente
aprendendo as lições da mentira e da devastação ambiental.
É por isso que o momento é o da utopia ecoespiritual.
Quando Kátia Alves Duarte começou a
pensar numa organização para, modestamente, em âmbito local (como recomenda,
pelo que nos informa o Google, o sociólogo alemão Ulrich Beck), enfeixar uma
série de discussões e ações sobre uma questão fundamental – a preservação do
planeta e da própria humanidade – , ela tinha em mente esse tipo de
utopia. E aí, do casamento do idealismo
com a empatia, nasceu a Ponto Org.
Este escriba aprendiz estava
lá. Eu me lembro de que o próprio nome da associação saiu de um brainstorm
em que mais de vinte nomes foram ventilados. Venceu Ponto Org por muitos
motivos: o apelo informático; a referência ao termo orgânico e
suas muitas acepções; a referência, por extensão, a tudo o que seja natural
e alternativo.
Uma flor não rompe o asfalto
facilmente: já o disse Drummond.
A Ponto Org, simbolicamente,
nasceu numa casa, à sombra opressiva dos prédios da cidade. Mas a casa logo se
tornaria um refúgio para quantos quisessem reservar uma horinha do dia para
sonhar com a utopia.
O encontro aos sábados se
tornou sagrado para muitos. A rotina era comprar produtos orgânicos
vindos da fazenda do ator Marcos Palmeira, e tomar um café da manhã natural e coletivo
na grande mesa, onde ocorriam os bate-papos ecofilosóficos.
A exemplo do que acontece em
poucos locais, como praias e estádios, a interação entre classes e profissões
era total: ali estavam a juíza, o promotor, o estudante, o professor, a médica,
o artista, o filósofo amador.
O Sarau Literário, conduzido
pelo poeta e professor João Ayres, e realizado todo primeiro sábado do mês, seria
outro momento especial da agenda Ponto Org: João simplesmente chegava ao espaço
(decorado segundo a temática do reaproveitamento e da reciclagem) com um
prosaico carrinho de feira abarrotado de livros, que eram distribuídos sobre o mesão.
Muitas pessoas levavam de casa seus próprios livros e até seus próprios poemas.
Até mesmo este escriba, que passara toda a juventude sem ousar cometer poemas,
foi influenciado pelo clima e desandou a poetar.
Saciada a fome de letras, era
hora da sobremesa musical. Muita gente boa tocou no local. Alguns, com
regularidade, como o singular e adorável grupo Palha de Milho. Mas eu me lembro
particularmente de uma noite em que Dino Rangel, Mazinho Ventura e Márcio Bahia
fizeram instigante jam session tropical... Entusiasmado, tanto pela
música quanto pela cerveja (sim, havia comes e bebes), perguntei a Kátia: “Você
tem ideia do que está acontecendo aqui?”
O sonho com a utopia
ecoespiritual estaria expresso no próprio nome que Kátia Alves criou para o
evento comemorativo da Semana do Meio-Ambiente: “Recicle Seus Valores”. Todo
mês de junho, a Ponto Org recebia convidados que faziam palestras e todo tipo
de performances. Uma quadra da rua era ocupada por uma espécie de feira-livre,
com oficinas, apresentações teatrais, oferta de terapias alternativas, etc. Era
o Natal – talvez o carnaval – da Ponto Org.
Mas a flor não viceja
facilmente no asfalto. Foi preciso procurar a proteção do campo, num bairro
apropriadamente chamado Engenho do Mato.
Numa pitoresca gleba com gramados,
árvores e até um pequeno lago, a flor foi replantada. Mensalmente, o evento “Nosso Quintal é Seu Quintal” atraía
para o sítio os sonhadores da utopia. Crianças e adultos divertiam-se,
aprendiam e confraternizavam.
Hoje não se vê flor. Mas, no
útero da terra, prepara-se a florada futura.
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