Nelson
M. Mendes
Em meados
de julho de 2019, quando os vazamentos do The Intercept já haviam
completado um mês, sem que qualquer mudança política ou institucional houvesse
acontecido (em qualquer outro país já teria havido deposições, prisões,
suicídios – e Lula teria sido solto em uma semana), comecei a desconfiar de que
“estava chegando a hora” de o povo sair da Internet e ir para a rua. Cheguei a
elaborar um lay out com a chamada: “Saia da rede – não adianta só teclar”, com a intenção de publicá-lo no momento certo.
A questão
é que o “momento certo” é uma arte. Os surfistas entendem disso; eles sabem
quando devem começar a remar para pegar a onda.
Como não
quis me precipitar, arriscando-me a não conseguir pegar a onda, comecei a olhar
para o horizonte e a acompanhar o movimento do mar. Aguardava. Confiava. Foi
então que me deparei, no Facebook, com a foto de uma onça bebendo água: a
ilustração literal de uma popular (embora pouco conhecida pelos muito jovens)
figura de linguagem! Rapidamente fiz um corte na foto e acrescentei a legenda
(título): “Está chegando a hora.”
A partir
daí, eu, que voltara a frequentar o Facebook apenas para arremessar duras
verdades (passei anos dando pérolas a porcos nas redes sociais), comecei a
disparar a imagem da onça sempre que cabia a advertência: “Está chegando a
hora.” Ou seja: dada a quantidade de notícias negativas, ridículas,
escatológicas, etc., passou a chover onça no Facebook.
Inicialmente
eu fiz uma postagem no meu perfil. Esta aqui, de 18 de julho:
Depois eu
passei a carimbar a onça sempre que ela cabia em alguma postagem,
acompanhada ou não de um emoji (símbolo) para melhor explicitar minha postura
diante do fato.
Já houve
até quem a princípio admitisse incômodo com a ubiquidade felina; mas se
declarasse simpático à invasão depois que expliquei o sentido da minha campanha...
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É muito
comum que as pessoas sintam que estão num “momento de transição” – fim de um
ciclo e começo de outro. Quantas vezes não achou a humanidade que havia chegado
o fim do mundo? Tudo era sinal: um eclipse, um cometa, uma safra ruim, uma
epidemia, uma tempestade particularmente violenta.
Os homens
também providenciam seus próprios “fins de mundo”, ao praticarem injustiças e
desatinos que resultam em guerras e revoluções.
Mas há
também mudanças que não são repentinas nem extremamente traumáticas. Por exemplo:
lá, no remoto passado, há muito mais tempo do que diz a historiografia oficial,
o homem foi deixando de ser caçador e coletor; passou a criar animais e fazer
cultivos. (A verdade é que houve e continuará havendo ciclos civilizatórios,
cada qual com seu apogeu e decadência em termos de cultura e tecnologia.)
Muitos de
nós temos a tendência a achar que a nossa era é um momento especialíssimo na
história da humanidade. Não é. Os livros dizem que estamos no ápice de um
processo civilizatório que começou com os homens das cavernas, há alguns
milênios. Besteira. Alguns religiosos sustentam que o mundo começou pronto,
por criação divina, há menos tempo ainda – uns seis mil anos. Qualquer
estudante sabe que isso é um disparate, um mito em nada diferente dos que dizem
ter o mundo começado a partir de um certo ovo; ou que o primeiro homem nasceu
num certo lago; ou que Deus habita uma certa montanha, etc. As teogonias e
mitos costumam ter o tamanho da imaginação culturalmente determinada. As
teorias científicas costumam ir até onde vão nossa capacidade de reflexão e
nossos instrumentos.
Entretanto
– e sempre lembrando que a história humana cumpre ciclos que vão muito além de
nossas ingênuas teogonias e precárias teorias – , a verdade é que estamos, sim,
num momento de transição.
Há certos
fatos que estão bem próximos e que não podemos negar. A Revolução Industrial é
um fato; e pelo menos desde os anos 70 do século 20 já se fala em revolução
pós-industrial, caracterizada pela expansão do setor de serviços, em
contraponto ao setor industrial, e pelo desenvolvimento da tecnologia de
informação.
Há uma
outra transformação em curso. Refiro-me à do sistema econômico.
O sistema
econômico diz respeito às “regras do jogo”. É aquele conjunto de leis e teorias
(devemos sempre tomar cuidado com leis e teorias!) que rege as relações econômicas.
Há alguns séculos, o jogo chamava-se Feudalismo; hoje chama-se Capitalismo.
O
Capitalismo (deixemos de lado purismos conceituais e rigores cronológicos) já
tem 500 anos. Por que todos os regimes políticos e todos os sistemas econômicos
morrem – e apenas o Capitalismo seria o “fim da História”, a solução
definitiva? Certos teóricos
deveriam pelo menos ter vergonha acadêmica de abrigarem ideia tão
estúpida, tão fraudulenta, tão anticientífica.
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O povo
tem sido há séculos enganado. Mas nós estamos na era da informação; na era da Internet; das redes
sociais. O poder econômico não vai conseguir manter de pé por muito tempo o
dique político, midiático e cultural que impede o derramamento da verdade. (Os
vazamentos já começaram.)
É preciso
mostrar que o Neoliberalismo (a atual indumentária do Capitalismo) falhou
em tudo. Os 36 homens mais ricos do mundo têm fortuna pessoal equivalente à
riqueza dos 4,7 bilhões mais pobres. No Brasil, os 6 homens mais ricos têm
riqueza equivalente à dos 100 milhões mais pobres.
É preciso
cuidar de nossa aldeia, nossa casa. Que deixemos de ser motivo de piada e nos
transformemos em ensaio do sonho de Darcy Ribeiro – o Brasil tornado “a Roma do
século 21”, uma Roma não beligerante, não intervencionista, mas cooperativa,
afetuosa.
É claro
que não vamos inaugurar o Paraíso na Terra. Isso jamais houve nem haverá. Há
muito o homem sonha com a felicidade, a prosperidade, a paz; em vão. Todos os
mestres falavam disso. Platão foi bem explícito: “Tal homem, tal Estado; os
governos variam como variam os caracteres dos homens [...] Como são
encantadoras as pessoas! [...] Fazem experiências com a legislação e acreditam
que, por meio de reformas, terminarão com as desonestidades e canalhices da
espécie humana – sem perceberem que na realidade estão desferindo golpes nas
cabeças de uma hidra.”
Entretanto,
jamais devemos deixar de tentar construir a Utopia. O homem cresce moral,
intelectual e espiritualmente na tentativa. Esse é o verdadeiro trabalho, de
que resultará a verdadeira colheita. Amenizar as injustiças sociais é um
belíssimo efeito colateral (embora, para muitos nobres sonhadores, essa
seja toda a motivação).
Podemos
nos inspirar em muitos mestres do passado, não podemos? Platão já foi citado;
mas havia seu mestre Sócrates, havia Pitágoras, Buda, Cristo, Krishna... há
sábios do século 20, como Yogananda, Krishnamurti, Ramana Maharshi e até o
brasileiro Huberto Rohden, um filósofo relativamente pouco conhecido...
Claro que
devemos evitar o exemplo dos guerreiros, dos imperadores despóticos, dos
tiranos de qualquer ordem, dos governantes cínicos, que sorriem para o povo e
trabalham para os poderosos (e às vezes nem sorriem!).
As
catacumbas guardam o pó dos conquistadores e dos tiranos. Os corações humanos
guardam a inspiração deixada pelos sábios apaixonados pela humanidade – vale
dizer: pelo Todo, por Deus.
Essa é
uma coisa que temos de ter em mente: se as religiões foram utilizadas durante
milênios para anestesiar e emburrecer o povo, e por tal motivo foram
perseguidas em tempos históricos mais recentes, isso não significa que religião
seja sempre lavagem cerebral, propaganda. Claro que, no mundo posterior à queda
do Muro de Berlim, com a morte da utopia socialista (que nascera talvez de
parto prematuro), o monstro arcaico do fundamentalismo ressurgiu, acompanhado
da hidra do Neoliberalismo a cuspir fogo e veneno por todas as suas neocabeças.
Basta
olhar para o Brasil: cá estão a mídia venal e falaciosa; o Executivo, o
Legislativo, o Judiciário e até o MP trabalhando contra a lei, contra a
justiça, contra o povo; e cá estão as igrejas, principalmente as ditas
evangélicas (temos de dar nomes aos bois!), participando desse trabalho de
imbecilizar o povo, incutir-lhe os bons costumes e delírios capitalistas e,
naturalmente, lucrar bastante com seus fiéis zumbis (não importa aqui o que
seja adjetivo ou substantivo...); porque
afinal, como dizia Millôr, “templo é dinheiro”.
Mas
façamos como os indianos, que escolheram como símbolo da sabedoria a flor de
lótus, que consegue brotar linda e imaculada em sujas águas...
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Frequentemente
ficamos à espera de que alguém venha nos indicar o caminho a seguir; e a
verdade é que muitas vezes devemos nós próprios procurar ou abrir esse caminho.
O caminho
tem que ser novo. É preciso esquecer expressões como “trabalho de base”,
“classe trabalhadora” e até termos como “militância”. Tudo isso foi contaminado
pela lavagem cerebral que há décadas sofre o povo brasileiro – aliás,
estrategicamente privado de uma boa educação, mantido na ignorância que convém
às elites, como explicava Darcy Ribeiro.
Temos de
colocar de lado os velhos conceitos de “esquerda”, “direita”, as velhas táticas
de luta política.
Não
adianta requentar os belos sonhos socialistas. Mas também não adianta falar em
“crescimento econômico”, na prosperidade ilimitada proporcionada para todos pelo
Capitalismo (o planeta nem suporta isso). Poucos ainda acreditam em falácias
como “livre-mercado”, “meritocracia”. Ninguém mais acredita na mídia. Ninguém
mais acredita na igreja. Ninguém mais acredita na política. Ninguém mais
acredita nos militares. Ninguém mais acredita nos empresários. Ninguém mais
acredita nos banqueiros. Ninguém mais acredita em sindicatos. Ninguém mais
acredita no Judiciário. Ninguém mais acredita no Legislativo. Ninguém mais
acredita no Executivo. Ninguém mais acredita no MP. Ninguém mais acredita na
PF. Ninguém mais acredita em Bolsonaro. Ninguém mais acredita em Trump.
Está
chegando a hora: de deter a devastação ambiental, sobretudo na Amazônia; de
acabar com o trabalho “análogo à escravidão”; de sanear o Congresso, o
Judiciário, o MP, a PF e o Planalto; de aplicar a lei contra a mídia que mente
e conspira; de fazer uma verdadeira Democracia; de acordar para a importância
da educação; de promover a verdadeira justiça social; de rever os pilares do
sistema.
Devemos
ter em mente o seguinte: o grande problema brasileiro é a desigualdade. Mas o
povo tem sido doutrinado a acreditar que é a corrupção. Ela existe, e é muito
mais praticada pelos setores corporativo e financeiro do que pelos políticos –
que “ficam com as sobras”, como explica o sociólogo Jessé Souza. Entretanto, a elite putrefata manobra a mídia
e todos os poderes da República para convencer o público de que a corrupção é o
grande mal, e está associada à “esquerda”. Na época de Getúlio criou-se a
história do “mar de lama” em que estaria mergulhado o Palácio do Catete (o Rio
era a capital do país); Jango sofreu a mesma acusação; Brizola sofreu; Lula
sofre há décadas; Dilma foi derrubada sob o ridículo pretexto das “pedaladas”.
As acusações nunca têm qualquer fundamento e, claro, jamais são provadas. Mas o
que importa é desacreditar publicamente o acusado, destruí-lo politicamente; e
até fisicamente, se necessário. Foi assim na Santa Inquisição, no Nazismo, no
Stalinismo, no Macarthismo. É assim no Brasil.
Mas
sejamos realistas: o PT não sabe o que fazer para sairmos da crise; o PSOL não
sabe; os comunistas (com ou sem aspas) não sabem; e é óbvio que os neoliberais
sabem menos ainda. Krishnamurti já dizia há muitas décadas que é preciso buscar
respostas novas para novos desafios.
Há muito
se diz que Brasil é o “país do futuro” –
um futuro que não chega nunca. Bem, talvez esse futuro não tenha chegado porque
ele não deva ser aquele passado melhorado imaginado pelos sonhadores. O
Brasil não está destinado a ser aquele paraíso tropical em que o Capitalismo
finalmente deu certo. O Capitalismo não vai dar certo. E os experimentos
socialistas (Comunismo, de fato, jamais houve no mundo) falharam – porque a
hidra de Platão não falha.
Mas –
perguntarão os observadores atentos – se a hidra platônica haverá de voltar
sempre com cabeças renascidas, o que podemos esperar?
Não
adianta só teclar. Temos de sair às ruas, procurar inocular a criança, o amigo
e o parente com as vacinas da informação, da cidadania, do humanismo, da
espiritualidade. Os “bolsominions”, “bolsonazistas”, “analfascistas” e
“coxinhas” em geral devem ser olhados com compreensão – ainda que possam ser
irritantes e repulsivos. Porque são bonecos manipulados, zumbis gerados nos
laboratórios – verdadeiras indústrias – onde são feitas sinistras experiências
de lavagem cerebral.
O patrono
e a inspiração desses industriais é Goebbels, o famoso Ministro da
Propaganda de Hitler. Mas eles buscam inspiração também na Santa Inquisição, no
Stalinismo, no Macarthismo. O que importa é a lição deixada pelo patrono
nazista, que legou a todos os candidatos a tirano uma série de 11 princípios,
cuja aplicação no Brasil será imediatamente reconhecida, e dos quais vale
destacar o 4º: “Princípio da Exageração e desfiguração – Exagerar
as más noticias até desfigurá-las, transformando um delito em mil delitos,
criando assim um clima de profunda insegurança e temor. ‘O que nos
acontecerá?’”
O grande
temor, nos anos 50/60 do século 20, era a bomba atômica. Já tinha havido
Hiroshima e Nagasaki. A bomba não veio; mas a consciência popular (ou o
“inconsciente coletivo”, de Jung) foi contaminada pela violenta “radioatividade
midiática” que teve origem nos EUA e se espalhou pelo mundo todo.
O mundo
foi ensinado a confundir Comunismo com sua tirânica negação – o Stalinismo; a
ver genericamente todo contestador do sistema como um “comunista sanguinário”
(o 1º princípio de Goebbels é o da “simplificação e do inimigo único”);
a atribuir um valor demoníaco ao conceito de esquerda – como se no
universo houvesse direita sem esquerda, como se tudo fosse estático, como se
houvesse ação sem a reação estudada por Newton...
Devemos,
pois, acolher “o justo, como o pecador”. Mas atenção: é preciso tomar cuidado
com os arrependidos e convertidos. Como diz a psiquiatra Ana
Beatriz Barbosa Silva, “o mal existe” – a psicopatia é um fato. (Basta olhar a
cara de certos pastores, políticos, empresários, banqueiros, jornalistas...) A
psiquiatra explica que existem graus e modalidades de psicopatia; psicopata não
é apenas aquele que mata e esquarteja. O psicopata pode usar terno e gravata,
ser muito respeitável, e matar milhões de pessoas com uma fria caneta. O
psicopata pode ajudar a eleger um homem que tenha esse poder e nem seja
respeitável!
Nos
muitos textos que escrevi tentando explicar o fenômeno do “coxinha”, do “pobre
de direita”, do “bolsonazista” ou “bolsominion”, da “Senzala fazendo o discurso
da Casa-grande”, enfim, eu mencionei a violenta e persistente lavagem cerebral
que o brasileiro sofre há décadas; mas frisei que o pensamento fascista só se
enraíza nas mentes compostas substancialmente do que chamei de “egoísmo basal”.
Ou seja: o Fascismo só pega nas mentes naturalmente propensas ao
preconceito, ao ódio.
Portanto,
como recomendavam nossos avós, é preciso “confiar desconfiando”; porque o escorpião
da parábola poderá picar o sapo no ponto mais turbulento do rio.
Anunciar
e promover a alvorada é o trabalho, hoje, de todo cidadão de boa-vontade no
mundo. O mundo é uma coisa só. Mas o Brasil é o que nos toca; é onde podemos
agir. Tolstoi não disse que, falando de nossa aldeia, estamos falando do mundo?
Disseram também que devemos pensar globalmente e agir localmente.
Krishnamurtianamente, vou além: a verdadeira aldeia é o coração de cada um; é
ali que temos de atuar. “O que somos vem antes do que fazemos.” Nesse
pensamento adolescente eu já exprimia a certeza de que toda mudança tem de
começar por dentro.
Mudança
por dentro significa educação – num sentido amplo, “integral”, como queria
Huberto Rohden. Já dizia Pitágoras: “Educai as crianças e não será preciso
punir os homens.”
A onça
bebendo água significa que velhas máscaras irão cair, e que muitos serão
cobrados pelos seus persistentes erros. Mas significa também que novas luzes se
acenderão nas consciências. O gigante “deitado eternamente em berço
esplêndido”, anestesiado há séculos por elites predatórias, poderá começar a
acordar; e não será um semidespertar, precipitado e falso, como o das performáticas
“jornadas de 2013”: será um despertar seguro e verdadeiro. A flor de lótus irá
brotar no pântano. A onça bebendo água é basicamente uma mensagem de otimismo.
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Alguns
textos que escrevi no blog Satyagraha (que significa “apreço pela verdade”):
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