quarta-feira, 11 de março de 2020

Música X Barulho


Nelson M. Mendes

Quando caminhamos pela cidade, podemos de vez em quando ouvir música: pode estar vindo de algum estabelecimento comercial, de algum carro com aparelho de som poderoso, ou até, como aconteceu a um amigo, da casa de famosa pianista em seus estudos matinais. Porém, o que mais ouvimos não é música: é um vozerio incompreensível, são motores, buzinas, freadas, britadeiras, apitos do guarda...
Quando começamos a caminhar pela vida, ainda crianças, também começamos logo a ouvir um monte de coisas: é a avó que nos conta histórias, reais ou literárias; é a babá que nos fala de fantasma e bicho-papão; é o primo mais velho que nos ensina um monte de besteiras e de palavrões; é aquele vizinho sabe-tudo que fala de política e negócios.
Em geral, nada disso é música: é quase tudo barulho, que só serve para nos confundir e atrapalhar.
Mas o maior de todos os barulhos é aquele produzido pela televisão, pelo rádio, pela Internet, pelo WhatsApp, por jornais, revistas, por todos os meios de comunicação.
Barulho, na nossa definição, é tudo aquilo que atrapalha e confunde. E o barulho produzido pela indústria cultural (TV, rádio, jornal,  Internet – tudo) é feito para confundir.
Não, eu não estou de sacanagem.
O bebê aprende a falar na língua de seus pais, de sua família. Então ele se  acostuma com todos aqueles barulhos e passa a achá-los naturais, a achar que “o mundo é assim mesmo”. Ele a princípio se encanta com as histórias da avó, acredita no bicho-papão, no lobo mau; depois acha o máximo aprender besteiras e palavrões; finalmente, ainda na pré-adolescência,  começa a ser bombardeado por todas aquelas ideias de gente grande: aprende a ser racista, a ter ódio de comunista, a acreditar na meritocracia, e assim por diante.
Uma das primeiras coisas que o garoto aprende com o vizinho esperto, com a televisão e a internet é que ser de esquerda é pior que ser ladrão.  Ele aprende que houve uma coisa chamada “comunismo” num país enorme chamado União Soviética; e que esse país se despedaçou todo, restando apenas um núcleo chamado Rússia; e que o “comunismo” também acabou quando a União Soviética se extinguiu. Aprende também que esse “comunismo” era uma coisa horrível, porque ninguém tinha o direito de possuir propriedades particulares e o governo torturava e matava todo mundo que discordasse do regime.
Sim, eu sei que foi isso que você viu na televisão, é isso o que fala aquele seu tio, é isso o que sustenta aquele seu primo mais velho, é essa história que você encontra nos principais portais na Internet.
Barulho. Barulho para atrapalhar e confundir.
Vamos começar do começo. Todas aquelas coisas horríveis aconteceram na União Soviética. Mas não tinham nada a ver com o Comunismo, um sistema idealizado por um sonhador chamado Karl Marx. O que houve foi uma ditadura comandada por um maníaco sanguinário chamado Josef Stalin – tão sanguinário quanto Hitler, que odiava o “comunismo” e se opunha à União Soviética.
Vamos para antes do começo.
O “comunismo” é odiado nem tanto porque o stalinismo (que muitos confundem com Comunismo) matou milhões de pessoas; na verdade, houve quem se entusiasmasse com o nazifascismo, que também matou milhões e provocou a Segunda Guerra Mundial, exatamente por considerar que qualquer coisa era melhor do que o “comunismo”.
Você está confuso. Você não aprendeu nada disso. E não entende por que a palavra comunismo aparece ora em minúsculas e entre aspas, ora em maiúsculas e sem aspas. E por que nazifascismo vem em minúscula. É que a Gramática manda que se grafe com maiúscula tudo aquilo que for uma doutrina, uma escola, uma filosofia. O Comunismo idealizado por Marx é uma doutrina, com Certidão de Nascimento e CPF; portanto, merece maiúscula. O stalinismo não é uma doutrina, é apenas a palavra que se passou a usar informalmente em referência ao governo de Stalin; portanto, não merece maiúscula. Nazifascismo (aqui em maiúscula porque é começo de frase) também não é doutrina, escola; mas apenas um termo-síntese com que historiadores passaram a se referir ao fenômeno sociopolítico que se manifestou como Nazismo na Alemanha e Fascismo na Itália. E “comunismo” vem em minúscula e entre aspas porque o termo passou a ser usado no lugar exatamente de stalinismo, que dizia respeito às práticas sanguinárias da ditadura de Stalin. O stalinismo é praticamento o oposto do Comunismo sonhado por Marx.
Sei que tudo isso é uma chatice. Mas esses conhecimentos (de Gramática ou História) poderão eventualmente ser úteis se você for fazer alguma prova ou concurso.
O problema é que todos os sistemas – atômicos, cósmicos, biológicos, políticos – têm seu nascimento, desenvolvimento e morte. Já dizia o filósofo Heráclito: “Tudo flui.” Não existe império que dure para sempre. Não existe sistema econômico que dure para sempre.
Mas aquele vizinho sabe-tudo e aquele tio piloto de WhatsApp regurgitam (vomitam) todas aquelas mentiras que absorveram com a TV, o rádio, a Internet, os jornais. Todo aquele barulho feito para confundir.
A maior e mais prestigiosa das mentiras é a de que o Capitalismo é o sistema perfeito e definitivo. A doutrina que rege atualmente o Capitalismo chama-se Neoliberalismo; o Neoliberalismo é a indumentária institucional do Capitalismo, e foi concebida às pressas para substituir o velho Liberalismo, que raramente funcionou e cuja inconsistência ficara demonstrada definitivamente na crise de 1929 (o tal “crash da Bolsa”).
Mas os comentaristas da Globo, o vizinho sabe-tudo e o tio piloto de WhatsApp nem mencionam aquele momento em que o Capitalismo quase morreu, em 29; e insistem em que outro grande colapso, bem mais recente, em 2008 (a tal “crise financeira internacional”) foi apenas uma coceira passageira. Imagine a cena: a pessoa está tendo convulsões, vomitando e evacuando sangue, e o médico diz que “não é nada”.
E por que os comentaristas, o vizinho e o tio agem assim? Porque eles expressam a voz do sistema – que, como todo organismo, biológico ou social, não quer morrer. Como homens primitivos, que gritam e batem coisas para espantar os maus espíritos, os homens contemporâneos fazem um barulho ensurdecedor para espantar a morte inevitável do Capitalismo.
Tudo barulho. Para confundir. Nada de música.
Um aspecto correlato dessa gritaria contra a morte do Capitalismo é a ideia (que já rendeu até livros e tem muitos adeptos) de que não existe mais esquerda; que os esquerdistas são uns psicopatas atrasados. É o “fim da História”, escreveu um imbecil chamado Fukuyama; “There is no alternative”, dizia a megera do Neoliberalismo, Margaret Thatcher.
Ora, a dicotomia direita/esquerda equivale à manifestação, no universo sociopolítico, da terceira lei de Newton – a da ação/reação. A História não chegou ao fim, nem chegará. A História só se move para a esquerda. Até o Capitalismo já foi esquerda um dia. Se não houvesse esquerda, se não houvesse mudanças, não teríamos desenvolvido a agricultura, não teríamos aprendido a domesticar animais; ainda estaríamos nas cavernas, comendo vermes e frutas silvestres.
Outra balela alardeada pela mídia e pelos pilotos de WhatsApp é a tal da meritocracia. Se fôssemos dissecar a palavra, chegaríamos a um significado como “governo daqueles que têm mérito” (assim como Democracia é governo exercido pelo povo, e plutocracia é governo exercido ou influenciado pelo poder econômico). Na verdade, meritocracia, para a maioria das pessoas, significa aquela lei não escrita segundo a qual  cada um tem o que merece. Então: se o sujeito é rico, é porque trabalhou e mereceu conquistar a riqueza. Se o sujeito é pobre, é porque é vagabundo; não importa que ele tenha nascido na miséria, tenha passado fome e nem tenha conseguido frequentar a escola.
Vamos analisar um pouco mais a falácia da meritocracia. A televisão, que é uma das principais vozes da plutocracia (o poder econômico), que é quem mais deseja a sobrevivência do Capitalismo, de vez em quando apresenta a história de uma pessoa miserável que, graças a um esforço sobre-humano, conseguiu estudar, obter um bom emprego, alcançar a classe média. O objetivo é óbvio: mostrar que “qualquer um pode”. Mas qualquer um (desde que não seja um zumbi ou um idiota completo) sabe que raríssimos são os  que saem da miséria e chegam ao sucesso social e material. É mais fácil ganhar na loteria. Geralmente, os que alcançam sucesso vêm de famílias ricas, tiveram a melhor alimentação e os melhores colégios. Ou simplesmente herdaram a fortuna da família.
Outra coisa que a mídia e o tio piloto de WhatsApp adoram divulgar (sempre no interesse da plutocracia, do poder econômico) é a ideia de que o Estado (o governo) só atrapalha. Você já ouviu falar nisso: é aquela história do “Estado mínimo”. Ou seja: para que a economia cresça, para que haja mais riqueza para todos, o governo deve intervir o mínimo possível, deve deixar banqueiros e empresários livres.
Entretanto, essa atitude, em primeiro lugar, jamais resulta no desenvolvimento da sociedade como um todo; jamais resulta em distribuição de riqueza. Em segundo lugar, termina resultando em graves crises do próprio sistema – como em 1929, como em 2008. Em terceiro lugar, apesar do discurso liberal, os governos sempre trataram de intervir na economia. Na verdade – e também apesar do discurso liberal – , não há na História registro de país que tenha se desenvolvido realmente sem a interferência e os investimentos do Estado, contando apenas com a chamada “iniciativa privada”. E o pior de tudo é que é muito forte a tendência a que os governos intervenham, sim, na economia; mas não em favor do povo, de um desenvolvimento socialmente justo – e sim em favor dos mundos corporativo e financeiro. Isso ficou muito claro em 2008: banqueiros e especuladores, que haviam provocado a crise, foram socorridos pelos países (pelo Estado) com bilhões e bilhões de euros e dólares. Aliás, quando o Neoliberalismo foi concebido, seus teóricos estabeleceram que o Estado deveria intervir, sim – mas para salvar o mercado. Portanto: quando o tio piloto de WhatsApp vier com essa história de “estado mínimo”, que também está sempre na boca dos jornalistas desonestos, diga que ele está na contramão das ideias dos próprios criadores da doutrina neoliberal, como Friedich Hayek e Ludwing von Mises.
Sabe outra coisa que a mídia, o vizinho e o piloto de WhatsApp adoram? Falar de “corrupção”. Fazem um barulho danado. Vamos examinar o assunto.
O crime organizado representa aproximadamente um terço dos desvios que drenam as economias nacionais; um absurdo. Entretanto, grandes bancos e empresas transnacionais, através de manobras variadas, são responsáveis por até 65% da sangria. A tal “corrupção política”, sobre a qual a mídia vendida adora produzir notícias que são rapidamente compartilhadas pelos pilotos de WhatsApp, representa apenas 3% dos desvios. (Essas informações não vêm de pesquisadores comunistas, mas de norteamericanos totalmente integrados ao sistema capitalista.)
Mas o Grande Capital (responsável por 65% da roubalheira), através de jornalistas, legisladores, policiais federais, procuradores e juízes (muitos devidamente remunerados, outros por amor à causa) usa a “corrupção política” como pretexto para atacar os políticos que atrapalham os negócios. É só pesquisar um pouquinho sobre a História de Brasil nas últimas décadas, que você vai encontrar vários políticos que foram vítimas dessa guerra suja: Getúlio Vargas, João Goulart, Brizola, Lula, Dilma... Até um fantoche produzido exatamente pelo Grande Capital, como Fernando Collor de Mello, pode não cumprir exatamente o combinado e ser derrubado. O mesmo poderá acontecer com o filhote de Hitler que ainda ocupa, nesse começo de 2020, a cadeira de presidente.
Portanto: esteja consciente de que, assim como, ao caminhar pela rua, você ouve muito barulho e raramente música, ao caminhar pela vida você ouve – da mídia, do WhatsApp, das redes sociais, do vizinho sabe-tudo – uma barulhada infernal que só serve para confundi-lo.
Parafraseando o slogan da Rede Globo: “Notícia honesta – a gente não por aqui.”

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