sábado, 15 de fevereiro de 2020

O Período Cretináceo




Nelson M. Mendes
Rômulo Moreira, procurador de Justiça e professor, escreveu, na página Consultor Jurídico, artigo em que analisava a matéria A Era da Burrice, publicada pela revista Super Interessante naquele outubro de 2018. Dizia ele que a reportagem “talvez explique, ao menos em parte, a ascensão de um fascista na política brasileira”.
A matéria da revista dizia: “Estudos apontam que a inteligência humana começou a cair.” E dava exemplos de coisas que ilustravam a tese do emburrecimento: “1) discussões inúteis, intermináveis e agressivas; 2) gente defendendo as maiores asneiras, e se orgulhando disso; 3) pessoas perseguindo e ameaçando outras; 4) um tsunami infinito de informações falsas; 5) líderes políticos imbecis.”
O fenômeno é mundial. Porém talvez seja particularmente grave no Brasil, onde – lembra a reportagem – 29% da população é analfabeta funcional: não consegue entender o que lê.
A matéria segue relatando que, segundo o psicólogo Michael Woodley, o emburrecimento acontece porque a inteligência “é fortemente influenciada pela genética”; e as pessoas inteligentes costumam ter poucos filhos. A reportagem adverte que essa teoria “levou à Eugenia, uma pseudociência que buscava o aprimoramento da raça humana por meio de reprodução seletiva”.
A revista menciona ainda uma outra hipótese: a disseminação avassaladora de artefatos tecnológicos. Diz o professor Mark Bauerlain: “Hoje, crianças de 7 ou 8 anos já crescem com o celular”, em vez de “consolidar o hábito da leitura, para adquirir vocabulário.” Segundo a reportagem, a Inglaterra estuda banir smartphones das escolas.
A terceira hipótese apresentada pela matéria “é que o uso intensivo das redes sociais, que são projetadas para consumo rápido, esteja corroendo nossa capacidade de prestar atenção às coisas”. Essa desatenção resulta em que todas as coisas tenham que ser toscamente simples, para que possamos compreendê-las. A universidade Carnegie Mellon, nos EUA, fez um estudo e constatou que, para melhor se comunicar com o povo, os políticos americanos usam vocabulário de uma criança de 11 a 13 anos (10 anos, no caso do campeão George W. Bush).
Outra coisa que espertamente fazem os políticos é falar as coisas que o povo quer ouvir; atendem assim à tendência das pessoas a só aceitar as informações que confirmem suas crenças e convicções. Esse mecanismo foi estudado pelo psicólogo Kevin Dunbar: “Há informações demais à nossa volta, e os neurônios precisam filtrá-las. Tem mais: nosso cérebro libera uma descarga de dopamina quando recebemos informações que confirmam nossas crenças. Somos programados para não mudar de opinião. Mesmo que isso signifique acreditar em coisas que não são verdade.”
O professor Rômulo Moreira conclui que a matéria da Super Interessante “ajuda a entender a ascensão fascista no Brasil”. Explica que, “afora os verdadeiros fascistas, há os burros e os irracionais”.
Um certo Thiago Brega de Assis, “pós-graduado em Direito Empresarial e Econômico pela UFJF”, também comenta, na página Empório do Direito, a reportagem da revista Super Interessante. E começa fazendo a análise da análise do professor Rômulo Moreira: “A era da cizânia e a aparente proliferação da burrice, do sítio jurídico Conjur, parte do pressuposto de que o artigo da Super Interessante ‘talvez explique,ao menos em parte, a ascensão de um fascista na política brasileira’.”
Aqui o Thiago Brega (que pelo nome não se perca) pula como se tivesse levado um choque na genitália. Reclama do uso leviano do termo “fascista”, e conclui: “Ainda que as pessoas estejam ficando mais burras, isso não significa que houve ascensão de um fascista na política brasileira, porque o pleito foi vencido democraticamente pelo representante de um ideal de liberalismo econômico sem qualquer veio imperialista, com pretensão explícita de redução do Estado.”
Esse é um daqueles comentários que, reunindo conceitos mal digeridos e até contraditórios, mantidos juntos pela cola fraca e fedorenta da convicção ideológica, nos fazem pensar naqueles pacotes desajeitados e precários que não sabemos nem por onde pegar. Analisar esse feixe de imbecilidades daria um texto à parte. Vamos, pois, nos ater ao essencial.
O articulista, para começo de assunto, mostra reducionismo ideológico, atendo-se ao sentido enciclopédico de Fascismo; mostra, sobretudo pelo contexto em que emprega o advérbio “democraticamente”, cegueira ou cumplicidade em relação à farsa que foi a eleição de 2018; e deixa patente que desconhece a relação uterina, histórica, entre o Neoliberalismo e o Fascismo stricto sensu (o de Mussolini).
Mas é ao analisar as possíveis causas da burrice da população que Brega se mostra bur... burlesco. Depois de descartar as hipóteses genética e tecnológica, focaliza a das redes sociais. Do alto de sua sabedoria, é condescendente com ressalvas: “A última explicação parece plausível, mas pode ser acrescida de argumentos.”
Vai então ao Latim, para arrotar erudição, em busca da etimologia da palavra inteligência. E faz referência ao sentido em que o físico David Bohn usou a palavra ao entrevistar Krishnamurti. (Dois gigantes do pensamento num mesmo parágrafo!) Diz que “sua abordagem científica explica muito melhor a causa da era da burrice que vivenciamos, que decorre da fragmentação do conhecimento humano contemporâneo”. Cita passagem de um livro de Bohn: “Nos tempos primitivos, o entrelaçamento da ciência com as artes e a religião, formando uma unidade inseparável, parecia ser o principal meio pelo qual esse processo de assimilação (de toda experiência humana) acontecia.”
Continua Brega: “Essa totalidade de entendimento do mundo está se perdendo, principalmente a partir da segunda metade do século XX, pelo que se pode dizer que a era da burrice decorre da atual fragmentação do conhecimento.”
Explica que “no período dos gregos e dos romanos a religião influía em todos os aspectos da vida”; e que isso foi interrompido com o Cristianismo, que separou “o comando do Espírito do comando do Corpo social, o que não teve maiores problemas inicialmente, pelo predomínio inconteste da moral cristã no Ocidente, com reflexos também no mundo político-jurídico”.
“Contudo,” – prossegue Brega – “os questionamentos à visão cristã de mundo, especialmente por Darwin, Marx e Freud, surtiram efeito ao longo do século XX, até o ponto de atualmente o relativismo moral não aceitar qualquer padrão de comportamento.”
“A burrice atual tem como causa a religião materialista e individualista que predomina na vida científica e social das pessoas.”
Pausa para respirar. Mais uma vez, não sei nem como pegar o pacote de besteiras desconexas.
Mas que o leitor registre que Darwin, Marx e Freud podem estar na origem do emburrecimento contemporâneo...
O leitor pensa que acabou? Depois de algumas considerações filosóficas, prossegue Brega: “É a pessoa religiosa que busca uma ligação espiritual em tudo o que ocorre, ao contrário dos materialistas, porque para estes o mundo é regido pelo acaso, e, não havendo significado sutil a ser descoberto ou entendido, a inteligência involuiu em um mundo sem substrato religioso.”
Mais pacote.
Mas tem mais: “O tempo em que vivemos, da era da burrice, é, portanto, também o do anticristo, porque Deus, o Criador, o Pai, não está presente na vida científica e social, inclusive jurídica.”
“Portanto, para que a inteligência volte a evoluir, é necessária a aceitação do Cristo. Porque Cristo é o único Caminho para a Verdade, para que cheguemos à Lucidez que dispersa toda escuridão e toda ignorância. Contra a burrice, só Cristo.”
Como sempre faço, editei as citações, por uma questão de economia e assepsia. (Inclusive as do professor Rômulo Moreira, que é muito mais organizado e coerente.) Na íntegra, as afirmações de Brega são ainda mais pitorescas; o caráter de pacote desconjuntado fica ainda mais evidente.
Já disse: estou com preguiça de carregar pacote desconjuntado. Portanto, passarei apenas raspando pela questão religiosa, trazida pelo articulista ao centro da discussão.
Sou suficientemente esclarecido por dentro para não ser ateu. E para saber que não há essa relação automática entre ateísmo e burrice! Inclino-me a acreditar (sou homem de boa vontade) que Thiago Brega de Assis deseja, de fato, alertar para a necessidade de que o homem desperte para a dimensão espiritual de todas as coisas, de modo a realmente compreendê-las. Ele ouviu o galo cantar; mas, no máximo, aquele que assinalou o momento em que Pedro nega conhecer Jesus...
Brega não conhece Jesus. Fundamentalista não conhece Jesus. Bolsonazista não conhece Jesus. Fascista (em qualquer acepção, com ou sem aspas) não conhece Jesus. 
Nesta minha rápida pesquisa sobre a burrice, constatei que o problema é ainda mais grave do que supunha. Quem já frequentou o blog Satyagraha (“apreço pela verdade”), sabe que eu defino o pequeno-fascista (o pequeno-burguês pelo lado de dentro, conforme escrevi) como uma mistura de egoísmo e ignorância: ele é imbecil, sim; mas também tem má índole.
Achei, por exemplo, uma blogueira que também se animou a analisar a matéria da revista Super Interessante sobre a burrice geral. Ela vem falando bobagens com a pegada característica de muitos blogueiros que, não sei se deliberada ou inconscientemente, procuram disfarçar a inconsistência atrás de um estilo alegremente coloquial. Mas é quando ela analisa o tópico “líderes políticos imbecis” (uma das manifestações da Era da Burrice, segundo a revista), que afloram a burrice e a pequenez: “É sério mesmo que você defende os políticos a ponto de perder amizades?” Aqui a autora, cujo perfil conservador já ficara demonstrado anteriormente, assume sua índole pequeno-fascista. Ela tergiversa, e expressa aquele pensamento simplista de que “não vale a pena perder amizades por causa de política”; e também o de que “político é tudo igual”. Oculta cinicamente o fato de que não se trata simplesmente de política, mas de rejeitar quem apoia a tortura, a discriminação, a misoginia, a tirania – a barbárie, enfim. Pequenez e burrice.
Muitos dos exegetas da burrice citaram Umberto Eco, segundo o qual as redes sociais deram voz a imbecis que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. De fato, as redes sociais têm esse condão: elas potencializam e explicitam tudo aquilo que estava incipiente ou oculto.
Mario Sergio Cortella, em entrevista à DW Brasil em 2017, falou de outra coisa que estava semioculta e que passou a jorrar despudoradamente nas redes sociais: o ódio.
O ódio, como tenho explicado em vários ensaios, é basicamente fruto da lavagem cerebral promovida pelo poder econômico através da mídia e muitos outros canais. Mas ele só pega, só se enraíza em quem, no fundo, é burro e mau. Estou parecendo simplista? Radical? Então me expliquem: como alguém pode ser capaz de negar fatos, fotos, números, provas, –  quando tudo isso entra em choque com suas convicções ideológicas? Como alguém pode aprovar as atitudes de um fascista desprezível como aquele que muitos chamam de “mito”?
É o espírito de torcedor. Já tive várias vezes, inclusive nas redes sociais, a oportunidade de ver como pessoas esclarecidas e ponderadas podem se tornar irracionais quando o assunto é futebol. O torcedor político também é assim. Aquele que cresceu envenenado pela propaganda neoliberal, sendo ensinado a odiar “comunistas”, não muda de opinião facilmente. Nós vimos acima: “Somos programados para não mudar de opinião. Mesmo que isso signifique acreditar em coisas que não são verdade.”
Alguém levantará rapidamente a questão de que também há propaganda “comunista”. As aspas se devem a que, como explicado no texto Manual de autoajuda do iludido político II, jamais houve regime de fato comunista no mundo. Mas vá lá: a antiga União Soviética fez muita propaganda. Aliás, uma análise à luz da propaganda comparada mostra que os pressupostos e objetivos da propaganda “comunista” são os mesmos da propaganda fascista e da propaganda capitalista atual. Haverá puristas saltitantes que falarão em diferenças de estilo, de escolas – e, claro, na questão ideológica. Mas, observando um cartaz em que a URSS associava o regime às conquistas espaciais, percebo claramente aqueles elementos iconográficos típicos das histórias em quadrinhos americanas, e que expressam o ufanismo, o nacionalismo e, sobretudo – o que pode parecer a muitos surpreendente, mas não para mim – o individualismo.  O super-herói é a expressão daquele sonho egoísta e egocêntrico de sobrepor-se aos demais. Algum psicanalista ou sociólogo ousaria me desmentir? E esse sonho estava e está na propaganda de todos os países e todos os regimes.
Mas o “comunismo” morreu. Escrevi no Manifesto da onça que, com “a morte da utopia socialista (que nascera talvez de parto prematuro), o monstro arcaico do fundamentalismo ressurgiu, acompanhado da hidra do Neoliberalismo a cuspir fogo e veneno por todas as suas neocabeças”.
O Neoliberalismo, para quem não sabe, é uma doutrina de proveta. Foi criado às pressas pelos grandes teóricos do velho Liberalismo, que só funcionara de fato por breve período em meados do século XIX e desmoronara fragorosa e dolorosamente na crise de 1929. Uma emenda pior que o soneto – mas não é exatamente esse nosso assunto.
O que nos interessa frisar é que, depois da queda do Muro de Berlim, o Capitalismo (agora com sua indumentária neoliberal) avançou como incêndio sem controle; ou mais propriamente como invasão bárbara. Valores, sonhos, culturas, povos e países inteiros foram esmagados pela invasão capitalista. E a propaganda vinha na frente, tocando cornetas e desfraldando bandeiras.
O Brasil não ficou imune a isso. Essa é uma das causas da burrice brasileira.
É claro que tem muito mais coisa.
Darcy Ribeiro dizia que a crise na educação brasileira era, na verdade, um projeto; um projeto da elite, frequentemente associada ao capital transnacional, de manter as massas ignorantes e manipuláveis. “Quanto mais ignorante for o povo, melhor para mim.” Meu falecido sogro e várias outras testemunhas ouviram um antigo governador alagoano dizer isso sem qualquer pudor. Essa atitude talvez explique os 29% de analfabetos funcionais (cerca de 61 milhões); e os mais de 11 milhões de analfabetos propriamente ditos – aqueles que não sabem ler.
Mas a coisa não para aí.
O mesmo desprezo pelo povo que se expressa no descaso pela educação, manifesta-se também na sabotagem da saúde, da vida: por conta de políticas públicas tradicionalmente excludentes, desde os tempos de Colônia, desde os tempos da Escravatura, metade da população, neste fim da segunda década do século XXI, tem deficiências cognitivas relacionadas à desnutrição nos primeiros anos de vida...
O Observatório da Imprensa publicou em 2019 artigo do professor Francisco Fernandes Ladeira intitulado A era do anti-intelectualismo. O professor começa indo diretamente ao ponto: “Em tempos de pós-verdades, fake news, teorias da conspiração e desprezo pelo conhecimento científico, a apologia à ignorância humana está definitivamente na moda.” Refere também a observação de Umberto Eco quanto ao caráter propagador da imbecilidade das redes sociais e lista algumas das pérolas do neopensamento: o terraplanismo; o questionamento da eficácia de vacinas; a contestação de Darwin;  a rejeição a Paulo Freire e a acusação de que as escolas promovem a “ideologia de gênero”, o “cientificismo” e a “doutrinação comunista”; a negação de fatos históricos como o genocídio indígena, a escravidão e o golpe de 1964; a atribuição de caráter esquerdista ao Nazismo (coisa que irritava o próprio Hitler). Conclui o professor: “Os idiotas podem (ainda) não ter dominado o mundo, mas, certamente, estão dominando as redes socais.”
O problema é mais do que uma “chateação”, uma questão de náusea diante da prevalência dos imbecis nas redes sociais e no universo cultural, de modo geral. O problema é que os burros são manobrados pelo poder econômico. Os burros fazem barulho, gritam obscenidades, batem panelas; mas sob regência da mídia, principalmente a Rede Globo. Os burros votam. O procurador Rômulo Moreira foi cauteloso ao dizer que a matéria A era da burrice, na revista Super Interessante, “talvez explique, ao menos em parte, a ascensão de um fascista na política brasileira”. Ele mesmo reconhece que a outra parte fica por conta do espírito fascista de boa parte do povo. Exatamente, procurador. O que explica a eleição do burro fascista é o pequeno-fascista – que é metade burrice, metade egoísmo; oligofrenia e psicopatia.

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