Nelson M.
Mendes
Rômulo
Moreira, procurador de Justiça e professor, escreveu, na página Consultor
Jurídico, artigo em que analisava a matéria A Era da Burrice, publicada
pela revista Super Interessante naquele outubro de 2018. Dizia ele que a
reportagem “talvez explique, ao menos em parte, a ascensão de um fascista na
política brasileira”.
A matéria
da revista dizia: “Estudos apontam que a inteligência humana começou a cair.” E
dava exemplos de coisas que ilustravam a tese do emburrecimento: “1) discussões
inúteis, intermináveis e agressivas; 2) gente defendendo as maiores asneiras, e
se orgulhando disso; 3) pessoas perseguindo e ameaçando outras; 4) um tsunami
infinito de informações falsas; 5) líderes políticos imbecis.”
O
fenômeno é mundial. Porém talvez seja particularmente grave no Brasil, onde –
lembra a reportagem – 29% da população é analfabeta funcional: não consegue
entender o que lê.
A matéria
segue relatando que, segundo o psicólogo Michael Woodley, o emburrecimento
acontece porque a inteligência “é fortemente influenciada pela genética”; e as
pessoas inteligentes costumam ter poucos filhos. A reportagem adverte que essa
teoria “levou à Eugenia, uma pseudociência que buscava o aprimoramento da raça
humana por meio de reprodução seletiva”.
A revista
menciona ainda uma outra hipótese: a disseminação avassaladora de artefatos
tecnológicos. Diz o professor Mark Bauerlain: “Hoje, crianças de 7 ou 8 anos já
crescem com o celular”, em vez de “consolidar o hábito da leitura, para
adquirir vocabulário.” Segundo a reportagem, a Inglaterra estuda banir smartphones
das escolas.
A
terceira hipótese apresentada pela matéria “é que o uso intensivo das redes
sociais, que são projetadas para consumo rápido, esteja corroendo nossa
capacidade de prestar atenção às coisas”. Essa desatenção resulta em que todas
as coisas tenham que ser toscamente simples, para que possamos compreendê-las.
A universidade Carnegie Mellon, nos EUA, fez um estudo e constatou que, para
melhor se comunicar com o povo, os políticos americanos usam vocabulário de uma
criança de 11 a 13 anos (10 anos, no caso do campeão George W. Bush).
Outra
coisa que espertamente fazem os políticos é falar as coisas que o povo quer
ouvir; atendem assim à tendência das pessoas a só aceitar as informações que
confirmem suas crenças e convicções. Esse mecanismo foi estudado pelo psicólogo
Kevin Dunbar: “Há informações demais à nossa volta, e os neurônios precisam
filtrá-las. Tem mais: nosso cérebro libera uma descarga de dopamina quando
recebemos informações que confirmam nossas crenças. Somos programados para não
mudar de opinião. Mesmo que isso signifique acreditar em coisas que não são
verdade.”
O
professor Rômulo Moreira conclui que a matéria da Super Interessante
“ajuda a entender a ascensão fascista no Brasil”. Explica que, “afora os
verdadeiros fascistas, há os burros e os irracionais”.
Um certo Thiago
Brega de Assis, “pós-graduado em Direito Empresarial e Econômico pela UFJF”,
também comenta, na página Empório do Direito, a reportagem da revista Super
Interessante. E começa fazendo a análise da análise do professor Rômulo Moreira:
“A era da cizânia e a aparente proliferação da burrice, do sítio
jurídico Conjur, parte do pressuposto de que o artigo da Super
Interessante ‘talvez explique,ao menos em parte, a ascensão de um fascista
na política brasileira’.”
Aqui o
Thiago Brega (que pelo nome não se perca) pula como se tivesse levado um choque
na genitália. Reclama do uso leviano do termo “fascista”, e conclui: “Ainda que
as pessoas estejam ficando mais burras, isso não significa que houve ascensão
de um fascista na política brasileira, porque o pleito foi vencido
democraticamente pelo representante de um ideal de liberalismo econômico sem
qualquer veio imperialista, com pretensão explícita de redução do Estado.”
Esse é um
daqueles comentários que, reunindo conceitos mal digeridos e até
contraditórios, mantidos juntos pela cola fraca e fedorenta da convicção
ideológica, nos fazem pensar naqueles pacotes desajeitados e precários que não
sabemos nem por onde pegar. Analisar esse feixe de imbecilidades daria um texto
à parte. Vamos, pois, nos ater ao essencial.
O
articulista, para começo de assunto, mostra reducionismo ideológico, atendo-se
ao sentido enciclopédico de Fascismo; mostra, sobretudo pelo contexto em
que emprega o advérbio “democraticamente”, cegueira ou cumplicidade em relação
à farsa que foi a eleição de 2018; e deixa patente que desconhece a relação uterina, histórica, entre o Neoliberalismo e o Fascismo stricto sensu (o de
Mussolini).
Mas é ao
analisar as possíveis causas da burrice da população que Brega se mostra bur...
burlesco. Depois de descartar as hipóteses genética e tecnológica, focaliza a
das redes sociais. Do alto de sua sabedoria, é condescendente com ressalvas: “A
última explicação parece plausível, mas pode ser acrescida de argumentos.”
Vai então
ao Latim, para arrotar erudição, em busca da etimologia da palavra inteligência.
E faz referência ao sentido em que o físico David Bohn usou a palavra ao
entrevistar Krishnamurti. (Dois gigantes do pensamento num mesmo parágrafo!)
Diz que “sua abordagem científica explica muito melhor a causa da era da
burrice que vivenciamos, que decorre da fragmentação do conhecimento humano
contemporâneo”. Cita passagem de um livro de Bohn: “Nos tempos primitivos, o
entrelaçamento da ciência com as artes e a religião, formando uma unidade
inseparável, parecia ser o principal meio pelo qual esse processo de
assimilação (de toda experiência humana) acontecia.”
Continua
Brega: “Essa totalidade de entendimento do mundo está se perdendo,
principalmente a partir da segunda metade do século XX, pelo que se pode dizer
que a era da burrice decorre da atual fragmentação do conhecimento.”
Explica
que “no período dos gregos e dos romanos a religião influía em todos os
aspectos da vida”; e que isso foi interrompido com o Cristianismo, que separou
“o comando do Espírito do comando do Corpo social, o que não teve maiores
problemas inicialmente, pelo predomínio inconteste da moral cristã no Ocidente,
com reflexos também no mundo político-jurídico”.
“Contudo,”
– prossegue Brega – “os questionamentos à visão cristã de mundo, especialmente
por Darwin, Marx e Freud, surtiram efeito ao longo do século XX, até o ponto de
atualmente o relativismo moral não aceitar qualquer padrão de comportamento.”
“A
burrice atual tem como causa a religião materialista e individualista que
predomina na vida científica e social das pessoas.”
Pausa
para respirar. Mais uma vez, não sei nem como pegar o pacote de besteiras
desconexas.
Mas que o
leitor registre que Darwin, Marx e Freud podem estar na origem do
emburrecimento contemporâneo...
O leitor
pensa que acabou? Depois de algumas considerações filosóficas, prossegue
Brega: “É a pessoa religiosa que busca uma ligação espiritual em tudo o que
ocorre, ao contrário dos materialistas, porque para estes o mundo é regido pelo
acaso, e, não havendo significado sutil a ser descoberto ou entendido, a
inteligência involuiu em um mundo sem substrato religioso.”
Mais pacote.
Mas tem
mais: “O tempo em que vivemos, da era da burrice, é, portanto, também o do
anticristo, porque Deus, o Criador, o Pai, não está presente na vida científica
e social, inclusive jurídica.”
“Portanto,
para que a inteligência volte a evoluir, é necessária a aceitação do Cristo.
Porque Cristo é o único Caminho para a Verdade, para que cheguemos à Lucidez
que dispersa toda escuridão e toda ignorância. Contra a burrice, só Cristo.”
Como
sempre faço, editei as citações, por uma questão de economia e assepsia. (Inclusive
as do professor Rômulo Moreira, que é muito mais organizado e coerente.) Na
íntegra, as afirmações de Brega são ainda mais pitorescas; o caráter de pacote
desconjuntado fica ainda mais evidente.
Já disse:
estou com preguiça de carregar pacote desconjuntado. Portanto, passarei apenas
raspando pela questão religiosa, trazida pelo articulista ao centro da
discussão.
Sou
suficientemente esclarecido por dentro para não ser ateu. E para saber
que não há essa relação automática entre ateísmo e burrice! Inclino-me a
acreditar (sou homem de boa vontade) que Thiago Brega de Assis deseja, de fato,
alertar para a necessidade de que o homem desperte para a dimensão espiritual
de todas as coisas, de modo a realmente compreendê-las. Ele ouviu o galo
cantar; mas, no máximo, aquele que assinalou o momento em que Pedro nega
conhecer Jesus...
Brega não
conhece Jesus. Fundamentalista não conhece Jesus. Bolsonazista não conhece
Jesus. Fascista (em qualquer acepção, com ou sem aspas) não conhece Jesus.
Nesta
minha rápida pesquisa sobre a burrice, constatei que o problema é ainda mais
grave do que supunha. Quem já frequentou o blog Satyagraha (“apreço pela
verdade”), sabe que eu defino o pequeno-fascista (o pequeno-burguês pelo
lado de dentro, conforme escrevi) como uma mistura de egoísmo e ignorância: ele
é imbecil, sim; mas também tem má índole.
Achei,
por exemplo, uma blogueira que também se animou a analisar a matéria da revista
Super Interessante sobre a burrice geral. Ela vem falando bobagens com a
pegada característica de muitos blogueiros que, não sei se deliberada ou
inconscientemente, procuram disfarçar a inconsistência atrás de um estilo
alegremente coloquial. Mas é quando ela analisa o tópico “líderes políticos
imbecis” (uma das manifestações da Era da Burrice, segundo a revista), que
afloram a burrice e a pequenez: “É sério mesmo que você defende os políticos a
ponto de perder amizades?” Aqui a autora, cujo perfil conservador já ficara
demonstrado anteriormente, assume sua índole pequeno-fascista. Ela tergiversa,
e expressa aquele pensamento simplista de que “não vale a pena perder amizades
por causa de política”; e também o de que “político é tudo igual”. Oculta
cinicamente o fato de que não se trata simplesmente de política, mas de
rejeitar quem apoia a tortura, a discriminação, a misoginia, a tirania – a barbárie,
enfim. Pequenez e burrice.
Muitos
dos exegetas da burrice citaram Umberto Eco, segundo o qual as redes
sociais deram voz a imbecis que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma
taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. De fato, as redes sociais têm
esse condão: elas potencializam e explicitam tudo aquilo que estava incipiente
ou oculto.
Mario
Sergio Cortella, em entrevista à DW Brasil em 2017, falou de outra coisa que
estava semioculta e que passou a jorrar despudoradamente nas redes sociais: o
ódio.
O ódio,
como tenho explicado em vários ensaios, é basicamente fruto da lavagem cerebral
promovida pelo poder econômico através da mídia e muitos outros canais. Mas ele
só pega, só se enraíza em quem, no fundo, é burro e mau. Estou parecendo
simplista? Radical? Então me expliquem: como alguém pode ser capaz de negar
fatos, fotos, números, provas, – quando
tudo isso entra em choque com suas convicções ideológicas? Como alguém
pode aprovar as atitudes de um fascista desprezível como aquele que muitos
chamam de “mito”?
É o espírito
de torcedor. Já tive várias vezes, inclusive nas redes sociais, a
oportunidade de ver como pessoas esclarecidas e ponderadas podem se tornar
irracionais quando o assunto é futebol. O torcedor político também é
assim. Aquele que cresceu envenenado pela propaganda neoliberal, sendo ensinado
a odiar “comunistas”, não muda de opinião facilmente. Nós vimos acima: “Somos
programados para não mudar de opinião. Mesmo que isso signifique acreditar em
coisas que não são verdade.”
Alguém
levantará rapidamente a questão de que também há propaganda “comunista”. As
aspas se devem a que, como explicado no texto Manual de autoajuda do iludido político II, jamais houve regime de fato comunista no mundo. Mas vá lá: a
antiga União Soviética fez muita propaganda. Aliás, uma análise à luz da propaganda
comparada mostra que os pressupostos e objetivos da propaganda “comunista” são
os mesmos da propaganda fascista e da propaganda capitalista atual. Haverá
puristas saltitantes que falarão em diferenças de estilo, de escolas – e,
claro, na questão ideológica. Mas, observando um cartaz em que a URSS associava
o regime às conquistas espaciais, percebo claramente aqueles elementos
iconográficos típicos das histórias em quadrinhos americanas, e que expressam o
ufanismo, o nacionalismo e, sobretudo – o que pode parecer a muitos
surpreendente, mas não para mim – o individualismo. O super-herói é a expressão daquele sonho
egoísta e egocêntrico de sobrepor-se aos demais. Algum psicanalista ou
sociólogo ousaria me desmentir? E esse sonho estava e está na propaganda de
todos os países e todos os regimes.
Mas o
“comunismo” morreu. Escrevi no Manifesto da onça que, com “a morte da
utopia socialista (que nascera talvez de parto prematuro), o monstro arcaico do
fundamentalismo ressurgiu, acompanhado da hidra do Neoliberalismo a cuspir fogo
e veneno por todas as suas neocabeças”.
O
Neoliberalismo, para quem não sabe, é uma doutrina de proveta. Foi
criado às pressas pelos grandes teóricos do velho Liberalismo, que só funcionara
de fato por breve período em meados do século XIX e desmoronara fragorosa e
dolorosamente na crise de 1929. Uma emenda pior que o soneto – mas não é
exatamente esse nosso assunto.
O que nos
interessa frisar é que, depois da queda do Muro de Berlim, o Capitalismo (agora
com sua indumentária neoliberal) avançou como incêndio sem controle; ou mais
propriamente como invasão bárbara. Valores, sonhos, culturas, povos e países
inteiros foram esmagados pela invasão capitalista. E a propaganda vinha na
frente, tocando cornetas e desfraldando bandeiras.
O Brasil
não ficou imune a isso. Essa é uma das causas da burrice brasileira.
É claro
que tem muito mais coisa.
Darcy
Ribeiro dizia que a crise na educação brasileira era, na verdade, um projeto;
um projeto da elite, frequentemente associada ao capital transnacional, de
manter as massas ignorantes e manipuláveis. “Quanto mais ignorante for o povo,
melhor para mim.” Meu falecido sogro e várias outras testemunhas ouviram um
antigo governador alagoano dizer isso sem qualquer pudor. Essa atitude talvez
explique os 29% de analfabetos funcionais (cerca de 61 milhões); e os mais de
11 milhões de analfabetos propriamente ditos – aqueles que não sabem ler.
Mas a coisa
não para aí.
O mesmo
desprezo pelo povo que se expressa no descaso pela educação, manifesta-se
também na sabotagem da saúde, da vida: por conta de políticas públicas
tradicionalmente excludentes, desde os tempos de Colônia, desde os tempos da
Escravatura, metade da população, neste fim da segunda década do século XXI, tem
deficiências cognitivas relacionadas à desnutrição nos primeiros anos de
vida...
O Observatório
da Imprensa publicou em 2019 artigo do professor Francisco Fernandes
Ladeira intitulado A era do anti-intelectualismo. O professor começa
indo diretamente ao ponto: “Em tempos de pós-verdades, fake news, teorias da
conspiração e desprezo pelo conhecimento científico, a apologia à ignorância
humana está definitivamente na moda.” Refere também a observação de Umberto Eco
quanto ao caráter propagador da imbecilidade das redes sociais e lista
algumas das pérolas do neopensamento: o terraplanismo; o questionamento
da eficácia de vacinas; a contestação de Darwin; a rejeição a Paulo Freire e a acusação de que
as escolas promovem a “ideologia de gênero”, o “cientificismo” e a “doutrinação
comunista”; a negação de fatos históricos como o genocídio indígena, a
escravidão e o golpe de 1964; a atribuição de caráter esquerdista ao
Nazismo (coisa que irritava o próprio Hitler). Conclui o professor: “Os idiotas
podem (ainda) não ter dominado o mundo, mas, certamente, estão dominando as
redes socais.”
O
problema é mais do que uma “chateação”, uma questão de náusea diante da
prevalência dos imbecis nas redes sociais e no universo cultural, de modo
geral. O problema é que os burros são manobrados pelo poder econômico. Os
burros fazem barulho, gritam obscenidades, batem panelas; mas sob regência da
mídia, principalmente a Rede Globo. Os burros votam. O procurador Rômulo
Moreira foi cauteloso ao dizer que a matéria A era da burrice, na
revista Super Interessante, “talvez explique, ao menos em parte, a
ascensão de um fascista na política brasileira”. Ele mesmo reconhece que a
outra parte fica por conta do espírito fascista de boa parte do povo.
Exatamente, procurador. O que explica a eleição do burro fascista é o
pequeno-fascista – que é metade burrice, metade egoísmo; oligofrenia e
psicopatia.
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