Nelson M. Mendes
As crianças aprendem com o Tio Patinhas que “tempo é dinheiro”. Mais tarde, aprendem que “a propaganda é a alma do negócio”.
No meu diploma universitário consta: “Bacharel em Comunicação Social”. Formei-me pela Universidade Federal Fluminense, na especialização Publicidade e Propaganda. Portanto: formalmente, sou publicitário. E fico à vontade para fazer uma declaração aparentemente bombástica: publicidade é mentira institucionalizada. E para adaptar o velho adágio capitalista: a publicidade é a arma do negócio.
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E, já que o assunto é mentira, fraude, quero esclarecer logo uma coisa: apresentarei as citações quase sempre editadas, por uma questão de clareza e economia de espaço. Haverá aspas; mas, por assepsia, raramente aqueles irritantes colchetes com reticências...
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O economista maldito Adriano Benayon (maldito porque fala a verdade que o poder econômico oculta, com ajuda da grande mídia) escrevia, às vésperas da “crise financeira internacional” de 2007/08, que “finança é necessária para prover moeda e desenvolver a economia real”. Entretanto, explicava ele, “quem controla a emissão dos meios de pagamento à vista e a dos títulos de crédito manda na sociedade”.
Benayon segue refletindo: “A especulação é antiga como o mundo. Os bancos centrais têm sido regidos pela oligarquia financeira, a raposa que controla galinheiros, como o Banco da Inglaterra, há séculos, e o Federal Reserve (FED), dos EUA, desde sua criação, em 1913.”
Explica ainda o economista que, “para investir, os bancos usam recursos do banco central a custo inferior aos juros que auferem”. E que, “ávidos de lucros e poder, criam montanhas de ativos financeiros mais altas que o Everest.” Às vésperas do colapso anunciado, Benayon escreveu aquilo que jamais sairia na Veja ou na Rede Globo: “Observadores calculam que mais de US$ 1 trilhão de ativos já ficaram sem valor nos últimos meses. A bolha pode alcançar US$ 20 trilhões, segundo o Serviço de Notícias da Executive Intelligence Review.” E acrescentou: “Tudo isso é escondido dos olhos do grande público. A oligarquia responsável pelo colapso pretende fazê-lo pagar por este. Virá a depressão, e já está difícil ocultar a natureza fraudulenta do sistema mundial de poder.”
Por tais motivos – escreve Benayon, indignado – “nunca soou tão ridícula como agora esta nota, em destaque no portal do Tesouro dos EUA: ‘Os EUA têm o mercado de capitais mais forte do mundo, e essa posição é conseguida através de trabalho duro e estratégias inteligentes’".
Propaganda é mentira institucionalizada. Propaganda é a arma do negócio.
Mas a propaganda no sentido amplo. Mentem economistas, jornalistas, juristas, acadêmicos; todos cooptados pelo poder econômico transnacional. O saudoso Pedro Porfírio, num outro contexto, mas na mesma época em que o tsunami financeiro já rugia à pequena distância, escreveu: “Você está sendo tratado como idiota – e aceita mansamente – pelos protagonistas dos poderes e pelos vendedores de informações.”
Um esclarecido faceamigo, Alexandre Périgo, fez em julho de 2019 a lista do que chamou de “minhas falácias neoliberais prediletas”: a primeira é a de que um Estado enxuto é incorruptível – o que serve apenas para justificar a privatização criminosa de estatais; a segunda é a de que a lógica do lucro a todo custo pode ser aplicada a empresas estratégicas e com forte papel social; a terceira é a da meritocracia, porquanto são exceções desonestamente alardeadas pela mídia os casos de pessoas que, partindo de precárias condições de saúde e educação, conseguem alcançar razoável patamar socioeconômico; a quarta e mais prestigiosa falácia é a do livre-mercado, que só funcionou por breve período em meados do século XIX e que, entretanto, é uma quimera difundida pelas potências hegemônicas para facilitar a exploração de países periféricos.
O sociólogo Jessé Souza, um dos mais argutos e honestos observadores da realidade contemporânea, escreveu em junho de 2019 que “grande imprensa a serviço do capital financeiro” foi o principal fator de desgaste da democracia brasileira. Depois de espantar-se com “o grau de venalidade e parcialidade da grande imprensa brasileira a partir de 2013”, ele registra: “é burrice atacar a democracia se a atividade que você exerce sobrevive graças às garantias que ela proporciona.” E lembra que a recente blitz da imprensa havia começado em 2012, depois que Dilma ousara contrariar o sistema financeiro na questão dos juros, em relação à qual Jessé usa expressão que nós próprios apreciamos bastante: “corrupção legalizada”.
Jessé denuncia também a velhíssima prática de atribuir à corrupção política os problemas brasileiros: “a origem dos problemas brasileiros, como a pobreza de seu povo e a desigualdade, não está apenas, nem mesmo principalmente, na corrupção política”.
Isso nos remete imediatamente a nosso próprio texto – “O lawfare que fere Lula” – de 2017: “O Delegado José Castilho, que foi boicotado na investigação do Escândalo Banestado ao chegar perto da cúpula do governo FHC e do poder econômico, declarou: ‘Me é difícil conciliar o sono à noite, só de pensar nas crianças abandonadas. Por trás de tudo isso está a corrupção.’ Inocência do delegado. A corrupção não é o grande problema. O principal problema brasileiro é a desigualdade. Para mantê-la, os poderosos iludem as massas, inclusive com a quimera da corrupção. Prestidigitação é isso. Enquanto o mágico chama a atenção do público para detalhes sem importância, um elefante se materializa no fundo do palco.”
A mentira é a arma do negócio.
Aqui no Brasil – o país que cultiva o “jeitinho” (o atalho, a solução paliativa ou paralegal) – e que por isso não “toma jeito”, - há mentiras que se tornaram verdadeiros dogmas.
Por exemplo: a necessidade de manter elevada a taxa de juros Selic para controlar a inflação. Os economistas honestos explicam que a inflação pode ter várias causas; e que apenas a chamada “inflação de demanda” – aquela causada pela irrefreável voracidade consumista de um povo com dinheiro sobrando no bolso – pode ser amenizada com o aumento dos juros, uma vez que isso desestimula as compras a crédito. Mais uma vez, Adriano Benayon, em artigo de 2008, ressalvava: “Mas nem isso é certo, uma vez que os preços são, em geral, determinados por economia muito oligopolizada e cartelizada.” Ora, no Brasil os juros (filhotes da taxa básica Selic) são tradicionalmente escorchantes; não importa se a economia está parada e os vendedores às moscas.
Adriano Benayon foi entrevistado em 2008 pela TV sobre mais um aumento da taxa de juros Selic, e explicou que os juros altos, em vez de combater a inflação, inibem os investimentos produtivos, diminuindo a oferta e causando inflação. E – claro – com retração da produção, o desemprego cresce. Os juros altos – ressaltou – beneficiam apenas os especuladores financeiros, que transferem fortunas para o exterior.
Conta o professor Benayon que o noticiário da noite, na emissora, reservou cerca de 50 minutos para assuntos como a história do menino que tinha mordido o cachorro; e que sua entrevista foi condensada numa fraudulenta e incompreensível edição de 10 segundos.
Benayon havia cometido o erro imperdoável – no país da mentira – de falar a verdade. Obviamente, nunca mais foi convidado por qualquer órgão da grande imprensa.
O economista Amir Khair escrevia, em 2013, que a convergência da inflação típica de todo fim de ano com a inflação nos alimentos (provocada por fatores climáticos) dá ao mercado financeiro a chance de advogar o aumento da taxa de juros Selic, sob o pretexto cínico de “combater a inflação”. Explicou que, até meados de 2013, a elevação da Selic tinha custado ao governo uma sangria de mais R$34 bilhões – contra os R$23 bilhões previstos para o Bolsa-Família até o fim do ano.
Benayon – o maldito – reitera, em texto de 2019 em que analisa outra grande mentira, a do “déficit da Previdência”, que, enquanto as tarifas dos serviços privatizados, quase todos em mãos transnacionais, sobem continuamente, o governo cinicamente eleva a taxa Selic de juros, para controlar a inflação...
Essa outra mentira abjeta – a do “déficit da Previdência” – merece atenção especial. Há anos a professora Denise Gentil – apenas para citar um exemplo – desmontou essa farsa. Nesse artigo de 2019, Benayon diz o óbvio que poucos querem ouvir: a mídia esconde que não é a Previdência, mas Dívida Pública o grande ralo dos recursos brasileiros. Sob orientação do Banco Mundial e do FMI, ataca-se a Previdência, com vistas à sua privatização e à sobra de mais recursos para alimentar os banqueiros. O advogado e professor Marcio Sotelo explica que o “projeto anticrime” de Moro está acoplado à reforma da Previdência: “A reforma da Previdência vai aprofundar a miséria da massa trabalhadora. Uma tal estrutura iníqua de dominação não é mantida apenas com mecanismos ideológicos. É preciso também a violência do Estado para controle dos excluídos.”E diz, com todas as letras: “O déficit da previdência é a grande mentira do século 21, pelo menos até este ano da graça de 2019. Ele simplesmente não existe. É uma manobra grosseira martelada incessantemente, dia e noite, pelos grandes órgãos de comunicação.”
O leitor está acordando do torpor midiático? Está percebendo que tem sido “imbecilizado” pela mídia, como diz o sociólogo Jessé Souza?
Jessé Souza é praticamente um especialista em desnudar mentiras. Segundo ele, há um complexo de mentiras (a expressão é nossa tradução do pensamento do sociólogo) usado pelas oligarquias para manipular o povo: 1) a corrupção é o grande problema brasileiro; 2) a corrupção é praticada sobretudo pelo setor político; 3) a corrupção tem a ver com nossa “herança ibérica patrimonialista”.
Explica o sociólogo que a nossa verdadeira herança é o escravagismo: “Somos moldados por instituições. E a instituição mais importante que temos no Brasil é a escravidão.” Essa herança escravagista – explica ele – se manifesta, hoje, no desprezo que a classe média tem pelo pobre. Segundo Jessé, esse diversionismo intelectual “garante invisibilidade para a real corrupção, que nos dias de hoje é a montada pelo mercado, pelos oligopólios e atravessadores”. Souza afirma que “os políticos ficam com as sobras” da corrupção.
Em entrevista em Paris, Jessé Souza foi ao âmago do pensamento da elite: “Como eu posso fazer a classe média servir aos meus interesses? É preciso imbecilizá-la e fazê-la agir contra seus próprios interesses de classe. É preciso conquistá-la pelas idéias.” Então a elite, através de mercenários na imprensa e na academia, inocula na classe média ‘idéias’ como a de que nosso problema é a corrupção e que ela se deve à nossa “herança ibérica”.
Uma outra dessas idéias, que integra o universo das “falácias neoliberais” mencionadas acima, é a de que a pobreza é ou culpa do próprio indivíduo, ou culpa dos políticos corruptos; o poder econômico transnacional, que é quem em verdade manipula presidentes, primeiros-ministros e o próprio destino de nações inteiras, jamais é mencionado.
A mentira é a arma do negócio.
No texto “É a lama, é a lama”, em que faço um paralelo entre o tsunami de lama produzido pela “doada-privatizada” (Helio Fernandes) Vale em Brumadinho, e o tsunami de mentiras que há décadas impede o Brasil de ter um “destino próprio” (Brizola), eu, a partir da parábola do elefante que se materializa no fundo do palco através da prestidigitação midiática, passei a adotar o animal como símbolo desse poder econômico transnacional. E escrevi: “Sim, o Elefante não consome apenas minério, madeira, água, gente; como símbolo da hipertrofia cancerosa do Capitalismo, o paquiderme é voraz consumidor de dinheiro. E frenético evacuador de mentiras.”
E continuo: “A mentira básica defecada pelo nefasto elefante chama-se ‘livre mercado’”.
E ainda: “Um outro segmento da mesma merda é a valorização mítica dos chamados ‘investimentos privados’”. E explico aquilo que todos os historiadores, sociólogos, todos os acadêmicos honestos estão cansados de saber: não há na História exemplo de país que tenha realmente se desenvolvido graças a ‘investimentos privados’, e sem a atuação do Estado.
Entretanto, todas essas fezes são consumidas avidamente por um público ao qual é negada alimentação mais nutritiva. Em Medicina Veterinária, o fenômeno chama-se “apetite depravado”: o animal, com carências nutricionais, sai a comer terra, paredes, lamber moirões e fazer bizarrices tais.
Outra mentira muito divulgada e incensada é a de que o Neoliberalismo (uma fraude desde o nascimento!) é uma espécie de antídoto contra o Fascismo. No ensaio “A metástase terminal e o pequeno-fascista”, nós registramos: “Na verdade, o Neoliberalismo cresceu na estufa do Fascismo. O Grande Capital via no Fascismo uma proteção contra o ‘comunismo’ (um sistema que jamais existiu de fato no mundo, conforme você aprendeu no link acima). Por isso, grandes corporações e bancos financiaram o nazifascismo. O ícone neoliberal Friedich Hayek apoiou explicitamente Hitler; e seu par Ludwig von Mises não só foi conselheiro econômico do governo fascista de Engelbert Dollfuss, na Áustria, como disse que o nazifascismo ‘salvou a civilização europeia’”.
Se você não leu o texto sobre o pequeno-fascista, deve ter levado um susto. Se você é um pequeno-fascista, acostumado há décadas a se alimentar das fezes que o elefante deixa na grande mídia, na academia e nas redes sociais, deve ter levado um choque que o deixou à beira de uma epifania. Ótimo. Há uma frase bíblica que adoro citar: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”
Talvez, depois do susto, você se pergunte o que tudo isso tem a ver com a realidade brasileira. Bem, no artigo “A vaca sagrada e a sombra de Weimar”, de 2017, o veterano jornalista Mauro Santayana mostra as semelhanças assombrosas entre a Alemanha às vésperas de Hitler e o Brasil às vésperas de Bolsonaro. Explica que o prenúncio do arbítrio já se pudera ver na apropriação que a direita fizera das “jornadas de 2013” e nas vaias dispensadas a Dilma Roussef. Acrescenta que não faltaram os que advertissem que “que apostar na criminalização e judicialização da política, para derrubar Dilma, iria promover a antipolítica e o Fascismo, abrindo caminho para a chegada de um pilantra ou maluco à Presidência da República em 2019”. Como podemos ver, Santayana foi profético.
Mas talvez você, que há décadas vive numa dieta de fezes de elefante, recuse petiscos mais nobres e nutritivos. Então tenderá a achar exagerada essa comparação de Hitler com Bolsonaro. Nas redes sociais, alguns puristas da semântica chegaram a levantar a questão de que não era academicamente correto chamar o boçal nazista (ou fascista) de fascista. Aí Jessé Souza vem mais uma vez botar as coisas em seus devidos lugares:
“O principal mecanismo do Fascismo é a desumanização, o não reconhecimento do outro. Obviamente há elementos fascistas nas ideias do presidente eleito: apologia da tortura, assassinato de adversário político etc. Historicamente foi assim: o Fascismo pega a raiva e o ressentimento da classe média e do povo e joga num bode expiatório socialmente aceitável. Logo, estamos num contexto de neofascismo, junto a uma dominação do capitalismo financeiro: na economia, invisibiliza, deixa opacos elementos econômicos; na política, provoca desmobilização popular.”
Caso você não tenha percebido, estamos falando de tergiversação, de falácias, de manipulação, de fake news, de propaganda; e de jornalismo. Poderíamos ainda falar de política e de justiça. É tudo a mesma porcaria. Tudo mentira. A mentira é a arma do negócio. Em artigo na Tribuna da Imprensa em 2007, Pedro Porfírio, comentando mais um episódio de manipulação do público pela mídia, escreve: “Isso você não vê, porque os grilhões da semântica o mantêm no limite da discussão programada.”
Isso imediatamente nos faz lembrar do que escreveu Miguel do Rosário em 2013, a propósito da imoral associação de mídia e Judiciário para a construção da fraude que ficou conhecida como “julgamento do Mensalão” (precursora de fraudes semelhantes, como o impeachment de Dilma e o julgamento kafkiano de Lula): “A nossa mídia não é boba. O espaço à divergência se dá apenas em questões não estratégicas.”
E assim tem sido. Um tsunami de mentiras, que começou ainda na primeira metade do século XX, matou Getúlio Vargas, gerou o golpe de 1964, produziu o fantoche Collor, elegeu o embaixador norte-americano Fernando Henrique, derrubou Dilma mediante golpe jurídico-parlamentar e, finalmente, resultou na inacreditável eleição de um boçal fascista.
A professora Leda Paulani escreve em 2018 sobre esse espantoso evento político. Diz que A eleição do burro fascista Bolsonaro não se explica apenas por razões internas. A explicação se relaciona à frustração deixada por décadas de Neoliberalismo, que só fez crescer a desigualdade e propiciou a crise internacional de 2008: a intensa campanha neoliberal fez com que muitos vissem a solução exatamente no Neoliberalismo, causador da crise...
Internamente, sob os governos petistas, apesar da política neoliberal que preservou interesses dos ricos, houve diminuição da desigualdade, o que desagradou a classe média e a elite. A partir de 2005, mais ou menos, o sistema judiciário e a mídia começaram lançar contra o PT requentadas acusações de ‘corrupção’ – que foram acolhidas por um povo crédulo e doutrinado. A mídia colocaria também na conta do PT os problemas originados, de fato, alguns anos antes, na crise financeira internacional de 2008. O grande capital internacional dispunha, para defesa de seus interesses, de traidores brasileiros como Temer e Moro, que recebeu nos EUA treinamento em lawfare – perseguição política por instrumentos jurídicos. Finalmente, uma população ingrata em relação aos benefícios alcançados com o PT, somada às hostes conservadoras neopentecostais, resultou na massa capaz de deixar-se levar pelo tsunami de fake news e eleger Bolsonaro.
Mas é sempre necessário ressaltar uma coisa: o cidadão que se deixa manipular não é exatamente inocente. Quando iniciei minha série “Manual de autoajuda do iludido político”, no meu blog Satyagraha, eu queria entender, a partir da observação das redes sociais, a cegueira política, o comportamento de manada, a burrice, o ódio. Minha análise apenas deixou claro o que eu já sabia há décadas: o pequeno-fascista, aquele que odeia Lula e vota em Collor ou Bolsonaro, é composto de uma mistura de egoísmo com ignorância. (Portanto: egoísmo + ignorância = pequeno-fascista.) O pequeno-fascista potencial é um alvo perfeito para a Fábrica de Zumbis, uma transnacional com sede em Whashington e que se dedica a incutir o pavor pelo ‘comunismo’. (Imagino que muitos leitores estejam sentindo a facada da revelação psicanalítica.)
Em entrevista, o exterminador de mentiras Jessé Souza fala desse cidadão que elege Collor e bate panelas pela derrubada de Dilma: “A base do Fascismo no Brasil é a classe média. A mídia manipula o falso moralismo dessa classe para que sirva de tropa de choque dos interesses inconfessos das elites.” E continua: “Não existiria Bolsonaro como opção viável sem a Rede Globo. Você tem que lembrar, apenas para ficar num único exemplo, do jornalista Merval Pereira, no jornal da Globo News, falando que vazamento ilegal é ‘normal’ e acontece sempre – imagine coisas assim ditas 500 vezes ao dia.”
Na mesma entrevista, Jessé desmonta outro exemplo da mentira que associa automática e simploriamente corrupção política a atraso socioeconômico: “Quem quebrou o Rio foi a mídia, comandada pela Globo, associada à Lava a Jato, que destruiu os empregos da Petrobrás e de toda sua cadeia produtiva que é vital ao Rio. [O que] Cabral roubou é uma gota nesse oceano. É assim que você produz uma fábrica de mentira cotidiana. O público não tem defesa contra isso.”
O público não tem defesa até porque, no fundo de seu coração cheio de ódio, preconceito e ambição pequeno-burguesa (pequeno-fascista é o pequeno-burguês pelo lado de dentro), ele quer acreditar que o problema brasileiro são os políticos corruptos, principalmente os de esquerda – que além de tudo pretendem implantar o ‘comunismo’; quer acreditar que o Neoliberalismo (que ele nem sabe o que é) representa o caminho que o levará ao céu da fama e da fortuna. (Mal sabe que no céu neoliberal há espaço para poucos.)
O leitor está incomodado? Caetano cantou que “Narciso acha feio o que não é espelho”. O pequeno-fascista odeia espelho, como este texto desagradável, porque ele se vê em toda a sua feia pequenez. O sociólogo Jessé Souza vem mais uma vez nos dar razão: “O movimento fascista brasileiro, o Integralismo, tinha 500 mil inscritos; é a mesma canalha que apoia o Bolsonaro.”
Num comentário no Facebook, em 2017, em que eu respondia às alegações apresentadas por alguns analfascistas para não votar no PT, eu escrevi: “Caráter por caráter, o do Jair Bolsonaro é hediondo, em comparação com o de Lula; mas tenho certeza de que muitos aqui votariam em Bolsonaro apenas para não votar em Lula.” Como podemos ver, de médico, poeta, profeta e louco todos temos um pouco.
lQuer mais liberdade? Quer sair desse lamaçal de “pós-verdade, fake news e disputa de narrativas”? Ou não consegue se afastar da droga que o entorpece e imbeciliza? Como disse Jessé Souza, “a verdade muitas vezes pode ser bastante incômoda”.
Pode ser incômodo descobrir que você é um pequeno-fascista; que tem sido feito de otário pela grande mídia, a qual lhe serve, num prato de plástico dourado (parecendo ouro), as merdas cagadas pelo elefante que escolhi para simbolizar o poder econômico transnacional.
Talvez você seja do tipo acadêmico, cientista: quer provas, quer dados. Não vai aceitar facilmente a verdade de que a mídia o tem manipulado como um patinho há décadas. Então eu posso reproduzir passagem de texto que eu mesmo escrevi em 2014, com base em informações obtidas numa dissertação de mestrado: “A revista Veja sempre moveu verdadeira perseguição ao PT, de modo geral, e a Lula, particularmente, o que pode ser ilustrado com citação da página 38 do nº 1455 da revista, já nos anos 80: ‘Lula não é um candidato que tranqüiliza. Com um braço na CUT e outro nos sem-terra, o PT é um partido associado à idéia de desordem. Em caso de vitória de Lula, existe a possibilidade de elevação da temperatura social do país, com greves e invasões de terras numa escala como nunca se viu.’ Ou seja: a Veja fazia ‘terrorismo político’.”
No mesmo texto, eu reproduzo o que o jornalista Ricardo Kotscho escreveu no começo de outubro de 2014: “[...] vou contar uma história que ouvi de Eduardo Campos em 2012, quando ele foi convidado por Roberto Civita, então dono da Abril, para conhecer a editora. Os dois nunca tinham se visto. Ao entrar no monumental gabinete de Civita no prédio idem da Marginal Pinheiros, Eduardo ficou perplexo com o que ouviu dele. ‘VOCÊ ESTÁ VENDO ESTAS CAPAS AQUI? ESTA É A ÚNICA OPOSIÇÃO DE VERDADE QUE AINDA EXISTE AO PT NO BRASIL. O resto é bobagem. SÓ NÓS PODEMOS ACABAR COM ESTA GENTE E VAMOS ATÉ O FIM’.”
Mas você ainda não está satisfeito. Então precisa de mais informações. Precisa saber que, enquanto você está preocupado com Venezuela e Cuba, o fascismo tropical se organiza e institucionaliza.
Na primeira metade do século XX, grandes corporações resolveram financiar o nazifascismo, para deter “o avanço do comunismo”. O fenômeno se repetiriria posteriormente – inclusive no Brasil, onde muitos empresários financiaram o golpe de 1964 pelo mesmo motivo. Eis que, quando tudo parecia História, os empresários mais uma vez comparecem para financiar a criação, em 2005, de um certo pomposo Instituto da Realidade, semelhante ao Ipes, de 64, e com idêntica motivação: deter “o avanço do comunismo”. A organização, que seria em 2009 rebatizada como Instituto Milenium, reúne viúvas da ditadura militar e jovens que foram doutrinados, pela mídia e até pelo meio acadêmico, a odiar qualquer pensamento com viés social: são devotos do Deus-Mercado e rezam no altar de Chicago. Conta também com o apoio dos grandes barões da mídia, obviamente. E viria a se tornar um feroz bunker da direita e instrumento de perseguição ao PT e particularmente a Lula.
O jornalista Rodrigo Vianna começa uma tocante e ilustrativa carta de despedida da Globo, em 2006, assim: “Quando cheguei à TV Globo, em 1995, eu tinha esperança de fazer jornalismo que sirva pra transformar.” Mais adiante ele registraria: “Nunca, nem na ditadura (dizem-me os companheiros mais antigos) tivemos na Globo um jornalismo tão centralizado, a tal ponto que os repórteres trabalham mais como bonecos de ventríloquos, especialmente na cobertura política!”
O panorama não mudou desde que Rodrigo Vianna deixou a Globo. Registra Celeste Silveira em fevereiro de 2020, falando da Globonews: “São 24 horas com o jornalismo mais cínico de que se tem notícia. A primeira coisa que os Marinho fazem na Globonews é silenciar o contraditório. A emissora só convida quem fala a sua língua, assim como O Globo só publica coluna de economistas que vão ao encontro dos interesses do 1% mais rico do país.” E conclui: “A Globonews tem tanta audiência assim? Não, mas tem a construção de uma narrativa que muitos veículos de comunicação ecoam.”
Argemiro Ferreira, em artigo de 2008 na Tribuna da Imprensa, cita as palavras de Edward L. Bernays, teórico da propaganda, tido como ‘pai das relações públicas’ e que realizou um trabalho digno de Goebbels na manipulação do noticiário em favor do imperialismo norte-americano: “A manipulação consciente e inteligente das opiniões e hábitos organizados das massas é um elemento importante na sociedade democrática. Aqueles que manipulam esse mecanismo invisível da sociedade constituem um governo invisível, que é o verdadeiro poder governante de nosso país.”
Finalmente, para encerrar esse mórbido porém esclarecedor passeio pelo universo das mentiras com que o poder econômico manipula o cidadão comum, um relato pessoal.
Há mais de 10 anos, eu herdei, de uma amiga cansada de tourear maníacos e haters nas redes sociais (naquela época conhecidas como “sites de relacionamento”), a comunidade Niterói, no Orkut; a qual, sob minha gestão, seria rebatizada como Niteroi/Niterói (com e sem acento, por uma questão de acessibilidade na Internet) e, até a extinção do Orkut, chegaria a ter mais de 60 mil membros.
A ex-owner da comunidade a mim se referiria algumas vezes como “rei da paciência”; porque, de fato, eu tinha uma enorme paciência para argumentar e explicar. Jogava pérolas aos porcos – porque muitos eram psicopatas, ou estúpidos, ou tudo isso junto.
Um dia, em 2008, tive a ideia de fazer um texto explicando as leis que eu e os moderadores auxiliares (meus ministros) havíamos estabelecido para regular o funcionamento da comunidade. Não há provavelmente no mundo caso de owner no Orkut que tenha feito um texto de 15 páginas para justificar a atuação da moderação... Abri um blog exclusivamente para abrigar esse texto, do qual extraio uma passagem: “Nos tempos da Ditadura Militar, Millôr Fernandes pontificou: ‘A função do jornalismo é ocultar a notícia.’ Hoje informações nos chegam aos borbotões – mas será que elas nos ajudam a compreender o mundo ou, pelo contrário, representam uma cortina de fumaça para nos distrair e confundir?... Quando passamos por uma banca de jornais, vemos todos os símbolos, os mitos da sociedade contemporânea como que encarnados numa sereia de mil faces e mil vozes, capaz de nos arrastar ao abismo da inércia, da estupidez, do conformismo, da cegueira. Enquanto o povo se diverte, ou tem a sensação de estar sendo informado, os poderosos continuam movendo secretamente os cordéis e, entre gargalhadas de escárnio, manipulando milhões de pessoas.”
Quem já percorreu o blog Satyagraha, percebe que há anos eu falo a mesma coisa. Há anos eu me irrito com a mídia venal, com os “jornalistas amestrados”, com o judiciário partidário, com as falácias, com as mentiras, com a propaganda explícita ou disfarçada. O sistema capitalista agoniza e, para sobreviver, aciona a ignorânia e o egoísmo do pequeno-fascista, fazendo-o trabalhar contra os próprios interesses.
O presente ensaio pretende ser um espelho de alta definição em que, contemplando sua feia e risível imagem, o cidadão possa despertar de seu sono zumbi; e deixar de ser vítima da propaganda, a arma do negócio.
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