Texto
original:
O pior ano de nossas vidas: “os trabalhadores e a natureza
submetidos à dissolução física, biológica e mental”
Gabriel Brito, da Redação
23/12/2020
Texto editado /NMM:
A entrevista
com o filósofo Roberto Romano pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Antes de
março de 2020, a crise social e econômica brasileira já parecia não ter fim
previsível. A pandemia adicionou a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. No
meio disso, estamos debaixo de um governo que boicota qualquer política séria
de contenção dos danos e a própria organização do Estado. Como projetar no
plano histórico o ano que se encerra, o que ele deixa para a sociedade, tanto
objetiva como subjetivamente?
Roberto Romano: Por duas vezes na
sua pergunta foi usada a palavra “crise”. Ela vem do grego krisis, “instante de
passagem, escolha, prova, decisão”. A palavra “crise” compreendia a decisão de
assuntos vitais no momento certo e se diferenciava do vocábulo krasis,
confusão, indecisão. Hoje o primeiro termo diz o que antes o segundo enunciava:
a crise, instante decisivo, se degradou, pois evoca o pior desarrazoado. No historiador
Tucídides a palavra “crise” surge como procedimento racional para estabelecer
fatos e os ordenar em esquemas de desenvolvimento. Crise é o instante de
passagem de um momento histórico para outro, abrindo as portas do futuro
previsto cientificamente. Sem a noção de crise é impossível o pensamento de
Maquiavel e da filosofia política moderna e contemporânea.
O capitalismo tem a crise como origem e
não apenas fim de seu processo. Por crises aquele modo de se apropriar das
riquezas naturais e humanas cresce e se instaura contra os modos de produção
anteriores ou concorrentes. Desde os escritos de juventude Marx atenta para o
fato: o capitalismo é composto e movido por crises. Manifesto Comunista: “a burguesia não
pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e,
assim, o conjunto das relações sociais. O revolucionamento contínuo da
produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a
movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas as
relações fixas são dissolvidas;
todas as relações novas envelhecem antes que possam enrijecer-se.”
O vocábulo essencial no trecho acima é o conceito de dissolução. Na língua
filosófica alemã, ele tem origem na química: Auflösung. No processo de gerar sua
riqueza a burguesia corrói todos os elementos naturais, todas as formas societárias,
todos os valores. O termo usado por Marx para designar a ação da burguesia,
perene destruição do mundo físico e humano, vem da química de seu tempo.
A burguesia, com seu modo de explorar os
elementos naturais para transformá-los em lucro, dissolve ininterruptamente o
que pode ser explorado. O corpo dos trabalhadores, os elementos naturais, tudo
passa a ser submetido à dissolução, desgaste, corrosão física, biológica,
mental.
Falar em crise evocando o sistema capitalista significa imediatamente nos
referir à inexorável dissolução (Auflösung) do
planeta pelos donos do capital. As crises que a Humanidade enfrenta desde os
primeiros tempos modernos dissolvem a face do planeta. Hoje a guerra assola e
dissolve vastos territórios, tornando-os inabitáveis, mortos. Se pensarmos no
que ocorreu em Hiroshima a Nagasaki e compararmos aqueles eventos com o que
pode ocorrer numa guerra nuclear hoje, percebemos o que significa o termo
“dissolução”. Um cientista a serviço do capitalismo proclama as virtudes da
bomba de nêutrons “porque ela dissolve as vidas humanas, mas preserva a
propriedade”.
As crises não são “tragédias”. Não há
“normal” a ser retomado, porque o “normal” é a dissolução planetária em nome do
lucro. A essência do capitalismo encontra-se na crise. No século 20 houve a
discussão sobre os limites do capitalismo e a crise. Urge retomar tais estudos
por uma questão de sobrevivência do nosso planeta e dos que nele habitam.
O neoliberalismo exacerba as marcas do capitalismo com violência inédita. Não
por acaso o seu “laboratório” foi a ditadura Pinochet imposta pelos EUA,
apoiada pelas ditaduras brasileira e argentina: os direitos civis foram
dissolvidos, os direitos humanos mais ainda, os corpos torturados, as mentes
aterrorizadas, tudo seguiu para a dissolução. O pior é que tal prática se
estabeleceu como ética das classes ricas e médias que aprenderam não apenas a
tolerar tais crimes, mas deles se tornaram cúmplices.
Antes da eleição de Bolsonaro existiu a
cultura da dissolução do Outro, decretado inimigo a ser abatido sem nenhum
remorso. Economistas e jornalistas da morte (por exemplo, os programas
policiais de rádio e TV) cumpriram o papel de alicerçar, em almas já
pervertidas pelo escravismo, o desejo da tirania, o culto da ditadura, o elogio
da truculência, o aplauso aos assassinatos cometidos pela polícia, a
irresponsabilidade de juízes etc. Proust diz que a Senhora Swann “é toda uma
época”. Bolsonaro é toda uma época. Ele começou na campanha da UDN contra
Getúlio e o pretenso “mar de lama”. O disfarce do combate à corrupção ajudou e
ajuda setores dominantes do capital a assaltar os cofres do Estado brasileiro e
a reprimir aspirações da vida livre entre trabalhadores. A receita vem do
nazista e campeão do direito reacionário Carl Schmitt: Estado total para
reprimir revoltas populares e abertura máxima à “livre iniciativa”. A receita
foi recomendada por criminosos como Hayek. Ela é usada e abusada no Brasil
desde o golpe que destituiu Getúlio Vargas, com sua morte. Bolsonaro, Sergio
Moro, Lava a Jato, fascismos vários que infestam o país descendem da “moral”
udenista que ajudou a dissolver os fundamentos de toda República em nossa
terra.
O que vivemos em 2020 resulta da economia criminosa que, inclusive, controla a
lógica capitalista em países ostentando orgulhosamente o título de comunistas.
A China para começar. No Brasil a expropriação da natureza, como o agronegócio
com seus venenos e uso irresponsável de terras, incluindo as fontes hídricas,
soma-se à grilagem, à capangagem, às milícias cujo único signo é a caveira. O
ano de 2020 bolsonarista resulta de uma política criminosa que, inclusive,
cativou setores da esquerda quando ela estava no comando de estados e
municípios.
Antonio Palocci foi promovido a persona
grata pela burguesia nacional e internacional por ser o
primeiro prefeito (do PT) a aplicar a política de privatização no setor de águas
e esgotos. O futuro, o futuro: sem romper com a lógica de privatização da vida
em prol do lucro, seguiremos a burguesia que dissolve toda e qualquer esperança
de vida no planeta. Pandemias vêm da dissolução do mundo, pois trabalhadores consomem
a fauna e a flora por não terem acesso a alimentos produzidos para o mercado.
Correio da Cidadania:
Interferência no aparato policial, colocação de agentes da Abin em órgãos
diversos, ampla participação militar, mentiras sistemáticas nos pronunciamentos
oficiais, fanáticos ideológicos e religiosos em órgãos fundamentais da
organização social e nacional, facilitação do acesso às armas para suas bases
sociais, sem falar nos evidentes esquemas de locupletação. Por que tudo isso
foi permitido a Bolsonaro?
Roberto Romano: Bolsonaro
não caiu do céu como raio em dia límpido. Ele é produto de uma ampla e profunda
cultura capitalista coberta pelo manto do moralismo. Os procedimentos
ditatoriais e policialescos por ele empregados têm uma longa história, pois
surgem com os bandeirantes e os capitães do mato, os jagunços e os capangas, a
violência em estado puro. A cultura social brasileira é de violência das
classes dominantes, violência que também é absorvida por vastas camadas de
dominados.
Bolsonaro foi precedido pela
autorização, pelo Supremo Tribunal Federal, da Lei de Anistia. Tal lei preparou
o retorno da censura, da tortura, da espionagem contra a cidadania que hoje
assistimos.
Sem aquele crime do STF, Bolsonaro seria
preso imediatamente ao fazer a apologia da tortura e dos torturadores em plena
Câmara dos Deputados. Mas ele recebeu aplausos de vastas camadas dominantes e
da classe média. O STF deu-lhe licença para matar a frágil democracia.
Correio da Cidadania: ainda faz
sentido amarrar no mesmo pacote os últimos quatro anos, ou seja, de Temer para
cá? As elites políticas e econômicas do Brasil revelaram algo novo de si mesmas
nesses anos?
Roberto Romano: Como
sugeri acima, os setores dominantes nacionais usurpam a riqueza pública e as
dirigem para os seus cofres privados. Eles usurpam os monopólios do Estado
(norma jurídica, força física, impostos) em proveito de empresários corrosivos
que visam apenas o lucro imediato. Retrato moralista e hipócrita dos
“adversários do mar de lama”; dos que usariam a vassoura, sob Jânio, para
“limpar” a sociedade e a política; dos que apoiaram o golpe de 64 para “salvar
o Brasil da subversão e da corrupção”; dos que aplaudiram o “caçador de
marajás”; como no caso de Dorian Gray, há sempre um lado não visto pela
cidadania. Trata-se do apodrecido jeito de roubar a coisa pública.
Veja o caso de Sergio Moro: fingiu
moralidade com seus cúmplices da Lava a Jato. Usou da pior má fé e do atentado
a todos os direitos de defesa para afastar Luiz Inácio da Silva das eleições de
2018. Assumiu sem rubor algum o cargo de ministro da Justiça de um candidato a
ditador. Hoje ele entra numa lucrativa firma que “ajuda” empresas por ele
destruídas. Ele aparece, ao lado de Luciano Huck, vulgar comediante, como
possível saída “honesta” nas próximas eleições presidenciais.
Correio da Cidadania:
Ironicamente, essa mesma elite não acaba nos atirando num saudosismo dos anos
petistas?
Roberto Romano: Os
governos petistas cometeram erros graves. Um deles foi o de conceder dinheiro
público para empresários que usaram aqueles recursos na compra de títulos do
Tesouro norte-americano, detendo a produção. Também no plano religioso: o apoio
aceito e trocado com um dos piores fomentadores de fanatismo ideológico no
Brasil, Edir Macedo e seus comparsas. Ainda será preciso fazer um levantamento
prudente dos acertos e dos erros petistas. Mas eles de fato merecem um desconto
enorme na sua lista de erros, visto os seus acertos.
Correio da Cidadania: O que falar
da cruzada anticorrupção protagonizada por vastos setores das elites
brasileiras? O que sobrou desta bandeira?
Roberto Romano: Infelizmente,
sobrou aquela borra ética purulenta inaugurada pela UDN contra Getúlio. Ela
está no subsolo da sociedade, da política, da Justiça nacional. Ela ainda trará
muito sofrimento para a esmagadora maioria dos brasileiros.
Correio da Cidadania: “Depois da
corrupção”, apenas a agenda ultraliberal poderia nos salvar. O que vislumbrar
para o Brasil caso essa agenda perdure mais alguns anos?
Roberto Romano: Sou dos
que não separam neoliberalismo (ou ultraliberalismo) do franco fascismo. As
raízes teóricas encontram-se, como lembrei acima, em Carl Schmitt. A receita do
jurista de Hitler ainda é a mesma: polícia, censura, repressão contra os
descontentes com a ditadura do capital, liberdade absoluta para o mercado. A
dissolução da natureza, dos corpos e mentes humanos, fim de todo direito
trabalhista ou político para os não proprietários, eis a política neoliberal de
cunho fascista. Bolsonaro pouco poderia sem Guedes e sua gangue de empresários,
banqueiros, jornalistas, todos adeptos do Estado de exceção para garantir seus
ganhos privados.
O fascismo é arrogante por natureza. Palocci
seguiu o receituário neoliberal. Parte das esquerdas com ele flertou. A Bula
continua disponível para os políticos, juízes, militares que tentam dominar sem
a legitimidade democrática.
As crises, inclusive e sobretudo na
saúde, evidenciam a catástrofe das receitas fascistas/neoliberais. Caso tais
práticas e teorias perdurem o genocídio praticado contra os indígenas e os
negros, desde a Colônia, passará à ordem do dia universal nos tempos próximos.
Aliás, quando um presidente trata uma pandemia como o faz o pequeno candidato a
ditador e quando seu ministro da saúde(?) fica irritado com a angústia das
vítimas, só podemos esperar o frio assassinato de massas como pauta estatal.
Correio da Cidadania: O filósofo
Marcos Nobre afirma que depois de 2013 os partidos, tão fortemente questionados
naquelas jornadas de protesto, parecem ter se fortalecido e, por incrível que
pareça, aumentado sua legitimidade representativa. O senhor concorda com essa
noção? Onde estão as novas energias da sociedade brasileira e suas
possibilidades de construir um país mais justo, solidário, ético, ambientalista
etc.?
Roberto Romano: Não
concordo totalmente com sua posição. Os partidos continuam sua marcha para o
puro e simples mercadejo de cargos e verbas junto ao Executivo (nacional,
estadual, municipal). Eles não contam mais com militantes de base (inclusive os
da esquerda), não renovam seus quadros dirigentes. Só o PSOL mostrou capacidade
de conquistar a opinião e os votos programáticos. Os demais (inclusive alguns
da esquerda) continuam cumprindo o papel de intermediários entre os Executivos,
as oligarquias, a população.
Um raio-x em todos eles mostra ossatura
carcomida, próxima à realidade prognosticada por Max Weber e Robert Michels:
direções onipotentes que tudo decidem e jogam segundo os interesses “realistas”
das conjunturas. Se alguns partidos reacionários como o DEM recebem maior
número de votos, é porque cumprem de modo mais eficaz o papel de intermediários
entre o Executivo ditatorial, os oligarcas e a população.
Seguindo a intuição weberiana, nossos
partidos são hoje fábricas eleitoreiras sem compromisso ou responsabilidade
social. Sou daqueles que não aceitam quantidade (número de votos) como
relevância política.
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