Texto original:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Restaurar-o-Estado-e-preciso/7/49732
Restaurar o Estado é preciso
Por Maria
de Conceição Tavares
20/01/2021 12:24
Texto editado / NMM:
Vivemos a mais grave crise da história
do Brasil, uma crise econômica, social e política. A meu ver, trata-se de uma democracia
subtraída pela simbiose de interesses de uma classe política degradada e de uma
elite egocêntrica, sem qualquer compromisso com um projeto de reconstrução
nacional.
Hoje, citar um político de
envergadura com notória capacidade de pensar o país é um exercício exaustivo. Não
há um que se sobressaia.
O mesmo se aplica a nossos
dirigentes empresariais. Eu nunca vi uma elite tão ruim quanto esta aqui. E no
meio dessa barafunda ainda temos a Lava Jato, uma operação que se tornou uma
ação autoritária, arbitrária, que atenta contra as justiças democráticas, para
não citar o rastro de desemprego que deixou em importantes setores da economia.
É de infernizar a paciência que a
Lava Jato tenha se tornado símbolo da moralização. Mas por quê? Porque nada
está funcionando. Ela é uma resposta à inação política. Conseguiram transformar
a democracia em uma esbórnia, em que ninguém é responsável por nada. Não há lei
ou preceitos do estado de direito que estejam salvaguardados.
O futuro foi criminalizado. Não
estou dizendo que o cenário internacional seja um oásis. O resto do mundo não
está nenhuma maravilha, a começar pelos Estados Unidos.
Mas, voltando ao nosso quintal, o
centro medíocre se ampliou de uma maneira bárbara no Brasil. Não há produção de
pensamento contra a mediocridade, de lado algum, nem da direita, nem da
esquerda. O mais impressionante é que estamos falando de um quadro de rápida
deterioração em um espaço razoavelmente curto de tempo. Estou no Brasil desde
1954 e jamais vi tamanho estado de letargia. Na ditadura, havia protesto. Hoje,
mal se ouve um sussurro.
Por outro lado, também não se acham
soluções pela economia. A indústria brasileira “africanizou. A ideia do
Estado indutor do desenvolvimento foi finalmente ferida de morte pela religião
de que o Estado mínimo nos levará a um estado de graça da economia. Puro dogma.
Estamos destruindo as últimas forças motrizes do crescimento econômico e de
intervenção inclusiva e igualitária no social.
Há saídas para esse quadro de
entropia nacional e estou convicta de que elas passam pelas novas gerações. Só
consigo enxergar alguma possibilidade de cura desse estado de astenia e de
reordenação das bases democráticas a partir de uma maciça convocação e ação dos
jovens.
Por mais íngreme que seja a
caminhada, não vislumbro saídas que não pela própria sociedade, notadamente
pelos nossos jovens. Não os jovens de cabeça feita, pré-moldada. Esses mal chegaram
e já estão a um passo da senectude. Estou me referindo a uma juventude sem
amarras, de mente aberta, capaz de se indignar e construir um saudável
contraponto a essa torrente de reacionarismo que se espraia pelo país. Há que
se começar o trabalho de sensibilização já, mas sabendo que o tempo de mudança
serão décadas, sabe-se lá quantas gerações.
Não consigo vislumbrar outra
possibilidade para sairmos dessa geleia geral, senão por uma convocatória aos
jovens.
Ao mesmo tempo, qualquer
projeto de costura dos tecidos do país passa obrigatoriamente pela restauração
do Estado. Nossa própria história nos reserva
episódios didáticos, exemplos a serem revisitados. Na década de 30, durante o
primeiro governo de Getúlio Vargas, surgiram medidas de grande impacto para a
modernização do Estado, como, por exemplo, a criação do Dasp – Departamento
Administrativo do Serviço Público.
Na esteira do Dasp, cabe lembrar,
vieram os concursos públicos para cargos no governo federal, o primeiro
estatuto dos funcionários públicos do Brasil, a fiscalização do Orçamento. Foi
um soco no estômago do clientelismo e do patrimonialismo. O Dasp imprimiu um
novo modus operandi de organização administrativa, com a centralização das
reformas em ministérios e departamentos e a modernização do aparato
administrativo. Diminuiu também a influência dos poderes e interesses locais.
Isso para não falar do surgimento, nas fileiras do Departamento, de uma elite
especializada que combinou altíssimo valor e conhecimento técnico ao
comprometimento com uma visão reformista da gestão da coisa pública.
Faço esse pequeno passeio no tempo
para reforçar que nunca fizemos nada sem o Estado. Não somos uma democracia
espontânea. O fato é que hoje o nosso Estado está muito arrebentado. Dessa
forma, é muito difícil fazer uma política social mais ativa. Não é só falta de
dinheiro. O mais grave é a falta de capital humano. O que se assiste hoje é um
projeto satânico de desconstrução do Estado; vide Eletrobras, Petrobras, BNDES…
Restauração
O que se fez no Brasil é assustador,
uma calamidade. É necessário um profundo plano de reorganização do Estado. Chegamos,
a meu ver, a um ponto de bifurcação da história: ou temos um movimento
reformista ou uma revolução. A primeira via me soa mais eficiente e menos
traumática. Os sintomas são de barbárie. Parece um fim de século, embora
estejamos no raiar de um.
Por isso, repito: precisamos de uma
ação restauradora. O Estado e a sociedade brasileira estão em uma mesa de
cirurgia. O corte é profundo, órgãos vitais foram atingidos, o sangramento
é dramático. Este ressurgimento não deverá vir das urnas. Não vejo a eleição
como um evento potencialmente restaurador, capaz de virar a página, de ser um
marco da reconstrução.
Com o neoliberalismo não
vamos a lugar algum. Todas as reformas
propostas são reacionárias, da trabalhista à previdenciária. O Brasil virou uma
economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma eutanásia no
rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de riquezas.
Renda mínima
Causa-me espanto que nenhum dos
principais candidatos à Presidência esteja tratando de uma questão visceral
como a renda mínima.
Mais uma vez, estamos na contramão
do mundo, ao menos do mundo que se deve almejar. Se, no Brasil, a renda mínima
é apedrejada por muitos, mais e mais países centrais adotam a medida: Canadá, Finlândia,
Holanda.
O modelo encontrou acolhida até nos
Estados Unidos. Desde a década de 80, o Alasca paga a cada um de seus 700 mil
habitantes um rendimento mínimo chamado Alaska Permanent Fund Dividend. Os
recursos vêm de um fundo de investimento lastreado nos royalties do petróleo.
É bom que se diga que dois dos
fundamentalistas do liberalismo, os economistas F. A. Hayek e Milton Friedman,
eram defensores da renda básica e até disputavam a primazia pela paternidade da
ideia. Friedman dizia que a medida substituiria outras ações assistencialistas
dispersas.
Segundo o FMI, a distribuição de
4,6% do PIB reduziria a pobreza brasileira em espetaculares 11%.
Entre os candidatos à presidência,
só consigo enxergar o Lula como alguém identificado com a proposta. Se bem que ele
teria enorme dificuldade de emplacar projetos realmente transformadores. O PT
não tem força o suficiente; os outros partidos de esquerda não reagem.
Lula sempre foi um grande conciliador. Mas um
conciliador perde o seu maior poder quando não há conflitos. E uma das raízes
da nossa pasmaceira, desta letargia, é justamente a ausência de conflitos, de
contrapontos. Não tem nada para conciliar. Mais do que conflitiva, a sociedade
está anestesiada, quase em coma induzido. O que faz um pacificador quando não
há o que pacificar?
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Maria da Conceição Tavares é ex-professora da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e Professora Emérita da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Autora, entre outros livros, de Poder e dinheiro – uma
economia política da globalização (Vozes)
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