domingo, 24 de janeiro de 2021

A juventude, o Estado e o futuro

 

Texto original:

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Restaurar-o-Estado-e-preciso/7/49732

Restaurar o Estado é preciso

Por Maria de Conceição Tavares   

20/01/2021 12:24

 

 

Texto editado / NMM:


Vivemos a mais grave crise da história do Brasil, uma crise econômica, social e política. A meu ver, trata-se de uma democracia subtraída pela simbiose de interesses de uma classe política degradada e de uma elite egocêntrica, sem qualquer compromisso com um projeto de reconstrução nacional.

Hoje, citar um político de envergadura com notória capacidade de pensar o país é um exercício exaustivo. Não há um que se sobressaia.

O mesmo se aplica a nossos dirigentes empresariais. Eu nunca vi uma elite tão ruim quanto esta aqui. E no meio dessa barafunda ainda temos a Lava Jato, uma operação que se tornou uma ação autoritária, arbitrária, que atenta contra as justiças democráticas, para não citar o rastro de desemprego que deixou em importantes setores da economia.

É de infernizar a paciência que a Lava Jato tenha se tornado símbolo da moralização. Mas por quê? Porque nada está funcionando. Ela é uma resposta à inação política. Conseguiram transformar a democracia em uma esbórnia, em que ninguém é responsável por nada. Não há lei ou preceitos do estado de direito que estejam salvaguardados.

O futuro foi criminalizado. Não estou dizendo que o cenário internacional seja um oásis. O resto do mundo não está nenhuma maravilha, a começar pelos Estados Unidos.

Mas, voltando ao nosso quintal, o centro medíocre se ampliou de uma maneira bárbara no Brasil. Não há produção de pensamento contra a mediocridade, de lado algum, nem da direita, nem da esquerda. O mais impressionante é que estamos falando de um quadro de rápida deterioração em um espaço razoavelmente curto de tempo. Estou no Brasil desde 1954 e jamais vi tamanho estado de letargia. Na ditadura, havia protesto. Hoje, mal se ouve um sussurro.

Por outro lado, também não se acham soluções pela economia. A indústria brasileira “africanizou. A ideia do Estado indutor do desenvolvimento foi finalmente ferida de morte pela religião de que o Estado mínimo nos levará a um estado de graça da economia. Puro dogma. Estamos destruindo as últimas forças motrizes do crescimento econômico e de intervenção inclusiva e igualitária no social.

Há saídas para esse quadro de entropia nacional e estou convicta de que elas passam pelas novas gerações. Só consigo enxergar alguma possibilidade de cura desse estado de astenia e de reordenação das bases democráticas a partir de uma maciça convocação e ação dos jovens.

Por mais íngreme que seja a caminhada, não vislumbro saídas que não pela própria sociedade, notadamente pelos nossos jovens. Não os jovens de cabeça feita, pré-moldada. Esses mal chegaram e já estão a um passo da senectude. Estou me referindo a uma juventude sem amarras, de mente aberta, capaz de se indignar e construir um saudável contraponto a essa torrente de reacionarismo que se espraia pelo país. Há que se começar o trabalho de sensibilização já, mas sabendo que o tempo de mudança serão décadas, sabe-se lá quantas gerações.

Não consigo vislumbrar outra possibilidade para sairmos dessa geleia geral, senão por uma convocatória aos jovens.

Ao mesmo tempo, qualquer projeto de costura dos tecidos do país passa obrigatoriamente pela restauração do Estado. Nossa própria história nos reserva episódios didáticos, exemplos a serem revisitados. Na década de 30, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, surgiram medidas de grande impacto para a modernização do Estado, como, por exemplo, a criação do Dasp – Departamento Administrativo do Serviço Público.

Na esteira do Dasp, cabe lembrar, vieram os concursos públicos para cargos no governo federal, o primeiro estatuto dos funcionários públicos do Brasil, a fiscalização do Orçamento. Foi um soco no estômago do clientelismo e do patrimonialismo. O Dasp imprimiu um novo modus operandi de organização administrativa, com a centralização das reformas em ministérios e departamentos e a modernização do aparato administrativo. Diminuiu também a influência dos poderes e interesses locais. Isso para não falar do surgimento, nas fileiras do Departamento, de uma elite especializada que combinou altíssimo valor e conhecimento técnico ao comprometimento com uma visão reformista da gestão da coisa pública.

Faço esse pequeno passeio no tempo para reforçar que nunca fizemos nada sem o Estado. Não somos uma democracia espontânea. O fato é que hoje o nosso Estado está muito arrebentado. Dessa forma, é muito difícil fazer uma política social mais ativa. Não é só falta de dinheiro. O mais grave é a falta de capital humano. O que se assiste hoje é um projeto satânico de desconstrução do Estado; vide Eletrobras, Petrobras, BNDES…

Restauração

O que se fez no Brasil é assustador, uma calamidade. É necessário um profundo plano de reorganização do Estado. Chegamos, a meu ver, a um ponto de bifurcação da história: ou temos um movimento reformista ou uma revolução. A primeira via me soa mais eficiente e menos traumática. Os sintomas são de barbárie. Parece um fim de século, embora estejamos no raiar de um.

Por isso, repito: precisamos de uma ação restauradora. O Estado e a sociedade brasileira estão em uma mesa de cirurgia. O corte é profundo, órgãos vitais foram atingidos, o sangramento é dramático. Este ressurgimento não deverá vir das urnas. Não vejo a eleição como um evento potencialmente restaurador, capaz de virar a página, de ser um marco da reconstrução.

Com o neoliberalismo não vamos a lugar algum. Todas as reformas propostas são reacionárias, da trabalhista à previdenciária. O Brasil virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma eutanásia no rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de riquezas.

Renda mínima

Causa-me espanto que nenhum dos principais candidatos à Presidência esteja tratando de uma questão visceral como a renda mínima.

Mais uma vez, estamos na contramão do mundo, ao menos do mundo que se deve almejar. Se, no Brasil, a renda mínima é apedrejada por muitos, mais e mais países centrais adotam a medida: Canadá, Finlândia, Holanda.

O modelo encontrou acolhida até nos Estados Unidos. Desde a década de 80, o Alasca paga a cada um de seus 700 mil habitantes um rendimento mínimo chamado Alaska Permanent Fund Dividend. Os recursos vêm de um fundo de investimento lastreado nos royalties do petróleo.

É bom que se diga que dois dos fundamentalistas do liberalismo, os economistas F. A. Hayek e Milton Friedman, eram defensores da renda básica e até disputavam a primazia pela paternidade da ideia. Friedman dizia que a medida substituiria outras ações assistencialistas dispersas.

Segundo o FMI, a distribuição de 4,6% do PIB reduziria a pobreza brasileira em espetaculares 11%.

Entre os candidatos à presidência, só consigo enxergar o Lula como alguém identificado com a proposta. Se bem que ele teria enorme dificuldade de emplacar projetos realmente transformadores. O PT não tem força o suficiente; os outros partidos de esquerda não reagem.

 Lula sempre foi um grande conciliador. Mas um conciliador perde o seu maior poder quando não há conflitos. E uma das raízes da nossa pasmaceira, desta letargia, é justamente a ausência de conflitos, de contrapontos. Não tem nada para conciliar. Mais do que conflitiva, a sociedade está anestesiada, quase em coma induzido. O que faz um pacificador quando não há o que pacificar?

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Maria da Conceição Tavares é ex-professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora, entre outros livros, de Poder e dinheiro – uma economia política da globalização (Vozes)

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