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https://brasil.elpais.com/brasil/2020/12/22/eps/1608637752_983427.html
O ano da ciência
Texto editado / NMM:
Katalin Karikó talvez ganhe
um prêmio Nobel algum dia, mas já passou décadas sendo
rejeitada. Na década de 1990, essa pesquisadora húngara imaginava que o RNA
poderia servir para curar doenças como o câncer, mas sua ideia provocava a incredulidade
de colegas e instituições. Perdeu seu emprego na Universidade de Pensilvânia
(EUA), quis largar a ciência. Mas continuou pesquisando. E, em janeiro deste
ano, quando se publicou o sequenciamento genético de um misterioso vírus mortal
que assolava a China, aplicou sua ideia a uma
possível vacina.
Dez meses depois, a fórmula
da empresa onde trabalha, a alemã BioNTech, foi testada em 44.000 pessoas
e é uma das grandes esperanças
para acabar com a pandemia de coronavírus .
Um vírus nos pegou
desprevenidos. Muitos cidadãos se perguntaram como é possível que ninguém nos
avisasse de que isto podia acontecer. Mas o fato é que cientistas como Karikó
nos avisaram. A questão é que ninguém escutou.
Carl Sagan disse várias vezes: vivemos numa sociedade
absolutamente dependente da ciência e da tecnologia. E, no entanto,
demos um jeito de que ninguém entendesse a ciência e a tecnologia. E essa é uma
receita clara para o desastre, concluía.
“A desconexão entre
cientistas e cidadãos sempre existiu”, reflete o escritor e também físico
espanhol Agustín Fernández Mallo. “Acredito que tem a ver com uma educação
incorreta, mas nem tanto nos conteúdos científicos, e sim na filosofia da
ciência. Talvez aí parte da culpa seja também do sistema social científico, que
historicamente estimulou a ideia de que a ciência é
igual à verdade”, acrescenta. E a ciência é apenas um método
para nos aproximarmos dessa verdade; mas é o melhor que temos.
Uma pesquisa sobre a
percepção social da ciência na Espanha mostra que os espanhóis confiam na
ciência, mas não a compreendem.
Matilde Cañelles acha, como
Fernández Mallo, que a desconexão entre cientistas e cidadãos não é
exclusivamente atribuível à falta de formação da sociedade. A especialista diz
que o sucesso de uma carreira científica é cada vez mais avaliado pelo número
de artigos que um pesquisador publica. Em inglês chamam isso de “publish or
perish” (“publique ou pereça”). E isto isolou muitos cientistas sob toneladas
de documentos e burocracias, levando-os a se esquecer da necessidade de
transmitir os resultados de suas pesquisas à sociedade. “Criou-se o que os
norte-americanos chamam de rat race [corrida de ratos] para conseguir cada vez mais artigos, mais
dinheiro e um laboratório maior. E alguns valores se perderam, como a
necessidade de falar com a mídia e os cidadãos”, reflete Cañelles.
Um problema agregado são os longos e complexos tempos e
métodos da ciência. Como se observa claramente com o exemplo da vacina de
Katalin Karikó, um cientista precisa de décadas e de um financiamento constante
para que suas pesquisas obtenham resultados. Na Espanha, a sangria dos recursos
dedicados à ciência nos últimos 10 anos foi monumental: investiu-se 1,24% do
PIB, menos que uma década antes (1,40%), quando a média europeia é de 2%. A
perspectiva de carreira do pesquisador é um desastre; os laboratórios estão
sufocados pela falta de dinheiro e a burocracia; os melhores biólogos, físicos
e matemáticos partem para o exterior ou para os setores farmacêutico e
tecnológico.
A
falta de atenção e interesse público pela ciência se revela facilmente com um
exemplo muito simples. O Centro Nacional de Epidemiologia é o encarregado de
vigiar a saúde pública espanhola. Em 2008, 100 pessoas trabalhavam nesse órgão;
neste ano de 2020, quando chegou à Espanha a maior pandemia do século
XXI, eram apenas 64. Agora, o centro foi reforçado e tem 77
trabalhadores.
De
modo que a ciência continuou trabalhando com meios cada vez mais limitados, e
quando os virologistas e epidemiologistas alertaram de que em algum momento
haveria uma pandemia global provocada por um vírus, ninguém deu ouvidos.
Graças a uma combinação de preparação
(especialmente nos países do Extremo Oriente) e boa sorte, nem a SARS em 2002,
nem a gripe suína em 2009, nem o ebola em 2014, nem o zika em 2016 foram
pandemias completas. Mas quando, em 11 de março de 2020, a OMS declarou que a
covid-19 era uma pandemia, a atenção de todo o planeta voltou-se para a
ciência. E a ciência estava preparada.
De sua posição privilegiada
na OMS, María Neira reflete:
“Se obtivemos uma vacina em 10 meses foi porque já havia grupos de cientistas trabalhando
nisso há bastante tempo, com recursos exíguos e boa vontade”.
A corrida científica para
conseguir fármacos e vacinas foi monumental, não tem precedentes e começou
assim que a China notificou, em dezembro do ano passado, os primeiros casos de
uma pneumonia atípica de origem desconhecida.
A ciência tem feito um
esforço brutal, à margem da falta de interesse público, dos cortes
orçamentários, dos salários miseráveis e da instabilidade da carreira na pesquisa
científica. María Neira reflete sobre sua experiência na OMS nos últimos meses:
“Batemos recordes na colaboração entre especialistas. Nunca tinha visto nada
assim. Esta foi uma das coisas que mais emocionaram aos meus colegas e a mim:
essa generosidade, a colaboração altruísta e muito consciente do momento
histórico em que estamos colocados”. A ciência, apesar de tudo, respondeu, sim.
Mas não sem custos.
“Até agora, o que chegava à
sociedade, através dos meios de comunicação, era o produto final da ciência,
mas nos últimos meses o que se viu foi como a ciência funciona, suas tripas. E
o que ficou, às vezes, foi muita inquietação”, opina López-Goñi. O primeiro
problema é que a sociedade, e também os políticos, costumam pedir soluções
rápidas e contundentes a problemas complexos e mutáveis, como é o caso da luta
contra um vírus mortal. “E a ciência não tem respostas imediatas nem certezas,
sobretudo em questões de biologia”, diz o microbiologista.
Os cientistas publicam suas
pesquisas, que são revisadas por outros cientistas. Esse processo normalmente
dura meses, mas neste ano foram publicados milhares de preprints, estudos
sem confirmação, de utilidade para a comunidade pesquisadora, mas que saíram
nos meios de comunicação geral e nas redes sociais como verdades confirmadas,
quando não eram. Também se reduziu pela metade o tempo de revisão das revistas
médicas, de 120 dias em média para 60. E houve
exemplos lancinantes de ciência mal feita: um artigo científico não revisado afirmava,
em janeiro, ter encontrado um “suspeito” vínculo entre o vírus da aids e o coronavírus,
sugerindo a ideia de que o vírus da covid-19 poderia ter sido criado
deliberadamente em um laboratório. O artigo foi retirado dois dias depois, mas
foi baixado por 200.000 pessoas e divulgado em mais de 23.000 tuítes.
Há má ciência que também
trouxe suculentos benefícios nas Bolsas às empresas que jogaram com oferecer
informação não comprovada sobre seus medicamentos ou vacinas.
Mas
o melhor exemplo talvez seja o da hidroxicloroquina, medicamento utilizado para
a terapia de doenças como a malária, identificado no princípio da pandemia como
um dos possíveis tratamentos contra a covid-19. Também foi defendido por Jair Bolsonaro e Donald Trump. Entretanto, quando a prestigiosa revista The Lancet publicou um estudo em
maio sugerindo que ela aumentava o risco de morte, esse simples fármaco para a
malária ficou desacreditado, manchado também por ter sido defendido por dois
presidentes populistas e que não são precisamente amantes da ciência. E, finalmente,
a OMS anunciou em outubro que a hidroxicloroquina não salva vidas, mas os
resultados de seu estudo tampouco foram publicados até agora.
“Há uma crescente
preocupação de que a ciência esteja sendo apresentada ao público de uma maneira
que pode causar confusão, expectativas inapropriadas e erosão da confiança
pública”, reconhece a Real Sociedade do Canadá em um interessante relatório
intitulado Precisamos melhorar. A arrogância de alguns
cientistas midiáticos e tuiteiros em falar de um tema sobre o qual não
pesquisaram, terminou de acrescentar ruído e desconcerto ao mundo da divulgação
científica. Quanto dura a imunidade da covid-19? As mutações do vírus são mais
perigosas? O que está ocorrendo nas escolas para que não haja grandes
contágios? O fato é que não sabemos, e talvez tenha chegado o momento de
admitir. “A certeza é o contrário do conhecimento”, diz esse mesmo editorial. “Convém
insistir em que a ciência é crítica consigo mesma e vai se autocorrigindo”,
explica Fernández
Mallo.
A má ciência, misturada à
necessidade de certezas por parte dos políticos e da população, gerou muito
ruído ao redor da ciência: conspirações,
notícias falsas, movimentos antivacinas e antimáscaras, desconfiança… Reflete
María Neira, da OMS: “ É preciso
retomar a serenidade e a liderança, o que não quer dizer doutrinar.”
A
boa notícia é que a ciência está mais preparada do que nunca para ajudar os
líderes políticos a fazerem seu trabalho, ou seja, a liderarem. O Governo
espanhol aumentou em 60% o investimento em ciência, a maior alta já aprovada no
país. As doações à principal agência espanhola de pesquisa científica, o CSIC, passaram dos
exíguos 460.000 euros de 2019 para 11,3 milhões de euros até o começo de
dezembro. É um fenômeno inédito na Espanha. Além disso, alguns cientistas disseram
ter observado um aumento nas matrículas em cursos de Biologia, Bioquímica e
Medicina. A atenção mundial está, sim, fixada na ciência. Mas se manterá?
“A ciência
é um investimento estratégico, inteligente e, ao mesmo tempo, de senso comum. É
óbvio, é tão básico, que não deveria nem ser discutido”, diz María Neira. Ela e
outros especialistas acreditam que a próxima ocasião para comprovar se a
ciência permanece no interesse de cidadãos e políticos será o que a OMS chama
de Uma Saúde – a necessidade de refletir sobre a conexão da nossa saúde e a do planeta.
Porque ninguém tem dúvidas de que outro vírus mortal provocará outra pandemia.
A questão é se teremos aproveitado o tempo para nos preparar.
“Além de reforçar os
sistemas de resposta e de vigilância epidemiológica, temos que pensar em como
tratamos os fatores de risco, e isso não estamos fazendo bem”, diz Neira. Entre
os riscos que não estamos enfrentando, a especialista cita a poluição
atmosférica, as cidades onde vivemos – “nas quais o carro é o rei e nós somos
cidadãos de segunda classe” – e um estilo de vida sedentário, que aumenta
fatores de risco como a hipertensão, a diabetes e a obesidade.
É
crucial a manutenção dos cientistas no assessoramento dos políticos quando
chegar a hora de voltar a tomar decisões complexas. “Demoramos muitos meses para
criar os canais de capilarização desse conhecimento científico”, diz o
sociólogo Pep Lobera. “E canais para que esse conhecimento permeie a tomada de
decisões em contextos de incerteza, não poderão ser improvisados”, acrescenta. E
é hora de reforçar a comunicação entre cientistas e cidadãos, e para isso é
fundamental “sermos muito transparentes, muito receptivos, não gerar falsas esperanças,
escutar as inquietações. É preciso ter humildade”, conclui Lobera.
O ano de 2021
será fundamental na história da ciência e da confiança pública nela. Lobera,
que é um dos que mais pesquisaram os pontos fortes e fracos da cultura
científica na Espanha, acha que nisto o país ibérico parte com uma vantagem e
uma desvantagem. O fator positivo é a confiança nos cientistas, no
funcionamento da ciência e nas vacinas.
O fator negativo é que a
Espanha atual é um dos lugares
mais polarizados politicamente. Até os debates mais técnicos
serviram para polarizar a população. “E há uma relação preocupante entre a
erosão da confiança social na ciência, e na política, e a emergência de
partidos populistas com líderes carismáticos, proféticos”, acrescenta Lobera. “É
preciso sempre financiar a pesquisa de qualidade, para que quando a crise vier,
você tenha conhecimentos suficientes em que se basear para poder fazer as
descobertas ou gerar as metodologias que vão lhe ajudar”, resume Cañelles.
Graças
à ciência já não há varíola e estamos a ponto de erradicar a pólio,
a dracunculose, a hepatite C, o sarampo e a rubéola, reflete López-Goñi em seu
livro. Graças à ciência já não há peste nem leprosos nas ruas da Europa. Graças
à ciência, a aids é uma doença crônica. Graças à ciência, muitos cânceres podem
ser curados. Para solucionar esta e futuras pandemias, e até que alguém invente
um método melhor, o único caminho que temos é ouvir, compreender, defender e
financiar as Katalin Karikós do mundo; ouvir, compreender, defender e financiar
a ciência.
Um comentário:
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