sábado, 2 de janeiro de 2021

O ano da ciência

 


Texto original:

https://brasil.elpais.com/brasil/2020/12/22/eps/1608637752_983427.html

O ano da ciência

Patricia Fernández de Lis

31 DEZ 2020 - 12:44 BRST

 

 

Texto editado / NMM:

Katalin Karikó talvez ganhe um prêmio Nobel algum dia, mas já passou décadas sendo rejeitada. Na década de 1990, essa pesquisadora húngara imaginava que o RNA poderia servir para curar doenças como o câncer, mas sua ideia provocava a incredulidade de colegas e instituições. Perdeu seu emprego na Universidade de Pensilvânia (EUA), quis largar a ciência. Mas continuou pesquisando. E, em janeiro deste ano, quando se publicou o sequenciamento genético de um misterioso vírus mortal que assolava a China, aplicou sua ideia a uma possível vacina.

Dez meses depois, a fórmula da empresa onde trabalha, a alemã BioNTech, foi testada em 44.000 pessoas e é uma das grandes esperanças para acabar com a pandemia de coronavírus .

Um vírus nos pegou desprevenidos. Muitos cidadãos se perguntaram como é possível que ninguém nos avisasse de que isto podia acontecer. Mas o fato é que cientistas como Karikó nos avisaram. A questão é que ninguém escutou.

Carl Sagan disse várias vezes: vivemos numa sociedade absolutamente dependente da ciência e da tecnologia. E, no entanto, demos um jeito de que ninguém entendesse a ciência e a tecnologia. E essa é uma receita clara para o desastre, concluía.

“A desconexão entre cientistas e cidadãos sempre existiu”, reflete o escritor e também físico espanhol Agustín Fernández Mallo. “Acredito que tem a ver com uma educação incorreta, mas nem tanto nos conteúdos científicos, e sim na filosofia da ciência. Talvez aí parte da culpa seja também do sistema social científico, que historicamente estimulou a ideia de que a ciência é igual à verdade”, acrescenta. E a ciência é apenas um método para nos aproximarmos dessa verdade; mas é o melhor que temos.

Uma pesquisa sobre a percepção social da ciência na Espanha mostra que os espanhóis confiam na ciência, mas não a compreendem.

Matilde Cañelles acha, como Fernández Mallo, que a desconexão entre cientistas e cidadãos não é exclusivamente atribuível à falta de formação da sociedade. A especialista diz que o sucesso de uma carreira científica é cada vez mais avaliado pelo número de artigos que um pesquisador publica. Em inglês chamam isso de “publish or perish” (“publique ou pereça”). E isto isolou muitos cientistas sob toneladas de documentos e burocracias, levando-os a se esquecer da necessidade de transmitir os resultados de suas pesquisas à sociedade. “Criou-se o que os norte-americanos chamam de rat race [corrida de ratos] para conseguir cada vez mais artigos, mais dinheiro e um laboratório maior. E alguns valores se perderam, como a necessidade de falar com a mídia e os cidadãos”, reflete Cañelles.

Um problema agregado são os longos e complexos tempos e métodos da ciência. Como se observa claramente com o exemplo da vacina de Katalin Karikó, um cientista precisa de décadas e de um financiamento constante para que suas pesquisas obtenham resultados. Na Espanha, a sangria dos recursos dedicados à ciência nos últimos 10 anos foi monumental: investiu-se 1,24% do PIB, menos que uma década antes (1,40%), quando a média europeia é de 2%. A perspectiva de carreira do pesquisador é um desastre; os laboratórios estão sufocados pela falta de dinheiro e a burocracia; os melhores biólogos, físicos e matemáticos partem para o exterior ou para os setores farmacêutico e tecnológico.

A falta de atenção e interesse público pela ciência se revela facilmente com um exemplo muito simples. O Centro Nacional de Epidemiologia é o encarregado de vigiar a saúde pública espanhola. Em 2008, 100 pessoas trabalhavam nesse órgão; neste ano de 2020, quando chegou à Espanha a maior pandemia do século XXI, eram apenas 64. Agora, o centro foi reforçado e tem 77 trabalhadores.

De modo que a ciência continuou trabalhando com meios cada vez mais limitados, e quando os virologistas e epidemiologistas alertaram de que em algum momento haveria uma pandemia global provocada por um vírus, ninguém deu ouvidos.

Graças a uma combinação de preparação (especialmente nos países do Extremo Oriente) e boa sorte, nem a SARS em 2002, nem a gripe suína em 2009, nem o ebola em 2014, nem o zika em 2016 foram pandemias completas. Mas quando, em 11 de março de 2020, a OMS declarou que a covid-19 era uma pandemia, a atenção de todo o planeta voltou-se para a ciência. E a ciência estava preparada.

De sua posição privilegiada na OMS, María Neira reflete: “Se obtivemos uma vacina em 10 meses foi porque já havia grupos de cientistas trabalhando nisso há bastante tempo, com recursos exíguos e boa vontade”.

A corrida científica para conseguir fármacos e vacinas foi monumental, não tem precedentes e começou assim que a China notificou, em dezembro do ano passado, os primeiros casos de uma pneumonia atípica de origem desconhecida. 

A ciência tem feito um esforço brutal, à margem da falta de interesse público, dos cortes orçamentários, dos salários miseráveis e da instabilidade da carreira na pesquisa científica. María Neira reflete sobre sua experiência na OMS nos últimos meses: “Batemos recordes na colaboração entre especialistas. Nunca tinha visto nada assim. Esta foi uma das coisas que mais emocionaram aos meus colegas e a mim: essa generosidade, a colaboração altruísta e muito consciente do momento histórico em que estamos colocados”. A ciência, apesar de tudo, respondeu, sim. Mas não sem custos.

“Até agora, o que chegava à sociedade, através dos meios de comunicação, era o produto final da ciência, mas nos últimos meses o que se viu foi como a ciência funciona, suas tripas. E o que ficou, às vezes, foi muita inquietação”, opina López-Goñi. O primeiro problema é que a sociedade, e também os políticos, costumam pedir soluções rápidas e contundentes a problemas complexos e mutáveis, como é o caso da luta contra um vírus mortal. “E a ciência não tem respostas imediatas nem certezas, sobretudo em questões de biologia”, diz o microbiologista.

Os cientistas publicam suas pesquisas, que são revisadas por outros cientistas. Esse processo normalmente dura meses, mas neste ano foram publicados milhares de preprints, estudos sem confirmação, de utilidade para a comunidade pesquisadora, mas que saíram nos meios de comunicação geral e nas redes sociais como verdades confirmadas, quando não eram. Também se reduziu pela metade o tempo de revisão das revistas médicas, de 120 dias em média para 60. E houve exemplos lancinantes de ciência mal feita: um artigo científico não revisado afirmava, em janeiro, ter encontrado um “suspeito” vínculo entre o vírus da aids e o coronavírus, sugerindo a ideia de que o vírus da covid-19 poderia ter sido criado deliberadamente em um laboratório. O artigo foi retirado dois dias depois, mas foi baixado por 200.000 pessoas e divulgado em mais de 23.000 tuítes.

Há má ciência que também trouxe suculentos benefícios nas Bolsas às empresas que jogaram com oferecer informação não comprovada sobre seus medicamentos ou vacinas.

Mas o melhor exemplo talvez seja o da hidroxicloroquina, medicamento utilizado para a terapia de doenças como a malária, identificado no princípio da pandemia como um dos possíveis tratamentos contra a covid-19. Também foi defendido por Jair Bolsonaro e Donald Trump. Entretanto, quando a prestigiosa revista The Lancet publicou um estudo em maio sugerindo que ela aumentava o risco de morte, esse simples fármaco para a malária ficou desacreditado, manchado também por ter sido defendido por dois presidentes populistas e que não são precisamente amantes da ciência. E, finalmente, a OMS anunciou em outubro que a hidroxicloroquina não salva vidas, mas os resultados de seu estudo tampouco foram publicados até agora.

“Há uma crescente preocupação de que a ciência esteja sendo apresentada ao público de uma maneira que pode causar confusão, expectativas inapropriadas e erosão da confiança pública”, reconhece a Real Sociedade do Canadá em um interessante relatório intitulado Precisamos melhorar. A arrogância de alguns cientistas midiáticos e tuiteiros em falar de um tema sobre o qual não pesquisaram, terminou de acrescentar ruído e desconcerto ao mundo da divulgação científica. Quanto dura a imunidade da covid-19? As mutações do vírus são mais perigosas? O que está ocorrendo nas escolas para que não haja grandes contágios? O fato é que não sabemos, e talvez tenha chegado o momento de admitir. “A certeza é o contrário do conhecimento”, diz esse mesmo editorial. “Convém insistir em que a ciência é crítica consigo mesma e vai se autocorrigindo”, explica Fernández Mallo.

A má ciência, misturada à necessidade de certezas por parte dos políticos e da população, gerou muito ruído ao redor da ciência: conspirações, notícias falsas, movimentos antivacinas e antimáscaras, desconfiança…  Reflete María Neira, da OMS: “ É preciso retomar a serenidade e a liderança, o que não quer dizer doutrinar.”

A boa notícia é que a ciência está mais preparada do que nunca para ajudar os líderes políticos a fazerem seu trabalho, ou seja, a liderarem. O Governo espanhol aumentou em 60% o investimento em ciência, a maior alta já aprovada no país. As doações à principal agência espanhola de pesquisa científica, o CSIC, passaram dos exíguos 460.000 euros de 2019 para 11,3 milhões de euros até o começo de dezembro. É um fenômeno inédito na Espanha. Além disso, alguns cientistas disseram ter observado um aumento nas matrículas em cursos de Biologia, Bioquímica e Medicina. A atenção mundial está, sim, fixada na ciência. Mas se manterá?

“A ciência é um investimento estratégico, inteligente e, ao mesmo tempo, de senso comum. É óbvio, é tão básico, que não deveria nem ser discutido”, diz María Neira. Ela e outros especialistas acreditam que a próxima ocasião para comprovar se a ciência permanece no interesse de cidadãos e políticos será o que a OMS chama de Uma Saúde – a necessidade de refletir sobre a conexão da nossa saúde e a do planeta. Porque ninguém tem dúvidas de que outro vírus mortal provocará outra pandemia. A questão é se teremos aproveitado o tempo para nos preparar.

“Além de reforçar os sistemas de resposta e de vigilância epidemiológica, temos que pensar em como tratamos os fatores de risco, e isso não estamos fazendo bem”, diz Neira. Entre os riscos que não estamos enfrentando, a especialista cita a poluição atmosférica, as cidades onde vivemos – “nas quais o carro é o rei e nós somos cidadãos de segunda classe” – e um estilo de vida sedentário, que aumenta fatores de risco como a hipertensão, a diabetes e a obesidade.

É crucial a manutenção dos cientistas no assessoramento dos políticos quando chegar a hora de voltar a tomar decisões complexas. “Demoramos muitos meses para criar os canais de capilarização desse conhecimento científico”, diz o sociólogo Pep Lobera. “E canais para que esse conhecimento permeie a tomada de decisões em contextos de incerteza, não poderão ser improvisados”, acrescenta. E é hora de reforçar a comunicação entre cientistas e cidadãos, e para isso é fundamental “sermos muito transparentes, muito receptivos, não gerar falsas esperanças, escutar as inquietações. É preciso ter humildade”, conclui Lobera.

ano de 2021 será fundamental na história da ciência e da confiança pública nela. Lobera, que é um dos que mais pesquisaram os pontos fortes e fracos da cultura científica na Espanha, acha que nisto o país ibérico parte com uma vantagem e uma desvantagem. O fator positivo é a confiança nos cientistas, no funcionamento da ciência e nas vacinas.

O fator negativo é que a Espanha atual é um dos lugares mais polarizados politicamente. Até os debates mais técnicos serviram para polarizar a população. “E há uma relação preocupante entre a erosão da confiança social na ciência, e na política, e a emergência de partidos populistas com líderes carismáticos, proféticos”, acrescenta Lobera. “É preciso sempre financiar a pesquisa de qualidade, para que quando a crise vier, você tenha conhecimentos suficientes em que se basear para poder fazer as descobertas ou gerar as metodologias que vão lhe ajudar”, resume Cañelles.

Graças à ciência já não há varíola e estamos a ponto de erradicar a pólio, a dracunculose, a hepatite C, o sarampo e a rubéola, reflete López-Goñi em seu livro. Graças à ciência já não há peste nem leprosos nas ruas da Europa. Graças à ciência, a aids é uma doença crônica. Graças à ciência, muitos cânceres podem ser curados. Para solucionar esta e futuras pandemias, e até que alguém invente um método melhor, o único caminho que temos é ouvir, compreender, defender e financiar as Katalin Karikós do mundo; ouvir, compreender, defender e financiar a ciência.


Um comentário:

pascalijae disse...

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