Texto original:
ENTREVISTA: ‘O CAPITALISMO AINDA
ESTÁ NO PODER, MAS ESTÁ MORTO’, DIZ FRANCO BERARDI
Filósofo italiano defende que a pandemia nos deixou duas
opções: ou fundamos uma nova sociedade ou acabaremos com a espécie humana.
Texto editado /
NMM:
ESTAMOS PERTO DO FIM. Se
soubermos articular a solidariedade social, será o fim do capitalismo; caso
contrário, será o fim da humanidade.
Marxista das antigas, figura atuante no Maio de
1968 na Itália, Berardi se exilou na França no fim da década de 1970. Junto ao
psicanalista e filósofo Félix Guattari, frequentou os famosos seminários do
filósofo Michel Foucault em Paris.
De Bolonha, Berardi conversou com o Intercept sobre os futuros possíveis pós-pandemia.
Intercept – Nas primeiras páginas de
‘Extremo’, você diz que há dois caminhos: comunismo ou extinção. Realmente
estamos diante dessa escolha neste momento?
Franco Berardi – Gosto de uma figura retórica, a hipérbole. É um bom modo para
expressar a situação extrema que vivemos. Esse é o espírito dessa frase do
livro, uma hipérbole para expressar o extremo.
Sinceramente penso que a civilização humana não tem
saída no contexto atual, pois a economia ancorada na exploração extrativista de
recursos naturais atingiu o limite. Nós estamos, espiritual e fisicamente, morrendo
todo dia. Tem saída? Não sei. O que sei é que os últimos 40 anos de
neoliberalismo foram marcados por privatizações, pobreza, desigualdades e
devastação do planeta.
O mundo precisa mudar. E mudar implica aceitar duas
condições. Primeiro, parar de almejar crescimento ilimitado. Por que queremos
continuar crescendo a economia, expandindo às custas da exploração da natureza?
É preciso, na verdade, frear a desigualdade, redistribuindo a riqueza. Segundo,
direcionar conhecimento, ciência e tecnologia para o bem social, não para o
lucro.
Goste-se ou não, é o que é: comunismo. Podemos
encontrar outra palavra, mas o conceito é este, é cristalino.
Em outra fórmula, socialismo ou barbárie. O conceito estava certo, mas o experimento real fracassou na antiga União
Soviética. Mas veja: Cristo é lembrado como um cara legal, mas quantos crimes
foram cometidos em seu nome? De Marx, só lembram violências em seu nome. Até
hoje é possível compreender a realidade a partir dos livros desse filósofo
alemão, antigo.
Sou marxista, mas não dogmático. Penso que
precisamos encontrar um modo para redistribuir riqueza, o que considero uma
busca de igualdade e frugalidade. A questão é que é muito difícil que isso
aconteça; por diversos motivos, e porque a atual geração foi exposta a um projeto
patológico de política, cultura e comunicação que não vê alternativa possível.
Extinção é um risco real, um futuro provável. Precisamos
pensar além do que é provável, explorar o que é o possível. Diferentemente de
economistas, nós, filósofos, precisamos deixar de lado a probabilidade e buscar
a possibilidade. Como pensadores, esta é nossa tarefa.
Vê diálogo entre gerações? Filósofos de sua geração
estão dialogando com os mais jovens e vice-versa?
Tenho escrito livros nos últimos 50 anos: meu
primeiro livro, “Contro il lavoro”, foi publicado em 1970. Recentemente, tentei
reler e não consegui entender nada. Está cheio de conceitos complicados e
esotéricos, Marx e Lênin e tudo mais.
Até o fim da década de 1990, publiquei muitos
livros pensando na minha própria geração. E quem eram meus leitores? E onde
eles estão agora? Muitos, mortos.
Mas, nos últimos anos, meus livros passaram a
vender dez vezes mais. Então, quem são meus leitores agora? Jovens na casa dos
20 anos, a geração atual. O que noto é que é inútil discutir conceitos
abstratos demais de economia e política com esses jovens. O melhor é discutir o
que nos afeta de verdade, a dor, a depressão, o sofrimento, a sexualidade, a
vida. Tudo isso é político e psicológico, mas você não precisa usar palavras
difíceis para abordar.
Em 2001, escrevi “La fabbrica dell’infelicità”,
sobre tecnologia e psicopatologias.
Como autor, foi o marco de uma nova experiência
para mim. Também foi o marco de uma nova relação com os outros, os
interlocutores.
Considera que os ventos estão mudando na Bolívia,
no Chile, nos Estados Unidos? Há motivos para otimismo atualmente?
Minha resposta é: devagar com o andor. A vitória da
esquerda na Bolívia e o referendo no Chile são acontecimentos políticos
pequenos diante da extrema-direita. Trump pode não ganhar, mas está ganhando
ainda assim: o fato de um monstro, fascista e racista, ter milhões de votos nas
eleições estadunidenses significa que a extrema-direita ainda é forte e
significa que a esquerda não está forte o bastante para realmente representar
interesses dos jovens, latinos e negros. Esta é a realidade.
Não há mudança de ventos ainda, desculpe. É uma
brisa de possibilidade. Não espero que as vitórias na Bolívia ou no Chile
possam mudar o mundo, mas podem ser um marco simbólico para quem luta por
igualdade no mundo todo.
Neste contexto, como avalia a vitória de Biden
contra Trump?
Toda pessoa decente deste planeta esperava e
desejava a derrota de Donald Trump. Mas decência não é o bastante.
Sejamos francos: a única coisa que vai unir os
Estados Unidos é uma guerra contra a China. A vitória de Biden não é
tranquilizadora quando se trata de paz no mundo.
É possível mudar o mundo sem tomar o poder?
Na década de 2000, a América Latina estava mudando.
Fiquei feliz, obviamente – melhor um Lula do que um Bolsonaro. Mas, sinceramente,
não esperava muito da esquerda no poder, porque penso que estamos partindo de
conceitos datados de mais de 200 anos, esquerda, extrema esquerda, social
democratas… Na verdade, não acredito que um governo possa mudar radicalmente as
coisas, pois está debaixo das regras do mercado financeiro internacional, uma
ditadura global. Um governante pode mudar um pouco no nível nacional, mas há
tantas limitações que, cedo ou tarde, vai desapontar.
Quero dizer que, para ter transformação, é preciso
uma mudança de mentalidade, cultural e psico-política global para a
solidariedade social. O que só pode ser feito coletivamente, não por um ou
outro governo. Pessoas ao redor do mundo estão pensando, imaginando,
construindo novos mundos a partir de uma nova infoesfera, complexa e caótica,
uma economia contemporânea de conectividade. Quem pode governar o caos?
Pessoas como eu, você, os outros, todos conectados,
em uma rede de ideias, atos, afetos. É uma mudança que não se limita ao nível
nacional. Você está no Japão, estou na Itália e estamos conversando com o Brasil.
O que nós discutimos, uma autogestão de microfluxos do maquinário tecnológico,
descentralizada, para superar modelos engessados, está fora do alcance dos
Estados. Não espero nada da política dos Estados. Espero uma transformação
trabalhada no caos, o que acontece no trauma. E estamos vivendo um trauma
global.
E o trauma que estamos vivendo agora, a pandemia de
covid-19, seria um sintoma mórbido? Como dizia Antonio Gramsci, o velho mundo
agoniza, mas o novo tarda a nascer?
É claro e cristalino. O velho mundo está morrendo,
acabou. O capitalismo ainda está no poder, mas está morto. Um organismo pode
sobreviver a si mesmo, se seus tentáculos continuam vivos após a morte desse
corpo. A pandemia acelerou essa fantasmatização de antigas instituições e ideias como
dívida e dinheiro, que subjuga a atividade humana à abstração capitalista.
O que quero dizer é que não é a política
tradicional que vai equilibrar a relação entre tempo, trabalho e dinheiro a
partir de regras arbitrárias de um macroprojeto de totalidade, mas os milhões
de corpos que têm necessidades concretas para viver, respirar, comer, enfim,
que essencialmente não deveriam ter nada a ver com ter dinheiro ou não.
Por que pago aluguel para ter onde morar? Por que
pago para ter o que comer? Porque dizem que preciso. Mas por que morar e comer
têm de ter a ver com dinheiro? Um governo vai decidir de repente eliminar as
noções de dívida e dinheiro?
Por fim, imagina um futuro pós-pandemia melhor ou
pior?
Giorgio Agamben diz que este é o início de um
sistema tecnototalitário, que irá relançar o capitalismo a partir do controle
tecnológico, de vigilância e violência, e ele pode estar certo. Já Slavoj Žižek
afirma que é um momento para reinventar o comunismo, revolucionar tudo, e ele
também pode estar certo.
Quero dizer, previsões há, mas ninguém sabe o que
vai acontecer. Estamos no limiar do trauma, em uma passagem que pode ser da luz
às trevas, ou das trevas à luz.
Para mim, o mais importante é a consciência do que
estamos vivendo, só assim poderemos imaginar um futuro. Nossos dias estão
marcados pela profunda percepção de perigo, uma bomba atômica para a psicologia
humana. Se não conseguimos imaginar um amanhã em que nos abraçaremos de novo,
de que adianta todo o resto?
Precisamos de comida, carinho, prazer,
sensibilidade, solidariedade, tudo o que nos torna humanos. Precisamos
sobreviver à pandemia para rever, beijar e abraçar as pessoas. Foi a lição mais
importante que aprendi nos últimos tempos.
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