domingo, 3 de janeiro de 2021

Solidariedade ou morte

 


Texto original:

https://theintercept.com/2020/12/28/entrevista-o-capitalismo-ainda-esta-no-poder-mas-esta-morto-diz-franco-berardi/

ENTREVISTA: ‘O CAPITALISMO AINDA ESTÁ NO PODER, MAS ESTÁ MORTO’, DIZ FRANCO BERARDI

Filósofo italiano defende que a pandemia nos deixou duas opções: ou fundamos uma nova sociedade ou acabaremos com a espécie humana.

Juliana Sayuri

28 de Dezembro de 2020, 8h30

 

Texto editado / NMM:

ESTAMOS PERTO DO FIM.  Se soubermos articular a solidariedade social, será o fim do capitalismo; caso contrário, será o fim da humanidade.

Marxista das antigas, figura atuante no Maio de 1968 na Itália, Berardi se exilou na França no fim da década de 1970. Junto ao psicanalista e filósofo Félix Guattari, frequentou os famosos seminários do filósofo Michel Foucault em Paris.

De Bolonha, Berardi conversou com o Intercept sobre os futuros possíveis pós-pandemia.

 

Intercept – Nas primeiras páginas de ‘Extremo’, você diz que há dois caminhos: comunismo ou extinção. Realmente estamos diante dessa escolha neste momento?

Franco Berardi – Gosto de uma figura retórica, a hipérbole. É um bom modo para expressar a situação extrema que vivemos. Esse é o espírito dessa frase do livro, uma hipérbole para expressar o extremo.

Sinceramente penso que a civilização humana não tem saída no contexto atual, pois a economia ancorada na exploração extrativista de recursos naturais atingiu o limite. Nós estamos, espiritual e fisicamente, morrendo todo dia. Tem saída? Não sei. O que sei é que os últimos 40 anos de neoliberalismo foram marcados por privatizações, pobreza, desigualdades e devastação do planeta.

O mundo precisa mudar. E mudar implica aceitar duas condições. Primeiro, parar de almejar crescimento ilimitado. Por que queremos continuar crescendo a economia, expandindo às custas da exploração da natureza? É preciso, na verdade, frear a desigualdade, redistribuindo a riqueza. Segundo, direcionar conhecimento, ciência e tecnologia para o bem social, não para o lucro.

Goste-se ou não, é o que é: comunismo. Podemos encontrar outra palavra, mas o conceito é este, é cristalino.

Em outra fórmula, socialismo ou barbárie. O conceito estava certo, mas o experimento real fracassou na antiga União Soviética. Mas veja: Cristo é lembrado como um cara legal, mas quantos crimes foram cometidos em seu nome? De Marx, só lembram violências em seu nome. Até hoje é possível compreender a realidade a partir dos livros desse filósofo alemão, antigo.

Sou marxista, mas não dogmático. Penso que precisamos encontrar um modo para redistribuir riqueza, o que considero uma busca de igualdade e frugalidade. A questão é que é muito difícil que isso aconteça; por diversos motivos, e porque a atual geração foi exposta a um projeto patológico de política, cultura e comunicação que não vê alternativa possível.

Extinção é um risco real, um futuro provável. Precisamos pensar além do que é provável, explorar o que é o possível. Diferentemente de economistas, nós, filósofos, precisamos deixar de lado a probabilidade e buscar a possibilidade. Como pensadores, esta é nossa tarefa.

Vê diálogo entre gerações? Filósofos de sua geração estão dialogando com os mais jovens e vice-versa?

Tenho escrito livros nos últimos 50 anos: meu primeiro livro, “Contro il lavoro”, foi publicado em 1970. Recentemente, tentei reler e não consegui entender nada. Está cheio de conceitos complicados e esotéricos, Marx e Lênin e tudo mais.

Até o fim da década de 1990, publiquei muitos livros pensando na minha própria geração. E quem eram meus leitores? E onde eles estão agora? Muitos, mortos.

Mas, nos últimos anos, meus livros passaram a vender dez vezes mais. Então, quem são meus leitores agora? Jovens na casa dos 20 anos, a geração atual. O que noto é que é inútil discutir conceitos abstratos demais de economia e política com esses jovens. O melhor é discutir o que nos afeta de verdade, a dor, a depressão, o sofrimento, a sexualidade, a vida. Tudo isso é político e psicológico, mas você não precisa usar palavras difíceis para abordar.

Em 2001, escrevi “La fabbrica dell’infelicità”, sobre tecnologia e psicopatologias.

Como autor, foi o marco de uma nova experiência para mim. Também foi o marco de uma nova relação com os outros, os interlocutores.

Considera que os ventos estão mudando na Bolívia, no Chile, nos Estados Unidos? Há motivos para otimismo atualmente?

Minha resposta é: devagar com o andor. A vitória da esquerda na Bolívia e o referendo no Chile são acontecimentos políticos pequenos diante da extrema-direita. Trump pode não ganhar, mas está ganhando ainda assim: o fato de um monstro, fascista e racista, ter milhões de votos nas eleições estadunidenses significa que a extrema-direita ainda é forte e significa que a esquerda não está forte o bastante para realmente representar interesses dos jovens, latinos e negros. Esta é a realidade.

Não há mudança de ventos ainda, desculpe. É uma brisa de possibilidade. Não espero que as vitórias na Bolívia ou no Chile possam mudar o mundo, mas podem ser um marco simbólico para quem luta por igualdade no mundo todo.

Neste contexto, como avalia a vitória de Biden contra Trump?

Toda pessoa decente deste planeta esperava e desejava a derrota de Donald Trump. Mas decência não é o bastante.

Sejamos francos: a única coisa que vai unir os Estados Unidos é uma guerra contra a China. A vitória de Biden não é tranquilizadora quando se trata de paz no mundo.

É possível mudar o mundo sem tomar o poder?

Na década de 2000, a América Latina estava mudando. Fiquei feliz, obviamente – melhor um Lula do que um Bolsonaro. Mas, sinceramente, não esperava muito da esquerda no poder, porque penso que estamos partindo de conceitos datados de mais de 200 anos, esquerda, extrema esquerda, social democratas… Na verdade, não acredito que um governo possa mudar radicalmente as coisas, pois está debaixo das regras do mercado financeiro internacional, uma ditadura global. Um governante pode mudar um pouco no nível nacional, mas há tantas limitações que, cedo ou tarde, vai desapontar.

Quero dizer que, para ter transformação, é preciso uma mudança de mentalidade, cultural e psico-política global para a solidariedade social. O que só pode ser feito coletivamente, não por um ou outro governo. Pessoas ao redor do mundo estão pensando, imaginando, construindo novos mundos a partir de uma nova infoesfera, complexa e caótica, uma economia contemporânea de conectividade. Quem pode governar o caos?

Pessoas como eu, você, os outros, todos conectados, em uma rede de ideias, atos, afetos. É uma mudança que não se limita ao nível nacional. Você está no Japão, estou na Itália e estamos conversando com o Brasil. O que nós discutimos, uma autogestão de microfluxos do maquinário tecnológico, descentralizada, para superar modelos engessados, está fora do alcance dos Estados. Não espero nada da política dos Estados. Espero uma transformação trabalhada no caos, o que acontece no trauma. E estamos vivendo um trauma global.

E o trauma que estamos vivendo agora, a pandemia de covid-19, seria um sintoma mórbido? Como dizia Antonio Gramsci, o velho mundo agoniza, mas o novo tarda a nascer?

É claro e cristalino. O velho mundo está morrendo, acabou. O capitalismo ainda está no poder, mas está morto. Um organismo pode sobreviver a si mesmo, se seus tentáculos continuam vivos após a morte desse corpo. A pandemia acelerou essa fantasmatização de antigas instituições e ideias como dívida e dinheiro, que subjuga a atividade humana à abstração capitalista.

O que quero dizer é que não é a política tradicional que vai equilibrar a relação entre tempo, trabalho e dinheiro a partir de regras arbitrárias de um macroprojeto de totalidade, mas os milhões de corpos que têm necessidades concretas para viver, respirar, comer, enfim, que essencialmente não deveriam ter nada a ver com ter dinheiro ou não.

Por que pago aluguel para ter onde morar? Por que pago para ter o que comer? Porque dizem que preciso. Mas por que morar e comer têm de ter a ver com dinheiro? Um governo vai decidir de repente eliminar as noções de dívida e dinheiro?

Por fim, imagina um futuro pós-pandemia melhor ou pior?

Giorgio Agamben diz que este é o início de um sistema tecnototalitário, que irá relançar o capitalismo a partir do controle tecnológico, de vigilância e violência, e ele pode estar certo. Já Slavoj Žižek afirma que é um momento para reinventar o comunismo, revolucionar tudo, e ele também pode estar certo.

Quero dizer, previsões há, mas ninguém sabe o que vai acontecer. Estamos no limiar do trauma, em uma passagem que pode ser da luz às trevas, ou das trevas à luz.

Para mim, o mais importante é a consciência do que estamos vivendo, só assim poderemos imaginar um futuro. Nossos dias estão marcados pela profunda percepção de perigo, uma bomba atômica para a psicologia humana. Se não conseguimos imaginar um amanhã em que nos abraçaremos de novo, de que adianta todo o resto?

Precisamos de comida, carinho, prazer, sensibilidade, solidariedade, tudo o que nos torna humanos. Precisamos sobreviver à pandemia para rever, beijar e abraçar as pessoas. Foi a lição mais importante que aprendi nos últimos tempos.


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