Texto original:
Como os dogmas neoliberais estão
dificultando a resolução da pandemia
04 Fevereiro 2021
Eis o artigo de Vicenç Navarro, sociólogo e cientista político espanhol, em artigo publicado por Público, 03-02-2021.
E,
consequentemente, está havendo um grande debate sobre como responder a
esta pandemia. Mas há um fato que não é tratado nesses fóruns políticos e
midiáticos. Já sabemos controlar, conter e, portanto, superar a pandemia. Temos
o conhecimento científico e os recursos.
E
não me refiro apenas às ciências
virológicas e epidemiológicas e
outras, mas também às ciências sociais e econômicas. Sei do que
estou falando.
Também
sou professor da Johns
Hopkins University, incluindo sua bem conhecida Escola de Saúde Pública. E
posso garantir que sim, se sabe como controlar a pandemia. Sabemos, por
exemplo, que não é possível haver recuperação econômica sem primeiro conter a
pandemia. Nenhum país conseguiu isso.
Agora,
o leitor perguntará: se sabemos controlar a pandemia e temos recursos para
isso, por que isto não é feito? E outra pergunta que deriva da anterior é: por
que os meios de comunicação não estão noticiando e os governos não estão
agindo?
A
resposta à última pergunta tem a ver com a ideologia e a cultura dominantes
nesses países, o que torna difícil ir além do que o pensamento hegemônico
permite considerar. Um desses obstáculos é, por exemplo, o sacrossanto “dogma
da propriedade privada”, considerado fundamental para a sobrevivência da ordem
social, esta última marcada por outro dogma, o das também sacrossantas “leis do
mercado” como o melhor sistema de alocação de recursos. Esses dogmas regem o
comportamento dos meios político-midiáticos da maioria dos grandes países dos
dois lados do Atlântico Norte e desempenham um papel essencial para dificultar
o controle da pandemia.
O
maior problema que existe no controle da pandemia no mundo, hoje, é a falta de vacinas contra o
coronavírus, carência que ocorre até em países considerados ricos.
Na
verdade, o desenvolvimento da parte mais essencial na produção das vacinas de maior
sucesso (Pfizer e Moderna)
ocorreu com fundos públicos, em instituições públicas, em países ricos (e,
muito especialmente, nos Estados Unidos e Alemanha). É o que reconhece nada
menos que o presidente da Federação
Internacional de
Indústrias Farmacêuticas, Sr. Thomas Cueni, em um artigo publicado no New York Times, há algumas semanas: "é verdade que, sem fundos públicos, as
empresas farmacêuticas globais não teriam
sido capazes de desenvolver vacinas covid-19
e de modo tão rápido”. O Sr. Cueni poderia ter acrescentado
que isso também ocorre com a maioria das grandes vacinas que vêm sendo
produzidas há muitos anos.
A
parte fundamental no desenvolvimento de qualquer vacina é o conhecimento
básico, que costuma ser pesquisado em centros públicos ou com fundos públicos
para pesquisa em saúde. A indústria farmacêutica utiliza tal conhecimento para avançar em sua
dimensão aplicada, ou seja, a produção de vacinas.
Mas
esses mesmos Estados oferecem às empresas
farmacêuticas um grande presente, garantindo-lhes um
monopólio na venda do produto por muitos anos.
Aí
está a origem da falta de vacinas.
Simples assim. A propriedade intelectual, garantida pelos Estados e pelas leis
do comércio internacional e seus agentes, é a que cria uma escassez "artificial" de vacinas, o que
gera lucros astronômicos.
O
mais lógico seria que, como propõe Dean Baker (o economista que analisou a indústria farmacêutica internacional
com maior detalhe, rigor e senso crítico), os Estados ampliassem sua
intervenção para incluir, além do conhecimento básico, o aplicado, produzindo
eles próprios as vacinas,
que ficariam muito mais baratas.
E
o leitor questionará: por que não se faz o que parece lógico? Bem, a resposta
também é fácil. Devido ao enorme poder político e midiático da indústria farmacêutica em
nível nacional e internacional. Dean
Baker documenta muito bem a natureza dessas conexões.
Na
realidade, o objetivo de benefícios econômicos deveria ser limitado ou até
mesmo rejeitado nas políticas públicas que têm como objetivo a saúde.
Essa
percepção decorre do fato de que mesmo os Estados Unidos mostram claramente que
a privatização da saúde, administrada por empresas com fins lucrativos (que é a
situação mais comum naquele país), provocou um enorme conflito entre os
objetivos empresariais e a qualidade e segurança dos serviços.
Os
Estados Unidos são o país que mais gasta com saúde (a maior parte privada) e
onde há mais pessoas insatisfeitas com o atendimento recebido. A otimização
da taxa de lucro é um
princípio perigoso para a saúde da população (a escassez de vacinas é um
exemplo disso).
A
linguagem que as autoridades usam é uma linguagem bélica. Estamos lutando, dizem,
"em uma guerra contra o vírus".
É
um recurso que utilizam para forçar o controle dos movimentos da população (o
que me parece lógico e razoável); mas, por outro lado, continuam preservando
meticulosamente os dogmas liberais da propriedade privada e as leis do mercado,
dogmas deixados de lado no passado em situações reais de guerra.
Durante
a Segunda Guerra Mundial,
toda a produção industrial foi orientada para a fabricação do material de
guerra necessário. Por que não fazer o mesmo agora? Caso se forçasse a
fabricação em massa dessas vacinas por
parte das empresas
farmacêuticas em todos os países ou em grupos de países,
seria possível vacinar rapidamente a população, não apenas dos países ricos,
mas de todo o mundo.
Como
era previsível, a União Europeia se opôs a isso, pois está presa aos seus
dogmas, que já demonstraram estar falidos durante o período neoliberal e que,
apesar de seu grande fracasso, continuam dominando os meios político-midiáticos
dos dois lados do Atlântico Norte.
Ao
menos nos Estados Unidos, a nova administração federal do governo Biden, sob pressão da comunidade científica (e das forças
progressistas lideradas por Bernie Sanders), está pedindo a Lei de Produção de Defesa do
país (aprovada pelo presidente Harry Truman), que obriga toda a indústria a se colocar a
serviço da defesa do país para produzir o material necessário para prevenir e
controlar a pandemia. A justificativa para apelar a tal lei é que o bem comum
deve estar acima de todos os interesses privados, exigindo que a indústria farmacêutica anteponha
o bem comum a seus interesses particulares. O mesmo se aplica a diversos
produtos, como seringas especiais e outros. Vamos ver se isso acontece.
Seria
bom se o mesmo acontecesse na Europa. Nem preciso dizer que as direitas de sempre -
de Trump às direitas da Espanha
(incluindo a Catalunha) - acusam aqueles que querem forçar tal produção de
"sócio-comunistas".
Acontece em todo o mundo. Portanto, os cidadãos deveriam se mobilizar para questionar tantos dogmas que provocam tantos danos à população. Encorajo os leitores a organizar e enviar textos e cartas de protesto a tais instituições, pois se isso pode ser feito, que assim seja. O que acontece é que o dogmatismo e as crenças os impedem de enxergar.
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