sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A aliança entre Neoliberalismo e doenças

 


Texto original:

http://www.ihu.unisinos.br/606543-como-os-dogmas-neoliberais-estao-dificultando-a-resolucao-da-pandemia

Como os dogmas neoliberais estão dificultando a resolução da pandemia

04 Fevereiro 2021

 

 Texto editado / NMM:

Eis o artigo de Vicenç Navarro, sociólogo e cientista político espanhol, em artigo publicado por Público, 03-02-2021.

 

 Estamos imersos em uma das maiores crises sociais e econômicas que o mundo já experimentou. E as pessoas sabem disso.

 

E, consequentemente, está havendo um grande debate sobre como responder a esta pandemia. Mas há um fato que não é tratado nesses fóruns políticos e midiáticos. Já sabemos controlar, conter e, portanto, superar a pandemia. Temos o conhecimento científico e os recursos.

E não me refiro apenas às ciências virológicas e epidemiológicas e outras, mas também às ciências sociais e econômicas. Sei do que estou falando.

 

Também sou professor da Johns Hopkins University, incluindo sua bem conhecida Escola de Saúde Pública. E posso garantir que sim, se sabe como controlar a pandemia. Sabemos, por exemplo, que não é possível haver recuperação econômica sem primeiro conter a pandemia. Nenhum país conseguiu isso.

 

Agora, o leitor perguntará: se sabemos controlar a pandemia e temos recursos para isso, por que isto não é feito? E outra pergunta que deriva da anterior é: por que os meios de comunicação não estão noticiando e os governos não estão agindo?

 

A resposta à última pergunta tem a ver com a ideologia e a cultura dominantes nesses países, o que torna difícil ir além do que o pensamento hegemônico permite considerar. Um desses obstáculos é, por exemplo, o sacrossanto “dogma da propriedade privada”, considerado fundamental para a sobrevivência da ordem social, esta última marcada por outro dogma, o das também sacrossantas “leis do mercado” como o melhor sistema de alocação de recursos. Esses dogmas regem o comportamento dos meios político-midiáticos da maioria dos grandes países dos dois lados do Atlântico Norte e desempenham um papel essencial para dificultar o controle da pandemia.

 

O maior problema que existe no controle da pandemia no mundo, hoje, é a falta de vacinas contra o coronavírus, carência que ocorre até em países considerados ricos.

 

Na verdade, o desenvolvimento da parte mais essencial na produção das vacinas de maior sucesso (Pfizer e Moderna) ocorreu com fundos públicos, em instituições públicas, em países ricos (e, muito especialmente, nos Estados Unidos e Alemanha). É o que reconhece nada menos que o presidente da Federação Internacional de Indústrias FarmacêuticasSrThomas Cueni, em um artigo publicado no New York Times, há algumas semanas:  "é verdade que, sem fundos públicos, as empresas farmacêuticas globais não teriam sido capazes de desenvolver vacinas covid-19 e de modo tão rápido”. O SrCueni poderia ter acrescentado que isso também ocorre com a maioria das grandes vacinas que vêm sendo produzidas há muitos anos.


A parte fundamental no desenvolvimento de qualquer vacina é o conhecimento básico, que costuma ser pesquisado em centros públicos ou com fundos públicos para pesquisa em saúde. A indústria farmacêutica utiliza tal conhecimento para avançar em sua dimensão aplicada, ou seja, a produção de vacinas.

 

Mas esses mesmos Estados oferecem às empresas farmacêuticas um grande presente, garantindo-lhes um monopólio na venda do produto por muitos anos.

 

Aí está a origem da falta de vacinas. Simples assim. A propriedade intelectual, garantida pelos Estados e pelas leis do comércio internacional e seus agentes, é a que cria uma escassez "artificialde vacinas, o que gera lucros astronômicos.

 

O mais lógico seria que, como propõe Dean Baker (o economista que analisou a indústria farmacêutica internacional com maior detalhe, rigor e senso crítico), os Estados ampliassem sua intervenção para incluir, além do conhecimento básico, o aplicado, produzindo eles próprios as vacinas, que ficariam muito mais baratas.

 

E o leitor questionará: por que não se faz o que parece lógico? Bem, a resposta também é fácil. Devido ao enorme poder político e midiático da indústria farmacêutica em nível nacional e internacional. Dean Baker documenta muito bem a natureza dessas conexões.

 

Na realidade, o objetivo de benefícios econômicos deveria ser limitado ou até mesmo rejeitado nas políticas públicas que têm como objetivo a saúde.

 

Essa percepção decorre do fato de que mesmo os Estados Unidos mostram claramente que a privatização da saúde, administrada por empresas com fins lucrativos (que é a situação mais comum naquele país), provocou um enorme conflito entre os objetivos empresariais e a qualidade e segurança dos serviços.

 

Os Estados Unidos são o país que mais gasta com saúde (a maior parte privada) e onde há mais pessoas insatisfeitas com o atendimento recebido. A otimização da taxa de lucro é um princípio perigoso para a saúde da população (a escassez de vacinas é um exemplo disso).

 

A linguagem que as autoridades usam é uma linguagem bélica. Estamos lutando, dizem, "em uma guerra contra o vírus".

 

É um recurso que utilizam para forçar o controle dos movimentos da população (o que me parece lógico e razoável); mas, por outro lado, continuam preservando meticulosamente os dogmas liberais da propriedade privada e as leis do mercado, dogmas deixados de lado no passado em situações reais de guerra.

 

Durante a Segunda Guerra Mundial, toda a produção industrial foi orientada para a fabricação do material de guerra necessário. Por que não fazer o mesmo agora? Caso se forçasse a fabricação em massa dessas vacinas por parte das empresas farmacêuticas em todos os países ou em grupos de países, seria possível vacinar rapidamente a população, não apenas dos países ricos, mas de todo o mundo.

 

Como era previsível, a União Europeia se opôs a isso, pois está presa aos seus dogmas, que já demonstraram estar falidos durante o período neoliberal e que, apesar de seu grande fracasso, continuam dominando os meios político-midiáticos dos dois lados do Atlântico Norte.

 

Ao menos nos Estados Unidos, a nova administração federal do governo Biden, sob pressão da comunidade científica (e das forças progressistas lideradas por Bernie Sanders), está pedindo a Lei de Produção de Defesa do país (aprovada pelo presidente Harry Truman), que obriga toda a indústria a se colocar a serviço da defesa do país para produzir o material necessário para prevenir e controlar a pandemia. A justificativa para apelar a tal lei é que o bem comum deve estar acima de todos os interesses privados, exigindo que a indústria farmacêutica anteponha o bem comum a seus interesses particulares. O mesmo se aplica a diversos produtos, como seringas especiais e outros. Vamos ver se isso acontece.

 

Seria bom se o mesmo acontecesse na Europa. Nem preciso dizer que as direitas de sempre - de Trump às direitas da Espanha (incluindo a Catalunha) - acusam aqueles que querem forçar tal produção de "sócio-comunistas".

 

Acontece em todo o mundo. Portanto, os cidadãos deveriam se mobilizar para questionar tantos dogmas que provocam tantos danos à população. Encorajo os leitores a organizar e enviar textos e cartas de protesto a tais instituições, pois se isso pode ser feito, que assim seja. O que acontece é que o dogmatismo e as crenças os impedem de enxergar.

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