segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O silêncio cúmplice do CFM

 


Texto original:

https://www.viomundo.com.br/blogdasaude/ex-presidente-critica-omissao-dos-conselhos-sobre-fake-news-divulgadas-por-medicos-acerca-de-remedios-e-medidas-contra-a-covid-a-autonomia-nao-e-absoluta-alerta-oselka.html

Gabriel Oselka, ex-presidente do CFM, critica conselhos por se calarem sobre médicos que receitam e divulgam fake news a respeito de ‘tratamento precoce’ para covid

 

25/01/2021 - 11h07

Por Conceição Lemes

 

 

Texto editado / NMM:

 

Paralela à pandemia pelo novo coronavírus, temos uma epidemia de desinformação.

Os conselhos regionais de Medicina (CRMs) e o Federal de Medicina (CFM) estão mudos, contribuindo para o alastramento de informações falsas, distorcidas, sobre a Covid-19.

Tanto que, numa carta aberta em 12 de janeiro, todos os ex-presidentes vivos do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) conclamam a entidade a se manifestar, pública e enfaticamente, a favor da ciência médica e da vacinação.

Num trecho da carta eles afirmam:

“É obrigação dos Conselhos Regionais de Medicina, prevista em lei federal, defender a saúde da população e o exercício ético da profissão.

Entretanto, não vemos qualquer pronunciamento do CREMESP sobre medidas legais e administrativas, respeitado o rito processual, a serem tomadas em relação à disseminação de notícias falsas por médicos durante a pandemia.”

Em 14 de janeiro, cinco ex-presidentes do CFM e 14 ex-conselheiros federais divulgaram uma carta aberta ao órgão máximo da categoria:

“Mas onde está o Conselho Federal de Medicina (CFM)? Onde está a entidade máxima da categoria médica no Brasil? Não sabemos a sua posição frente a essa tragédia sanitária e humana que assola o Mundo e em especial o nosso País. Só o silêncio. Parece que tudo está em paz.”

Em 15 de janeiro, todos os ex-presidentes do Conselho Regional de Medicina do Rio Janeiro (Cremerj) dos últimos 30 anos se manifestaram também em carta aberta ao órgão.

Na mesma data, médicos mineiros engrossaram o coro com nota pública ao Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRMMG) e ao CFM. Uma iniciativa do Núcleo Minas da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD).

Em 19 de janeiro, Médicos e Médicas pela Democracia da Bahia fizeram o mesmo em relação ao Cremeb.

No dia 24 de janeiro, foi a vez da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) e da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMP) publicarem carta aberta ao Conselho Federal de Medicina. Título: Sobre a conivência do CFM em relação ao “tratamento precoce” contra a Covid-19.

Gabriel Oselka, ex-presidente do CFM e signatário da carta aberta ao CREMESP, dá entrevista exclusiva ao Blog da Saúde.

“Até as vacinas fazerem efeito, vai demorar. Pedir aos conselhos que comecem a tomar uma posição baseada nas evidências científicas, a se manifestar à sociedade de forma mais ativa, é o mínimo a gente poderia fazer”, justifica.

 

Segue a íntegra da nossa entrevista.

Blog da Saúde – Há razões ideológicas para essa postura dos conselhos regionais e do CFM?

Gabriel Oselka – Eu prefiro me ater à discussão do cumprimento do Código de Ética Médica e do papel dos conselhos de medicina em relação aos médicos e à sociedade. E, aí, o que posso dizer é o seguinte: os trabalhos científicos consistentes apontam para algumas medidas básicas para enfrentamento da Covid-19: distanciamento social, uso de máscara e medidas de higiene pessoal (álcool gel e lavar as mãos, frequentemente). Com base neles e no que a Organização Mundial de Saúde (OMS) já disse, ressalto ainda: o “tratamento precoce” com base em um montão de drogas, não tem qualquer tipo de comprovação científica e algumas delas podem produzir efeitos colaterais importantes.

Nos causa espanto os conselhos não terem uma posição pública, clara, sobre essas medidas e condutas, especialmente em se tratando de uma pandemia.

É o que cobramos. Afinal, o Conselho Federal de Medicina e os conselhos regionais são órgãos de defesa não apenas dos médicos, mas da sociedade em geral.

Blog da Saúde – Há médicos divulgando informações falsas sobre remédios, o uso de máscaras, distanciamento social e, agora, as vacinas. O que significa isso?

Gabriel Oselka – Pois essa é uma das razões das nossas cartas. Aos conselhos, federal e regionais, cabe fiscalizar as condutas dos médicos e eventualmente puni-los por infração ao Código de Ética. É um papel que todos os conselhos, pela legislação brasileira, têm o dever de cumprir. Mas, o que temos visto é uma postura, no mínimo, muito tímida diante da catástrofe desta pandemia.

Blog da Saúde – Eu perguntei ao Cremesp e ao CFM o que tinham a dizer a respeito da carta aberta dos senhores. Na resposta, ambos se defendem, dizendo que fizeram várias ações no combate à pandemia.

Gabriel Oselka – Cadê o Conselho Federal de Medicina se manifestando em defesa das medidas aceitas por todo o mundo, como isolamento social, máscara, lavar as mãos e álcool gel? Cadê a posição do CFM e dos conselhos regionais se colocando claramente contra os médicos que falam contra essas medidas? Cadê o CFM e os conselhos regionais se manifestando contra os remédios que não têm  tem eficácia comprovada no tratamento e na prevenção da Covid-19? Cadê o Cremesp falando a favor das evidências científicas, como preconiza o Código de Ética Médica?

Esse é um dos silêncios que não aceitamos e cobramos.

A única vez que eu vi o CFM se manifestar a respeito desses remédios foi no início da pandemia, no sentido de valorizá-los.

Blog da Saúde – Em 23 de abril de 2020, o CFM autorizou a cloroquina e a hidroxicloroquina na covid-19. Na ocasião, o presidente do CFM disse que não se tratava de uma recomendação da entidade, mas de uma autorização. Como é possível esta mágica?

Gabriel Oselka – É melhor você perguntar a ele, talvez ele te dê alguma explicação.

O pior foi depois. À medida que foi ficando mais e mais claro que esses remédios não tinham qualquer valor no tratamento da Covid-19, não houve nenhuma manifestação do Conselho Federal de Medicina em relação a isso.

Blog da Saúde – Até hoje o CFM não reviu a posição.

Gabriel Oselka – Omissão flagrante.

Blog da Saúde — A propósito, é atribuição do CFM autorizar o uso de uma droga?

Gabriel Oseka — Não. Autorização de uso de uma nova droga é prerrogativa da Anvisa.

Blog da Saúde – O que os senhores querem dizer com as cartas?

Gabriel Oselka – Apenas o seguinte: Nós médicos, com a nossa responsabilidade social, queremos que nossos órgãos representativos tenham uma posição clara em relação às medidas de saúde pública nessa pandemia.

Pedir aos conselhos que tomem uma posição clara, pública, é o mínimo que a gente poderia fazer.

As coisas estão se agravando rapidamente. Até as vacinas fazerem efeito, vai demorar. Tudo indica que vamos ter um grande aumento no número de casos por um bom tempo. É vital, portanto, que os conselhos comecem a se manifestar mais ativamente.

Blog da Saúde – Foi difícil construir essas cartas?

Gabriel Oselka – Não.

Blog da Saúde – Como foi o processo?

Gabriel Oselka – A iniciativa foi de um dos nossos ex-presidentes.

Em horas, consultamos os que estão vivos e todos concordaram em assinar sem nenhuma hesitação.  Assim que saiu a carta do Conselho Regional de São Paulo, nós achamos importante encaminhá-la a outros médicos, entre os quais alguns ex-companheiros de CFM. Foram eles que tomaram a iniciativa de fazer a carta ao CFM.

Mal sabíamos que no dia seguinte à carta ao Cremesp iria explodir a calamitosa e criminosa crise da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus.

Com as cartas, o nosso objetivo é falar com os médicos. Mas nós queremos também que a mensagem delas chegue à sociedade.

Blog da Saúde – Na carta ao Cremesp, é dito que “a autonomia do médico não é ilimitada”. Os médicos têm autonomia absoluta para as prescrições?

Gabriel Oselka — Autonomia de prescrição do médico vai até um limite. Eventualmente, eu posso prescrever um remédio para uma dada situação que não é exatamente uma que consta na bula. É o que chamamos de  off label. A própria Anvisa autoriza. Mas, para isso, tem que haver alguma consistência científica. O próprio Código de Ética Médica subordina a autonomia profissional a procedimentos cientificamente reconhecidos.

Blog da Saúde – Até onde vai a autonomia do médico?

Gabriel Oselka — A autonomia termina onde existe uma justificativa científica para o médico não adotar determinado medicamento. No caso em questão, o conhecimento científico aponta no sentido oposto: não existe indicação para uso da cloroquina e hidroxicloroquina na Covid-19 e esses remédios podem ser prejudiciais.

Blog da Saúde – A intenção é que os conselhos punam esses médicos?

Gabriel Oselka – Não se trata disso. O que esperamos é que os conselhos digam francamente para a sociedade que o peso da evidência científica é no sentido de não usar esses remédios para Covid-19.

Blog da Saúde – Mas há médicos dizendo, por exemplo, que as vacinas contra Covid-19 entram no código genético da pessoa, mudando o seu DNA. O presidente da República chegou a dizer que elas teriam um chip e poderia transformar as pessoas em jacaré…

Gabriel Oselka – Essa é uma das fake news criminosas que circulam nas redes sociais. A meu ver, o médico que divulga isso deveria ser alvo de processo pelo Conselho Federal de Medicina.

Blog da Saúde – Por quê?

Gabriel Oselka – A divulgação de informações falsas é um crime contra a saúde pública, pois leva cidadãos a se infectar, adoecer e transmitir o vírus.

Por isso, os conselhos deveriam vir a público e condenar essas fake news criminosas.

A autonomia plena do médico, portanto, não me parece adequada. Ela tem que ser limitada em defesa dos pacientes e da sociedade. Pela legislação brasileira, quem deve colocar esse limite são os conselhos de medicina. Mas isso, me parece, os conselhos não estão fazendo.

Blog da Saúde – Ao divulgar informações falsas, esses médicos estão contribuindo para o agravamento da pandemia?

Gabriel Oselka – Decididamente, sim.

Blog da Saúde – Ao serem omissos, o CFM e o conselhos regionais estão deixando de cumprir o Código de Ética Médica nessa pandemia?

Gabriel Osleka –  É obrigação do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Medicina, prevista em lei federal, defender a saúde da população e o exercício ético da profissão. O que nós queremos é que médicos respeitem as condutas que o Código de Ética Médica exige.

O momento é crucial: sem a total adesão dos médicos, da população e das autoridades, dificilmente iremos conter a pandemia.

Blog da Saúde – Mas o senhor não respondeu. Ao serem omissos, o CFM e o conselhos regionais estão deixando de cumprir o Código de Ética Médica nessa pandemia?

Gabriel Oselka – Deixo para você mesma responder. Seguramente, tem condições plenas de fazê-lo.

PS de Conceição Lemes: Infelizmente, a resposta é sim. Em mais de 30 anos fazendo jornalismo na área de Saúde/Medicina nunca imaginei testemunhar essa tamanha omissão dos conselhos de medicina em nível nacional.

Parece que se esqueceram que têm por obrigação legal defender a saúde da população e o exercício ético da profissão.

 

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Comentário de Nelson M. Mendes:

O médico Gabriel Oselka não quis responder se a omissão do CFM em relação ao comportamento de médicos que divulgam fake news sobre a Covid-19 e prescrevem medicamentos inúteis, como a cloroquina, configurava um caso de descumprimento do Código de Ética Médica. No começo da entrevista, também não quis responder se haveria algum viés ideológico por trás da omissão. Mas nós podemos responder: a complacência do CFM e dos conselhos regionais fere, sim, não apenas a ética médica; mas a decência e todos os valores humanistas. É criminosa. E o motivo do crime é, como de costume nesses casos, indissoluvelmente ideológico e pecuniário: o CFM (como a maioria das nossas instituições) está alinhado com as forças políticas de direita... que, segundo acredita, representam os interesses da classe médica.

O médico típico (claro que há exceções – conheci e conheço pessoalmente algumas) é politicamente conservador e vê a medicina não no sentido de uma missão, um sacerdócio; mas como instrumento de ascensão socioeconômica.

O saudoso jornal “Pasquim” tinha uma coluna, intitulada “A Máfia de Branco”, em que costumava noticiar e comentar arbitrariedades ou crimes cometidos pelos médicos e instituições da área de saúde.

O alinhamento ideológico do CFM ficou claríssimo na reação ao programa “Mais Médicos”, lançado pelo governo Dilma (PT):

“O [...] Ministério da Saúde [...] , ao promover a vinda de médicos cubanos sem a devida revalidação de seus diplomas [...] coloca em risco a saúde dos brasileiros, especialmente os moradores das áreas mais pobres e distantes [...] serão envidados esforços, inclusive as medidas jurídicas cabíveis, para assegurar o Estado Democrático de Direito no país, com base na dignidade humana.”

Quando o CFM enfiou, no seu pronunciamento, a expressão “Estado Democrático de Direito”, ele obviamente estava fazendo crítica implícita ao regime cubano, supostamente, segundo a narrativa midiática monopolista, uma ditadura sanguinária.

O CFM jamais esteve preocupado com “Estado Democrático de Direito”, com “dignidade humana” e, muito menos, com “os moradores das áreas mais pobres e distantes”. O que ele sempre fez, historicamente, foi praticar feroz corporativismo. Jamais se interessou pelos exemplos diários de desrespeito à dignidade humana, não apenas no serviço público, mas na medicina privada. Apenas quando o odiado governo petista resolveu trazer os respeitadíssimos médicos cubanos para prestar serviço naqueles distantes rincões, desprezados pelos mauricinhos de branco, foi que o CFM achou por bem se manifestar com sua retórica demagógica e hipócrita.

Alguns especialistas disseram que o grande pânico do CFM era que o “Mais Médicos” fosse um sucesso estrondoso – maior ainda do que foi enquanto durou. Porque isso mostraria mais uma vez que é possível a medicina pública, gratuita e de qualidade. Quão odiado não é por tal motivo o SUS, um sistema ao que parece sem equivalente no mundo?

Hoje, neste 2021 que caminha para ser o segundo ano de pandemia, o CFM nada diz a respeito de médicos que divulgam fake news sobre a Covid-19 e sobre a vacina, ao mesmo tempo em que insistem em receitar medicamentos inúteis (e perigosos) para o tratamento da doença – como cloroquina, ivermectina, etc.  E por que o CFM age assim? Mais uma vez, por um motivo ideológico/pecuniário: o CFM, no fundo (e na superfície!) está alinhado com o governo de extrema-direita que o capital transnacional construiu para o Brasil. Bolsonaro não é o fantoche bonitinho e cheiroso que a direita queria; mas era o disponível. Qualquer coisa era melhor do que a vitória do PT. Uma vez eleito o candidato impensável, cabia à grande mídia e às instituições (CFM entre elas) apoiá-lo; como se diz, “passar pano” para os absurdos cometidos na cadeira da presidência, que já valeram mais de 60 pedidos de impeachment. O CFM não iria se manifestar contra médicos que divulgam fake news e receitam fake medicamentos; porque o governo Bolsonaro sempre flutuou num mar de fake news e é, criminosamente, entusiasta do “tratamento preventivo” da Covid-19 com remédios comprovadamente ineficazes e que podem trazer graves efeitos colaterais – incluindo o óbito.


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