domingo, 28 de março de 2021

O gato de Dafne

 



Nelson M. Mendes

O mundo está mudando.

A frase é banal, e certamente foi pronunciada nos mais variados contextos históricos. Vivemos um desses momentos.

O mundo mudou quando o homem descobriu o fogo; quando inventou a roda; quando passou a fazer cultivos e a criar animais; quando inventou a escrita; quando estabeleceu os primeiros regimes de governo; quando passou pela Revolução Industrial; quando ultrapassou a Revolução Industrial e entrou na atual espiral ascendente de informação e tecnologia.

Uma coisa não mudou muito: a motivação humana. Trata-se do que chamei de “egoísmo basal”.

O Capitalismo, cuja expressão doutrinária atual é a fraude chamada Neoliberalismo, é a manifestação institucional desse egoísmo. Não custa repetir: os manuais do Neoliberalismo estimulam os operadores econômicos a usar seu “animal spirit” (espírito animal); e o lema de Wall Street é “Greed is good” (A cobiça é boa).

Leonardo Attuch, o capitão Kirk da nave 247, ao falar dos novos ventos que, neste 2021, sopram no Brasil e no mundo, trazendo os perfumes da democracia, da justiça e da verdade, pergunta, com um sorriso de cético esperançoso, se não estaríamos entrando num período como a mítica “Era de Aquário”.

Os estudiosos divergem sobre isso: alguns acham que já há vários anos estamos na Era de Aquário; outros, que ainda não entramos nela. Há ainda aqueles, obviamente, para quem “Era de Aquário” é apenas um nome poético para expressar o eterno sonho humano com a utopia.

De qualquer modo, acreditava-se que a Era de Aquário seria apenas um parêntese de luz na trevosa Kali Yuga dos hindus, prevista para durar 432 mil anos, dos quais teríamos percorrido pouco mais de 5100. Entretanto, o sábio Sri Yukteswar esclarece que esses números estão totalmente equivocados: Kali Yuga (que dura apenas 1200 anos) já ficou para trás; estamos há mais de 300 anos na algo mais auspiciosa Dwapara Yuga.

Deus sabe o que faz.

Essa é outra frase banal, e que irrita aqueles que não aceitam que a responsabilidade do homem por seus atos seja terceirizada. Trata-se de uma – com licença da palava – santa irritação. Não é preciso falar de tudo o que se fez e faz em nome da religião.

Tudo é uma questão de contexto, de perspectiva, de quem diz o quê. A mesma frase tem um sentido profundo na boca de um sábio. O papel do ativista político e do empreendedor social é afastar Deus da cena e focar na luta de classes, combater preconceitos de qualquer ordem, condenar o uso das instituições em favor da perpetuação das injustiças sociais. O papel do sábio é dar razão ao ativista e ao emprendedor, mas lembrar que eles podem não estar vendo a floresta por causa das árvores.

A nave 247, depois de atravessar céus turbulentos e sombrios, parece agora encontrar atmosfera progressivamente mais tranquila e límpida. Quando o capitão Attuch olha pela janelinha, ele vê a restauração da democracia na América Latina, o declínio do nefasto império estadunidense, a aproximação de China e Rússia em prol da construção de um mundo multipolar, a comprovação de que a presidente Dilma sofreu um golpe, assim como a de que o ex-presidente Lula foi vítima da maior fraude judicial da História. E vê também que o pior governo da história do Brasil parece estar por um fio.

A nave, ao contrário de outras muito mais poderosas e que vêm de longas jornadas, é tripulada por pessoas de verdade. A palavra ‘verdade’, aqui, é o diferencial.

A chamada mídia corporativa, ou hegemônica, é a voz do poder econômico transnacional; a voz daquela minoria para quem o capital está acima do homem; para quem o importante não é salvar vidas, mas garantir os lucros. Os principais colunistas dessa mídia monopolista são pagos para mentir em favor do poder econômico; são os “mercenários da plutocracia”, na definição do prêmio Nobel de economia Paul Krugman.

A mídia alternativa, ou contra-hegemônica, trabalha exatamente na defesa da verdade e da justiça; trabalha pelo todo da sociedade, em suma.

(Foi bebendo nessas fontes independentes que este modesto articulista amador pôde escrever, já em 2017 – muito antes da Vaza a Jato, portanto,  – o ensaio “O lawfare que fere Lula”.)

A tripulação da nave 247 é composta de pessoas que conhecem a empatia e sonham com a justiça, o bem comum. E os passageiros são em sua imensa maioria do mesmo quilate. Satyagraha  (apreço pela verdade) manifesta-se não apenas no modo como as notícias são dadas e analisadas (“informação é prata / conhecimento é ouro”, diz a música de abertura da TV 247), como na amistosa informalidade que prevalece nas transmissões. Não há bonecos eletrônicos, não há fantoches leitores de teleprompter. Ora é o Paulo Moreira Leite que se ausenta para pegar alguma coisa, deixando vazia a cadeira, ora é a Tereza Cruvinel que deixa cair o celular, fazendo a imagem dar cambalhotas, ora é o gato de Dafne que se desloca no fundo da cena.

A Dafne da mitologia recusou o amor do melhor partido do Olimpo: Apolo. Preferia correr livremente pelas florestas. Queria independência.

Dafne Ashton, tripulante da nave 247, obviamente prefere circular pelos céus do livre-pensamento, a encarcerar-se em gaiolas onde seria obrigada a piar conforme a voz do dono.

A ninfa 247, como a homônima mitológica, transformou-se em árvore para fugir ao assédio; mas uma árvore pródiga, que nos brinda com os frutos da verdade, da justiça e da esperança.


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