sexta-feira, 16 de abril de 2021

As vísceras da Lava a Jato, segundo o Le Monde

 


Texto original:

https://www.brasil247.com/midia/leia-a-integra-da-reportagem-que-demonstra-como-moro-quebrou-o-brasil-e-trabalhou-para-os-estados-unidos

Reportagem do Le Monde revela como o ex-juiz Sergio Moro, condenado pelo Supremo Tribunal Federal por parcialidade, trabalhou para empobrecer o Brasil

 

11 de abril de 2021, 10:48 h 

 

 

Texto editado / NMM:

 



O Brasil é atingido por uma espécie de tempestade perfeita: recessão econômica, desastres ambientais, polarização extrema da vida política, Covid-19... A isso deve ser adicionado o naufrágio do sistema judicial.

 Há sete anos, um jovem magistrado chamado Sergio Moro lançou, em 17 de março de 2014, uma vasta operação anticorrupção chamada “Lava a Jato”. De uma só tacada, iam limpar e salvar o Brasil, finalmente! Foram emitidos 1.450 mandados de prisão, apresentadas 533 denúncias e 174 pessoas foram condenadas.

 E então, no início de fevereiro, o Ministério Público Federal deixou estourar o anúncio do fim da “Lava a Jato”. Em seguida, um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou a anulação das acusações contra Lula. Quinze dias depois, em 23 de março, foi a vez da mais alta corte brasileira decidir que o juiz Moro foi “tendencioso” durante sua investigação.

 A maior investigação anticorrupção do mundo, como a chamou um magistrado sênior, tornou-se o maior escândalo jurídico da história do país.

 O site de notícias The Intercept, nos últimos dois anos, revelou as  mensagens comprometedoras trocadas entre promotores e o juiz Moro, os vínculos ilegais mantidos por investigadores brasileiros com agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ), e sublinhou a obsessão de alguns integrantes da “Lava a Jato” em bloquear o Partido dos Trabalhadores (PT).

 A independente Agência Publica, agência de jornalismo investigativo, também mostrou como o processo foi marcado por irregularidades e inúmeras confusões.

Para compreender essas voltas e reviravoltas sucessivas, temos que voltar às origens desta novela político-jurídica.

Meses de investigação, entrevistas e pesquisas foram necessários para que o Le Monde desenhasse o outro lado dessa cena. Alguns episódios da Lava a Jato evidenciam cumplicidades vergonhosas. Outros revelam como certos juízes e investigadores têm por vezes aproveitado a sua independência a serviço de um projeto político. “Foi como uma bola atirada em um jogo de boliche”, admite um ex-assessor próximo ao governo Obama, responsável por questões jurídicas em relação à América do Sul. Um “jogo” que virou armadilha.

Quando assumiu a Presidência da República em 2003, Lula sabia que era esperado combate à corrupção, antigo demônio da vida política brasileira. Assim, confiou ao seu novo ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, a tarefa de reformar o sistema judiciário, aceitando a nomeação como chefe de um procurador nomeado pelos seus pares, enquanto os seus antecessores costumavam escolher quem fosse mais complacente com o poder.

Uma das primeiras traduções concretas desse compromisso é a criação de cursos dedicados ao combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. Sergio Moro seria um dos primeiros juízes indicados para presidir esses tribunais. Ao mesmo tempo, uma estratégia nacional de luta contra a lavagem de dinheiro e a corrupção foi posta em prática com o objetivo assumido de “facilitar as trocas informais” dentro da administração, e tornar mais eficiente o exame dos casos. 

O jovem magistrado radicado em Curitiba está entre os mais fervorosos adeptos dessa estratégia, que permite obter com mais rapidez informações e compartilhá-las com várias autoridades, inclusive estrangeiras.

É verdade que, no mundo da cooperação judiciária internacional, a luta contra a corrupção, a lavagem de dinheiro e o terrorismo ocupa um lugar especial. Após os ataques de 11 de setembro, os Estados Unidos estavam procurando por todos os meios neutralizar ataques futuros, em particular visando as redes financeiras dessas organizações. Porém, no Brasil, a inteligência americana estava preocupada com a presença, na tríplice fronteira entre Argentina, Paraguai e Brasil, de possíveis células do Hezbollah, entidade apoiada pelo Irã e colocada por muito tempo na lista negra americana.

O governo Bush busca então aumentar a ação contraterrorista de Brasília que, na época, polidamente se recusa a fazê-lo. Para contornar a frieza das autoridades brasileiras – que consideram que o risco terrorista é deliberadamente exagerado pelos Estados Unidos – a embaixada americana em Brasília estava tentando criar uma rede de especialistas locais, capazes de defender as posições americanas “sem parecer peões” de Washington, para usar a frase do embaixador Clifford Sobel em um telegrama diplomático americano que o Le Monde pôde consultar.

Sergio Moro, que estava então colaborando ativamente com as autoridades americanas no caso Banestado, é então abordado para participar de um programa de relacionamento financiado pelo Departamento de Estado. Ele aceita. Foi organizada então uma viagem aos Estados Unidos em 2007, durante a qual fez uma série de contatos dentro do FBI, do DoJ e do Departamento de Estado, ou seja, relações exteriores.

Em dois anos, a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília formou uma rede de magistrados e advogados convencidos da relevância do uso das técnicas americanas.

A Embaixada dos Estados Unidos, no desejo de estruturar uma rede alinhada às suas orientações no meio jurídico brasileiro, cria nela o cargo de assessor jurídico ou assessor jurídico residente. A escolha recaiu sobre Karine Moreno-Taxman, procuradora especializada na luta contra a lavagem de dinheiro e o terrorismo.

Desde 2008, esta especialista desenvolve um programa denominado “Projeto Pontes” que, a fim de apoiar as necessidades das autoridades judiciárias brasileiras, organiza cursos de formação que lhes permitem se apropriar dos métodos de trabalho americanos (grupos de trabalho anticorrupção), a sua doutrina jurídica (as delações premiadas, em particular), bem como a sua vontade de partilhar informação de forma “informal”, isto é, fora dos tratados bilaterais de cooperação judiciária.

A embaixada passa então a aumentar o número de seminários e reuniões com juízes, promotores e altos funcionários especializados, com foco nos aspectos operacionais da luta contra a corrupção. Sergio Moro participa como palestrante. No espaço de dois anos, o trabalho de Karine Moreno-Taxman dá frutos: a embaixada constitui uma rede de magistrados e advogados convencidos da relevância do uso das técnicas americanas.

Em novembro de 2009, o assessor jurídico da embaixada é convidado a falar na conferência anual de policiais federais brasileiros, onde cerca de 500 profissionais da manutenção da ordem, da segurança e do direito são convidados a debater o tema “luta contra a impunidade”.

Sergio Moro abre os debates, pouco antes de passar a palavra ao deputado norte-americano. O juiz de Curitiba ataca desordenadamente os crimes do colarinho branco, a ineficiência e as falhas de uma justiça brasileira doente, segundo ele, de um sistema de “recursos infinitos” muito favorável aos advogados de defesa. Ele defende a reforma do Código Penal, destacando que as discussões nessa direção estão ocorrendo paralelamente no Congresso de Brasília. Aplausos na sala.

Na frente da platéia, a senhora Moreno-Taxman está sentada. Ela fala em um tom muito menos seco e sério do que seu antecessor, mas tão direto quanto: “Em um caso de corrupção” – ela diz – “você tem que correr atrás do ‘rei’ de uma maneira sistemática e constante para derrubá-lo”. E é mais explícita: “Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é necessário que o povo odeie essa pessoa”. Mais uma vez, aplausos do público.

O nome do presidente Lula, enredado no escândalo do “Mensalão”, caso de suborno e compra de votos no Congresso, revelado em 2005, não é citado em nenhum momento. Mesmo que ele esteja presente na mente de todos, ninguém imagina então que este se tornará o “rei” designado pela senhora Moreno-Taxman. No entanto, é isso que vai acontecer.

Por enquanto, o governo petista não vê nada chegando. O partido prefere apresentar um projeto de lei anticorrupção. Espera, assim, cumprir, em particular, os padrões da OCDE, onde o grupo de trabalho contra a corrupção, fortemente influenciado pelos Estados Unidos, está pressionando o Brasil a reformar sua legislação nessa área.

Sergio Moro, por sua vez, se posiciona publicamente no sentido de endurecer as penas previstas no projeto de lei e garantir a adoção das confissões premiadas como instrumento jurídico válido. Usa métodos arbitrários – usurpação das prerrogativas do Ministério Público, instrução de ordens preventivas de prisão apesar da oposição de autoridades superiores, escuta telefônica de advogados ou personalidades com imunidade parlamentar – e com isso desperta a desconfiança de alguns dos magistrados.

Rosa Weber, recém-eleita juíza do STF e especialista em direito do trabalho, pretendia ter um perito em direito penal que a pudesse apoiar no julgamento final do “Mensalão”.  Sergio Moro, no início de 2012, é nomeado seu desembargador assistente, e escreverá em parte a polêmica decisão da juíza neste caso. O texto explica que “os crimes ligados ao poder são por natureza, tendo em vista a posição de seus autores, difíceis de comprovar por meio de provas diretas”, o que justifica “a maior elasticidade na aceitação de provas por parte da acusação”. Um precedente que será levado ao pé da letra pelo juiz e pelos promotores da Lava a Jato à época da denúncia e condenação de Lula.

 

[Entretanto, Moro fez muito mais do que mostrar-se elástico na aceitação de provas contra Lula: rejeitou provas robustas de sua inocência, preferindo valorizar depoimentos de réus que sabiam que acusações contra o ex-presidente poderiam significar a diminuição de suas penas ou até mesmo a liberdade.]

O processo foi iniciado em 2013. Os parlamentares brasileiros, que debatem o projeto de lei anticorrupção há três anos, decidiram votar em meados de abril. Para ficarem bem em relação ao grupo de trabalho da OCDE, eles incluem a maioria dos mecanismos previstos em uma lei americana, que está começando a ser falada no meio empresarial: a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA).

Criada em 1977 a partir de Watergate, o objetivo principal dessa lei era combater atos de corrupção de empresas americanas no exterior, impondo-lhes sanções financeiras. Até o final da Guerra Fria, isso raramente era aplicado. Tudo mudou na década de 1990. O governo Clinton começou a reformar a FCPA, o que iria acompanhar a adoção de uma convenção anticorrupção dentro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a fim de “multilateralizar os efeitos”, de acordo com um telegrama da embaixada americana.

 A lei estabelece que qualquer empresa que tenha qualquer ligação com os Estados Unidos pode ser objeto de uma acusação.

Na verdade, praticamente todas as empresas ao redor do mundo estão expostas à lei, incluindo aquelas que competem com empresas dos Estados Unidos por grandes contratos, como venda de armas e equipamentos, construção e serviços financeiros. Esse desenvolvimento levará a um aumento das penalidades vinculadas à implementação da FCPA: de alguns milhões de dólares na década de 1990, passamos a vários bilhões na década de 2010. E, neste contexto, a América Latina em geral e o Brasil em particular será de interesse para os promotores do DoJ, os quais sabem que a próxima implementação da lei anticorrupção brasileira lhes permitirá aplicar sanções às empresas brasileiras nos termos da lei FCPA. Em novembro de 2013, por ocasião da Conferência da FCPA, o encontro anual de personalidades do mundo jurídico americano, o procurador-geral adjunto do DoJ, James Cole, anunciou que o chefe da unidade da FCPA dos Estados Unidos faria uma viagem ao Brasil na esteira, com o objetivo de "treinar promotores brasileiros" no uso da lei.

 Poucos meses antes, Sergio Moro retomou um antigo caso de lavagem de dinheiro, ligado ao “Mensalão”. O juiz curitibano está interessado nos investimentos dos empresários Carlos Chatner e Alberto Youssef na empresa Dunel Indústria, feitos por meio das contas bancárias de um posto de gasolina chamado “Posto da Torre”, em Brasília. A pedido de Moro, Chater é grampeado de julho a dezembro de 2013: trata-se de saber se esses investimentos servem para mascarar lavagem de dinheiro em favor de José Janene, membro do Partido Progressista (partido de direita).

É fazendo a ligação entre a Dunel Indústria, com sede no Paraná, e o posto de abastecimento, em Brasília, que Sergio Moro afirma sua competência para julgar o caso. Entretanto, de acordo com o processo penal brasileiro, ele deveria ficar a cargo de um juiz de São Paulo, onde ocorreu a maior parte dos atos de lavagem de dinheiro.  Os tribunais superiores, porém, avalizariam a manobra de Sergio Moro.

A partir de agosto de 2013, alguns juristas viram o perigo decorrente da implementação da nova lei anticorrupção. Uma nota premonitória, publicada pelo escritório de advocacia americano Jones Day, prevê que terá efeitos deletérios para a justiça brasileira. Alerta contra seu funcionamento “imprevisível e contraditório” devido ao seu caráter de “influência” no plano político, bem como a ausência de procedimentos de “aprovação ou controle” . Segundo o documento, “cada membro do Ministério Público é livre para iniciar o processo segundo as suas próprias convicções, com reduzida possibilidade de ser prevenido por uma autoridade superior” .

Apesar dos alertas, o governo e seus aliados seguem em frente. A presidente Dilma Rousseff, sempre nessa vontade de acariciar uma opinião pública cada vez mais crítica, decide até endurecer seus critérios de aplicabilidade. Os parlamentares acreditam que esta lei não os afetará mais do que as anteriores.

Em 29 de janeiro de 2014, a lei anticorrupção entra em vigor. No dia 17 de março, o grupo de trabalho “Lava a Jato” é formalmente criado pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot. O procurador Pedro Soares, nomeado para chefiar a operação, se opõe a que Sérgio Moro receba o tratamento do caso, uma vez que os supostos crimes de Alberto Youssef ocorreram fora de Curitiba. Sua abordagem falhará. Ele será substituído por outro procurador, Deltan Dallagnol, 34, que não só será favorável a Moro no caso, mas também se tornará o principal sustentáculo do magistrado.

Para os Estados Unidos, trata-se de reduzir a influência geopolítica do Brasil na América Latina, mas também na África

Desde o nascimento, a Lava Jato atrai a atenção da mídia. A orquestração das prisões e o ritmo das acusações do Ministério Público e de Moro transformam a operação em uma verdadeira novela política e judicial.

Ao mesmo tempo, o governo de Barack Obama viu um aumento nos protestos de países aliados contra sanções impostas pelo DoJ, no âmbito do combate à corrupção.  Para sinalizar seu apoio político às ações anticorrupção empreendidas por seu governo, a Casa Branca publicou uma “agenda anticorrupção global” em setembro de 2014. 

Lá está escrito que a luta contra a corrupção no exterior (por meio da FCPA) pode ser usado para fins de política externa, a fim de defender os interesses de segurança nacional. Um mês depois, Leslie Caldwell, então procurador-geral adjunto do DoJ, faz um discurso na Duke University: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que prestamos à comunidade internacional, mas sim uma ação de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses de segurança nacional e a capacidade de nossas empresas americanas de competir no futuro”.

No terreno sul-americano, as gigantes brasileiras da construção Odebrecht, OAS ou Camargo Correa, em plena expansão, entraram diretamente na linha de fogo das autoridades norte-americanas.

Thomas Shannon, embaixador americano no Brasil de 2010 a 2013, declarou, diante de diversos jornalistas integrantes do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), que o projeto político brasileiro para a integração econômica da América do Sul suscitava sérias preocupações no Departamento de Estado; o qual “considerou o desenvolvimento da Odebrecht parte do projeto de poder do PT e da esquerda latino-americana”. Um ex-membro do DoJ, encarregado de casos latino-americanos, reconhece: “Tínhamos trabalho a fazer para remediar a situação.” A tarefa será ainda mais difícil a partir das revelações de Edward Snowden, em agosto de 2013, sobre a espionagem da Agência de Segurança Nacional Americana (NSA) contra a presidente Dilma Roussef e a Petrobras.

Para mostrar boa vontade às autoridades americanas, os investigadores brasileiros organizam a visita confidencial a Curitiba, em 6 de outubro de 2015, de dezessete membros do DoJ, do FBI e do Ministério da Segurança Interna, que têm acesso a advogados de empresários potencialmente chamados a “colaborar” com a justiça americana, sem que o Poder Executivo brasileiro seja informado. Mas isso tem um preço: cada uma das multas impostas às empresas brasileiras pela FCPA terá que incluir uma parcela destinada a Brasília, mas também à operação “Lava Jato”. Os americanos aceitam. Com o negócio fechado, os promotores brasileiros irão pescar empresas que possam estar sob o controle do DoJ.

“Os policiais devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, já que os casos de corrupção internacional podem ter efeitos importantes que influenciam as eleições e as economias”, disse um funcionário do FBI.

Enquanto sua maioria parlamentar derrete, a presidente Dilma Rousseff decide convidar seu mentor, Lula, para participar do governo. Ao mesmo tempo, membros da Polícia Federal, por ordem dos promotores, grampearam – fora de qualquer marco legal – os telefones dos advogados de Lula (vinte e cinco defensores no total), e até mesmo do próprio presidente. Sergio Moro vai, assim, monitorar uma conversa entre este e Dilma Rousseff. Uma troca de palavras enigmáticas sobre o futuro de Lula, que o magistrado envia prontamente à Rede Globo e que selará a demissão da presidenta poucos meses depois.

Durante este período conturbado, os promotores do DoJ estão monitorando de perto a situação política no Brasil. De acordo com Leslie Backshies, então chefe da unidade internacional do FBI, que desde 2014 tem a tarefa de ajudar os investigadores de Lava Jato, “os oficiais devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, porque os casos de corrupção internacional podem ter grandes efeitos que influenciam as eleições e as economias”. O especialista esclarece: “Além de conversas regulares de negócios, os supervisores do FBI se reúnem com os advogados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ) trimestralmente para analisar possíveis ações judiciais e possíveis consequências”.

É, portanto, com pleno conhecimento dos fatos que  os advogados do DoJ encerram sua denúncia contra a Odebrecht nos Estados Unidos. Para fazer com que os líderes da Odebrecht assinassem acordo  de “colaboração”, os magistrados a pressionam através do Citibank, responsável pelas contas da subsidiária americana da empresa.

A Odebrecht concorda em "colaborar", o que permite aos promotores de Curitiba, embora não tenham competência normativa para julgar atos de corrupção ocorridos fora do Brasil, para obter as confissões premiadas dos executivos da empresa. Confissões que irão posteriormente enriquecer a acusação do DoJ sob a FCPA.

O comunicado foi divulgado na véspera das festas de fim de ano de 2016. A Operação Lava Jato está na capa da mídia internacional. Sergio Moro é convidado para a lista das cem personalidades mais influentes da revista Time. O semanário New York Americas Quarterly dedica sua capa a ele. Por sua vez, os promotores do DoJ acolhem publicamente essa cooperação sem precedentes. Em conferência realizada nas instalações do Atlantic Council, em Washington, Kenneth Blanco, então procurador-geral adjunto do DoJ, declarou que “Brasil e Estados Unidos trabalharam juntos para obter provas e construir negócios” . E diz: “É difícil imaginar uma cooperação tão intensa na história recente como a que ocorreu entre o DoJ e o Ministério Público brasileiro”.

Moro e sua equipe começam 2017 com confiança. Não que tenham obtido provas contundentes contra Lula – suas conversas privadas via Telegram provam o contrário –, mas sim porque sua influência política e midiática é tal que eles vão tirar vantagem, às vezes desafiando a maioria dos princípios.

Lula foi condenado por “corrupção passiva e lavagem de dinheiro” em 12 de julho de 2017, com base em “fatos indeterminados”. O argumento é explicitamente declarado no documento de 238 páginas detalhando a decisão do Sr. Moro. Nos anexos à condenação, o magistrado esclarece que “nunca afirmou que os valores obtidos pela empresa OAS com os contratos com a Petrobras foram usados para pagar vantagens indevidas ao ex-presidente”.

 Outra estranheza: a prisão do ex-presidente Lula. O artigo 5 da Constituição brasileira diz que nenhum litigante pode ser preso antes do final do processo. No entanto, sob a intensa pressão da opinião pública conquistada pela operação Lava a Jato, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência na matéria, em 2016.

O pedido de habeas corpus dos advogados de Lula é rejeitado por seis votos contra cinco na sequência de um tweet de o comandante do Exército ameaçando a Suprema Corte de ter de “assumir suas responsabilidades institucionais” no caso de esta decidir a favor do ex-presidente.

Poucas horas após a decisão dos juízes, Sergio Moro emite seu mandado de prisão: Lula é preso no dia 7 de abril. Ele não poderá participar da eleição presidencial de 2018. Jair Bolsonaro vence a eleição presidencial e nomeia Moro chefe do Ministério da Justiça. Do lado americano, nos congratulamos por ter minado os sistemas de corrupção implantados pela Petrobras e pela Odebrecht, bem como suas capacidades de influência e projeção político-econômica na América Latina.

Para os procuradores de Curitiba, o DoJ planejou reembolsar 80% de todas as multas impostas ao grupo petrolífero pela FCPA, que eles podem administrar como entenderem. Uma fundação de direito privado deve ser criada para administrar 50% desse maná. Os membros da diretoria dessa fundação são nada menos que os próprios promotores da Lava Jato e vários líderes de ONGs, inclusive da seção brasileira da Transparência Internacional. Dois procuradores da equipe, o senhor Dallagnol e Roberson Pozzobon, chegam a pensar em criar uma estrutura jurídica em nome de seus respectivos cônjuges, a fim de cobrar por serviços de consultoria na área de “anticorrupção”.

Eleito Bolsonaro, a imprensa internacional não demora a se distanciar do “vigilante de Curitiba”. Vem sublinhar a sua inconsistência ética ao aliar-se, assim, a um presidente de extrema direita, membro, há décadas, de uma pequena formação especialmente conhecida por ter estado envolvida em inúmeros casos de corrupção. 

Por sua vez, os juízes do STF não escondem o espanto ao tomarem conhecimento, em março de 2019, do conteúdo do acordo negociado em segredo entre os promotores de Lava Jato  e seus congêneres do DoJ. O juiz Alexandre de Moraes decidirá suspender a criação da fundação da Lava Jato e colocará em liquidação as centenas de milhões de dólares em multas pagas pela Petrobras.

É neste contexto que a primeira revelação de The Intercept estoura. Em maio de 2019, o Sr. Greenwald recebeu de um denunciante, Walter Delgatti, 43,8 gigabytes de dados de conversas privadas, via Telegram, da equipe Lava a Jato. Após verificação, três artigos são publicados em um domingo de junho. Moro e os promotores não reconhecem a veracidade das trocas. Eles afirmam não ter cometido ilegalidade, embora se recusem a entregar seus telefones para exame.

Várias semanas depois, quando o Sr. Greenwald decide oferecer acesso aos dados a vários meios de comunicação, ficamos sabendo de um comunicado à imprensa do governo que Sergio Moro foi aos Estados Unidos de 15 a 19 de julho. Pouco tempo depois,  o Sr. Delgatti foi preso pela Polícia Federal.

[Walter Delgatti afirmou, em entrevista ao jornalista Joaquim de Carvalho, ter desconfiado de que Moro havia ido aos EUA pedir ajuda para rastreá-lo.]  

Embora essas revelações não tenham afetado significativamente a popularidade do magistrado, a aura do juiz continua a se desgastar na imprensa internacional. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal acaba reconhecendo a inconstitucionalidade da prisão de Lula. Ele foi libertado em 8 de novembro de 2019. O ex-presidente foi absolvido de sete das onze acusações contra ele (a promotoria apelou em quatro casos). Lula ainda não foi julgado em quatro casos que os especialistas consideram menos importantes.

Sergio Moro acabou renunciando ao cargo de Ministro da Justiça em abril de 2020.

Washington permite que ex-magistrados do DoJ que trabalharam em casos relacionados à FCPA, revendam as informações privilegiadas obtidas durante suas investigações para grandes escritórios de advocacia e  ganhem muito dinheiro.

Em novembro de 2020, em meio às eleições municipais no Brasil, ficamos sabendo que o ex-juiz de Curitiba foi recrutado pelo escritório Alvarez & Marsal. Trata-se de agência especializada em assessoria empresarial e contencioso, com sede na capital federal em 15 Shet NW, em frente ao Tesouro dos Estados Unidos e a 200 metros da Casa Branca.

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