quinta-feira, 5 de agosto de 2021

O que a gente leva desta vida

 





Nelson M. Mendes

Há muitas décadas popularizou-se, no Ocidente, o conceito hindu de Karma­, que em termos simples significa o registro de débitos e créditos que uma alma acumula em cada passagem pelo plano material.

A ideia de Karma é inseparável da ideia de reencarnação; por isso, muitas pessoas, criadas segundo os dogmas do Cristianismo, rejeitam automaticamente o conceito de Karma. O que essas pessoas não sabem é que o conceito de reencarnação fazia parte do Cristianismo primitivo. Entretanto, Teodora, mulher do imperador Justiniano, temia reencarnar como escrava; e deve ter de tal forma ‘impregnado’ os ouvidos do marido, que ele por sua vez pressionou o papa Virgílio a banir a reencarnação da doutrina cristã, o que aconteceu no Segundo Concílio de Constantinopla, no ano de 553. Ou seja: a ideia de reencarnação (que, segundo muitos sábios e estudiosos, está presente em muitas passagens da própria Bíblia, ainda hoje) foi eliminada do Cristianismo por decreto.

Um outro conceito, igualmente importante no Hinduísmo, mas bem menos conhecido no Ocidente, é o de Dharma; que, também em termos simples, significa ‘missão’, ‘dever’, o papel que um indivíduo está destinado a desempenhar. Karma e Dharma, pois, são as duas pernas com que a alma se desloca no mundo material.

O psicólogo brasileiro Janderson Fernandes, num dado momento da vida, experimentou sua própria crise existencial. Viajou então à Índia, onde ficou por três anos num ashram (uma espécie de mosteiro), sob orientação de um mestre. Ao completar sua formação, recebeu o chamado “nome espiritual”, pelo qual é conhecido no Brasil e até fora dele: Prem Baba.

De volta ao Brasil, Prem Baba (que embora não seja um “sábio iluminado” é um instrutor útil) trataria de unir os conhecimentos de psicólogo aos ensinamentos que obtivera na Índia. E passaria assim a ajudar muita gente. Ele estava feliz: estava sintonizado com seu Dharma.

Escreveu até um livro de sucesso sobre o assunto: ‘Propósito’. No livro, conta que atendeu muitas pessoas famosas, ricas, que, no entanto, eram profundamente infelizes. Ele explica que essas pessoas haviam simplesmente buscado fama e fortuna, fugindo a seu Dharma; ou missão; ou propósito. Nada deixa a pessoa mais conciliada consigo mesma e com o mundo, do que a sensação de estar cumprindo o papel que lhe foi destinado.

Prem Baba diz que nada é mais nocivo do que tentar forçar um jovem a seguir uma determinada carreira, por motivos financeiros ou quaisquer outros. Ele sugere que o jovem, para escolher um caminho profissional, se pergunte que trabalho gostaria de fazer se não precisasse pensar em dinheiro ou dar satisfação a qualquer pessoa: aí está a sua vocação – palavra que significa chamamento. Ou seja: a vocação é aquilo para que a pessoa é chamada.

Quem atende ao chamamento normalmente passa feliz pela vida. Lembrando sempre que “felicidade”, aqui nesse plano, é uma ideia muito relativa; até porque isso aqui não é playground, e sim escola. Claro que para todos nós, criados de acordo com aqueles ideais de felicidade – o casamento “perfeito”, a riqueza, o sucesso, a “saúde pra dar e vender” – pode soar quase ofensiva essa ideia de que não devemos nos preocupar em ser felizes. Mas os sábios ensinam exatamente isso. Aliás, paradoxalmente, somos mais felizes quando não ansiamos pela felicidade.

É importante frisar uma coisa: não se trata de conformismo. Quando o escritor e “filósofo não acadêmico” (como o próprio se definia) Paul Brunton conheceu Ramana Maharshi, fez alguns incisivos questionamentos sobre as injustiças do mundo. Maharshi, livre já das cascas do ego, que bloqueiam a luz, deu uma resposta que Brunton, àquela altura de sua busca, pudesse compreender: “Quem criou esse mundo saberá cuidar dele.” Na verdade, toda a Filosofia (com maiúscula, para enfatizar que não estamos falando de estéreis discussões acadêmicas) sabe, como aliás sustentou o filósofo holandês Spinoza, que Deus e Universo são uma coisa só. Lembra o grande (e relativamente desconhecido) filósofo brasileiro, Huberto Rohden, que a palavra “universo” significa “o uno vertido” – ou seja: a Unidade (Deus) desdobrada na pluralidade (manifestação). Portanto, Deus não é, como concebido no ‘folclore’ religioso, um senhor de barbas brancas a ocupar “um lugar antisséptico do Cosmo”, como brincou Sri Yukteswar, guru de Paramahansa Yogananda. Deus é tudo. E obviamente sabe o que está fazendo.

Entretanto, o próprio Ramana Maharshi adverte que o indivíduo não pode permanecer inerte, indolente, deixando-se levar pelo fluxo das coisas. E aqui voltamos à ideia de Dharma: cada um tem um papel a desempenhar.

A Teosofia, que vem a ser, grosso modo falando, uma compilação de saberes que remontam ao início dos tempos, explica detalhadamente essa relação do indivíduo com o Todo. Para simplificar, podemos imaginar que cada um de nós é um átomo da consciência divina.

Neste momento do texto, aquele que está absolutamente convencido de que é um corpo físico, nascido num certo local, com um nome, um CPF, etc., vai automaticamente fazer um muxoxo de desdém; ou terá um esgar de irritação. Como assim, “átomo da consciência divina”? Mas o desdém e a irritação fazem parte do esquema. Todas as contradições, todos os conflitos fazem parte da natureza básica de Deus. Purificar o universo manifestado dessas contradições, na volta para a Unidade, é o papel de todos esses átomos que se entrechocam.

Mesmo as guerras têm seu papel no grande drama universal.

Transcrevemos abaixo, editado, resumido, o início do livro 'Dharma', da extraordinária teósofa Annie Besant:

O herói Bhishma, do épico hindu Mahabarata, é a personificação do Dharma. Agonizando no campo de batalha, recebeu de Krishna o alívio de seus tormentos e a ordem de que deixasse a mensagem final sobre o significado de Dharma.

E Bishma falou: Assim como o dever dos Brahmanas[1] consiste na prática da caridade, no estudo e na penitência, o dever dos Kshattryas[2] é sacrificar seus corpos nas batalhas.

E seguiu discursando sobre os deveres distintos uns dos outros, e apropriados a cada estágio de evolução.

A moral relaciona-se com O Dharma. É necessário discriminar a ação, a ação ilícita e a inação; misteriosa é a senda da ação. (Bhagavad Gita, iv. 16-17). A moral varia segundo o Dharma de cada indivíduo. O que é certo para um é errado para outros. Nada existe de absoluto num universo condicionado. O bem e o mal são relativos e devem ser julgados levando-se em conta o indivíduo e seus deveres.

Portanto: cada um de nós é um átomo (ou raio) da consciência divina com um papel a cumprir neste universo manifestado. Que não saibamos que somos luz, consciência divina, que caminhemos nas trevas – isso também faz parte do esquema. Mas temos de persistir, sabendo que um dia teremos consciência de sermos consciência.

Muitos de nós, enquanto caminhamos no escuro, entre pedras e espinhos, chegamos a desanimar, a perder a esperança. Podemos ter vontade de “sair da brincadeira”, buscar o esquecimento, a inconsciência total, o nada absoluto. Mas isso não é possível. Podemos no máximo adormecer por instantes; mas nossa natureza é luz, é beleza, é amor, é consciência. O saber é nosso destino.

Dirão os críticos, os pessimistas, que não veem nada disso; nem no mundo, nem em si mesmos.

Bem, podemos fazer uma analogia recorrendo à ciência que estuda os fenômenos ditos “materiais”, da natureza – a Física (palavra que vem do grego 'physis', que significa exatamente natureza): nós não somos capazes de perceber grande parte do chamado espectro eletromagnético; e nem por isso essa parte não percebida deixa de existir.

Mas podemos também recorrer aos sábios de todas as eras e lugares, e veremos que eles dizem aquilo que nosso próprio coração sussurra no silêncio da alma: são as “cascas” e “sujidades” do ego o que nos impede de ver a luz.

Mas atenção: não nos esqueçamos de que todas essas coisas que compõem o ego são necessárias. Também elas fazem parte do esquema! Deus não criaria um universo incoerente. A incoerência é nossa, em nosso estágio de desenvolvimento; mas também ela faz parte do esquema! Até o soberbo ceticismo de quem lê este texto faz parte do esquema.

O objetivo deste texto é lembrar que, como disseram todos aqueles átomos que chegaram a ter consciência de que são consciência (Buda, Cristo, Yogananda, Ramana Maharshi e tantos outros), “no fim tudo dá certo”. De fato, como disse o filósofo Leibniz, “este é o melhor de todos os mundos possíveis”. Não, de modo algum o escriba está dizendo que isso aqui é o Paraíso, que vivemos a Utopia; aliás, “utopia” expressa a ideia de uma sociedade harmoniosa, feliz, sem desigualdades violentas – algo evidentemente muito distante do mundo em que vivemos. Um dos dharmas coletivos – digamos assim – da humanidade é exatamente o de perseguir a Utopia. Mas, como dizia Eduardo Galeano, a Utopia é como o horizonte: afasta-se sempre, à medida que caminhamos em sua direção. O combativo intelectual estava ciente de que o sonho de uma sociedade ideal parecia fugir sempre.

As utopias individuais também podem muitas vezes parecer inalcançáveis. Como dissemos, somos desde o berço educados a perseguir aquele combo da felicidade: realização amorosa, sucesso profissional, “muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”. Mas quantos podem dizer que são felizes em todas essas áreas?

Voltando ao início: quando sabemos que estamos cumprindo nosso Dharma (missão, dever), nós nos sentimos relativamente felizes. Como explica Prem Baba no livro 'Propósito', ao cumprirmos o Dharma estamos dando ao mundo aquilo que ele espera de nós. Estamos assim dando o nosso melhor para a construção da Utopia. Escreveu Gibran no belíssimo 'O Profeta': “Quando trabalhais, sois uma flauta através da qual o murmúrio das horas se transforma em melodia. [...] E quando trabalhais com amor, vós vos unis a vós próprios e uns aos outros, e a Deus. [...] O trabalho é o amor feito visível.”

Eventualmente a flauta se cala, porque toda melodia tem seu fim. Tudo, neste universo manifestado (o Uno vertido), tem seu fim. Mas tudo, neste universo, é aparência. Temos de levar tudo a sério, desempenhar o melhor possível o nosso papel; lembrando, entretanto, que trata-se exatamente de um papel no grande Drama Cósmico. Os textos hinduístas falam o tempo todo em Maya (ilusão), referem-se ao “sonho de Deus”. Paramahansa Yogananda e seu compatriota Ramana Maharshi chegam a usar a mesma metáfora para falar do mundo: “filme cósmico”. Assim, quando encerramos nossa participação na melodia, o trabalho na verdade continua. De outro modo, mas continua.

Havia uma tradição, na Índia, de que o homem (naturalmente que de uma certa casta), depois de cumprir suas obrigações sociais e familiares, deveria retirar-se para a floresta ou montanha, a fim de dedicar-se à busca espiritual. Esse trajeto do homem indiano reproduz, "em ponto pequeno”, aquele que todas as almas percorrem ao longo das várias encarnações. E tem semelhança com a trajetória do homem comum, mesmo no mundo ocidental.

“Não há aposentadoria na vida.” Quando o médico e pesquisador coreano Yong Suk Yum escreveu isso, ele queria dizer que a pessoa, com bons hábitos alimentares e de vida, de modo geral, poderia chegar lúcida e ativa aos 120 anos. Mas podemos adaptar essa declaração, e afirmar que ninguém de fato se aposenta, seja aos 70, 80 ou 90 anos. Passa a trabalhar de outra forma.

Uma analogia fisiológica pode ilustrar a ideia: depois de mastigar e digerir as experiências mundanas, chega o momento de metabolizá-las. É exatamente o momento do aprendizado, da colheita, da assimilação.

Claro que, acostumados à “lida diária”, sentimos um vazio quando encerramos nossa participação no concerto. Mas não devemos esquecer: a inatividade é apenas aparente. Todos podemos, mesmo levando nossas vidas absolutamente rotineiras, nos retirar para nossa montanha interior. Ou podemos, pelo estudo, pelo trabalho voluntário e por muitos meios, nos manter ativos inclusive no sentido objetivo. (Lembrando que, em última análise, não há distinção entre os mundos objetivo e subjetivo – porquanto, como foi dito, Deus e Universo são uma coisa só.)

Disse um sábio bem conhecido que “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado”. O homem, aqui neste planeta, ainda segundo a explicação da Filosofia, é aquela instância, ou aquele estágio em que o átomo da consciência divina, depois do mergulho na carne (a crucificação de Jesus, que de fato ocorreu, é uma parábola concretizada de todo esse processo cósmico), ultrapassa a crosta da matéria e retorna à Fonte divina. Tudo – paz e guerra, prazeres e dores, perdas e ganhos – é pretexto para a sabedoria. Repetindo: somos em essência paz, amor e sabedoria. É para reviver, para recordar isso que serve a vida. Como dizia o folclórico Barão de Itararé, “o que a gente leva desta vida é a vida que a gente leva”.



[1] Em termos simples: filósofos.

[2] Em termos simples: guerreiros.


Um comentário:

Carlos Valdetaro disse...

No fundo é aquilo, somos um só com o Universo, com Deus, corra atrás de seu objetivo, que nunca é material, pois este não te realiza.
Um excelente texto, mas você já entendeu sou bem empírico, coloco somente sentimentos, que começam e terminam em mim próprio.